Afinal, quem se importa com as mulheres do RPG?

Eva Andrade
7 min readJun 21, 2016

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Eu realmente não deveria me chatear, ou sequer me mover por conta disso que ainda está entalado, mas como está entalado — e aparentemente pessoas estão falando de mim pelas costas, sem sequer nunca terem falado comigo na vida, segura o textão ai. Pois é, um textão sobre como a comunidade de RPG segue, AINDA, tocando o foda-se para as experiências de mulheres com o machismo no meio, e como até mesmo outras mulheres seguem passando pano para machistas e fazendo de conta que a louca, a exagerada, é quem denuncia.

Eu não gosto de falar sobre isso num nível pessoal, mas vou exemplificar com algo ainda recente que me ocorreu (e que dividirei em três partes que estão relacionadas), certos pensamentos, comportamentos e padrões de silenciamento e acusação se perpetuam no RPG nacional, a despeito de tentativas de denúncia.

Caso A

Ano passado fizemos um evento para denunciar abusos a que estamos sujeitas nas mesas de RPG unicamente por sermos mulheres. Falamos sobre como o hobby, além de não ser aberto para nós em pé de equidade, tampouco é seguro para todo mundo, como muitas vezes se tenta propagar. Desse evento, surgiram uma série de iniciativas, projetos e convites. No meio de diversas atividades, fui convidada para, por videoconferência, participar de um debate sobre mulheres e o RPG, que ocorreria em um evento em Fortaleza. Aceitei por achar que, infelizmente, ainda é necessário falarmos muito disso (embora tenha críticas severas a chamarem mulheres apenas para que tratem deste assunto, como se não tivéssemos outras coisas interessantes para dizer além da nossa experiência como mulheres — ainda assim, a organização era bacana e tiveram a sensibilidade de colocar mulheres para cuidar da atividade, já que eles têm mulheres na organização).

Apesar de ter sido muito bem recebida pelos organizadores do evento alguns fatos curiosos, para dizer o mínimo, aconteceram. A sala estava relativamente cheia para, em pleno evento de RPG (que é entretenimento, a despeito de qualquer coisa), ouvir uma mulher falar sobre a experiência de ser mulher no meio. Dois rapazes se destacaram da plateia, falando alto naquela postura de dominância (com o jeito agressivo e ameaçador que homens usam quando querem nos fazer calar a boca), destilaram absurdos. Disseram que jogadora de RPG só namora homens para roubar livros de RPG, que a culpa do assédio em mesas de RPG é das roupas que as mulheres usam, e que ele (o moço que falava) até aceitava mulheres na mesa dele, portanto, não era machista.

A atividade virou um caos, diversas mulheres que estavam lá se revoltaram e, por fim, tivemos que falar ainda mais alto para apontar a incoerência de que, em uma atividade com uma mulher convidada para falar sobre ser mulher no RPG, dois homens estivessem justamente invalidando nossa experiência e nos impedindo de simplesmente falar. Além disso fomos ameaçadas com palavras e tom de voz adotado, comprovando assim exatamente o que estávamos falando ali — também nos chamaram de mandonas por falarmos mais alto na tentativa de fazer valer nosso direito de falar.

No fim, pude retomar a atividade, que foi muito proveitosa. Fiz amigas, amigos também, e mantenho contato até hoje com esse pessoal de Fortaleza.

Caso B

Um outro pessoal de Fortaleza, após esta atividade, me adicionou no Facebook. Disseram que estavam interessados em organizar evento para mulheres por lá e pediram minha ajuda. Na época, avisei que ajudaria como pudesse, mas tanto por não ser de lá (e, portanto, não querer tomar o lugar das mulheres de lá), quanto por estar com pouco tempo disponível, deixei claro que participaria das discussões como pudesse, com sugestões e ideias. No meio tempo, outras mulheres de lá, não ligadas ao grupo do organizador (porque foi um homem que me contatou, e que continuou nas discussões e na organização do evento, a despeito de não ser sua face pública), me informaram sobre o desconforto de ter um homem na organização de um evento voltado a mulheres.

Em um post no meu perfil (portanto, no meu espaço pessoal), fiz um comentário geral sobre ser realmente desconfortável, em um evento que precisaria ser organizado exclusivamente por mulheres, porque nós precisamos desesperadamente desenvolver o know-how da organização de eventos nerds, dentre outras causas igualmente pertinentes e importantes. O organizador se manifestou no meu post, reclamando da minha posição. Conversamos amigavelmente, outros homens se manifestaram no post, outras mulheres também, explicamos e trocamos ideias sobre os motivos de ser absurdamente necessário ter atividades para mulheres organizadas por grupos exclusivamente femininos. O organizador agradeceu a discussão, disse que aprendeu e ponto.

Parecia tudo bem.

Poucos dias depois amigos me avisam por inbox que o tal organizador estava me expondo claramente em uma página machista de RPG que, há dias, estava me atacando (apesar de nem ser eu a ter começado a denunciar o machismo deles. A página, inclusive, permanece ativa e com muitos likes, o dono continua o mesmo e diversos caras que se dizem super apoiadores das mulheres permanecem apoiando a página através de likes. Mas é outra história…) Descobri então que, após o debate que parecia ter sido produtivo e de desconstrução para todas as pessoas que dele participaram, ele havia me excluído, bloqueado e estava empenhado em me expor por ai.

A briga foi crescendo e virou diz-que-me-diz, apesar de eu não estar nem mesmo tentando me defender com veemência porque, como disse antes, estava com pouco tempo livre. Enquanto eu tinha cada vez menos espaço para explicar o que houve, a despeito do post estar na época (e estar ainda!) disponível no meu perfil, a coisa virou uma bola de neve. Personalidades absurdamente misóginas do RPG, na busca de holofote, levaram a confusão a outro patamar, ofendendo uma outra mulher, jogadora e feminista, ofendendo seu corpo, ofendendo o fato dela fazer cosplay, questionando a vida afetiva e sexual dela. Um show de horrores. Infelizmente, muitos do meio, de formadores de opinião a membros de editoras, continuam dando relevância para o que esta personalidade diz e apoiaram publicamente esses absurdos.

Um portal de RPG me procurou para falar sobre o caso. Por eu já ter conversado com alguns dos seus criadores antes, aceitei falar com eles acreditando que assim poderia explicar, de forma imparcial, o que houve. Foram horas de conversa, ilustrada por prints, link direto do que houve, explicações e mais explicações. Pedi apenas que, diante do nível que a coisa tinha alcançado, que não divulgassem meu nome pois queria ter um pouco de sossego, e aquilo estava me fazendo muito mal.

Alguns dias depois a tal matéria saiu (e dá pra ler aqui, ó). Aproveitou-se, se tanto, meia dúzia de perguntas que eu respondi, de forma organizada para que melhor coubesse na narrativa que se pretendia contar: a de defesa do tal organizador. Para tal, rapidamente se ouviu um coletivo de mulheres ligadas diretamente ao organizador e que, desde o começo, se empenhou em defendê-lo, acusando a mim a outras mulheres que apontaram o que estava acontecendo como loucas, histéricas e exageradas. Fez-se um recorte, portanto, que dava ouvido apenas para mulheres que corroboraram a narrativa que se pretendia contar. Afinal, de storytelling a comunidade de RPG entende, não é mesmo?

Ninguém se manifestou. O grupo continua firme e forte, recebendo apoio e patrocínio de editoras, lojas e grupos consolidados de jogos analógicos — e se espalhando por outros estados do país.

Caso C

Eu não sabia quem eram os rapazes do caso A, mas esses dias vi um deles divulgando fotos de um evento organizado pelo grupo do caso B em um grupo do Facebook. Não reconheci os dois, mas reconheci o mais verborrágico, cujas falas exemplifiquei ali em cima. Prontamente, fiz um post de denúncia no meu perfil, expondo o ocorrido.

O post ficou no ar, se tanto, meia hora. Foi derrubado por denúncias. Okay, refiz o post, que ainda permanece no ar. Nada aconteceu. Ninguém se manifestou, como se tudo estivesse tudo muito bem, tudo normal. Inclusive alguns continuam a dizer que sou exagerada, “feminazi”, louca.

Conclusão

De que adianta nós pensarmos sequer em diminuir o tom das denúncias? De que adianta expor menos a comunidade de RPG ao “mundo” lá fora se não podemos nos sentir ouvidas, acolhidas e consideradas dentro da comunidade? Quando um dos maiores meios de comunicação online voltado ao RPG manipula uma história até que uma mulher seja pintada como louca, como confiar que a comunidade em si será o suficiente para proteger as mulheres? Como acreditar que levarão em consideração e acolherão nossas denúncias, quando vítimas de machismo ou de exposição?

Qual é o recado que vocês, empresas, lojas, grupos, editoras, estão enviando para as jogadoras, quando não se manifestam de forma menos genérica, quando ignoram casos denunciados, quando fazem de conta que é só mais um exagero de alguém?

Eu não quero que as mulheres desanimem — o objetivo deste texto nunca foi este. O que eu quero é que vocês vejam a importância de nos ouvirmos, de nos unirmos, de darmos importância para o que outras jogadoras estão dizendo ou denunciando. E que não caiamos na falácia de que estamos “expondo” o RPG à execração pública. Nós é que estamos sendo execradas. E se a comunidade do RPG não é capaz de nos enxergar como parte da comunidade e, como tal, nos acolher, façamos isso nós mesmas.

Edit: até este momento, duas moças diferentes do grupo vieram me agredir por inbox, inclusive me mandando arrumar um filho pra cuidar (no lugar de denunciar machismo) e outra em tom de ameaça. Rolou uma notinha posando de vítima também. E rolou blog de RPG tocando o foda-se, que quem reclama de machismo é chato. Nada inesperado.

P.S.: Eu só precisava desabafar. Mas comentários escrotos não serão lidos porque: não sou obrigada.

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Eva Andrade

Tradutora, revisora, escritora, editora e louca dos gatos e dos cachorros.