Bolsonaro e Schopenhauer

Ewan Stenz
4 min readAug 13, 2018

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Acusam-me de falar sempre mal de Jair Bolsonaro. Desta fez, farei um elogio a sua capacidade, treinamento e cultura.

Em vários momentos de sua sabatina na Globo News, o candidato exibe perfeita maestria no domínio da dialética erística, demonstrado, entre tantos exemplos, em sua resposta a uma pergunta feita por um jornalista, aqui apresentada. Escrevo este reconhecimento porque assumo que o deputado tenha lido uma famosa obra de Arthur Schopenhauer. No prefácio desta para uma edição no início do século passado, Karl Otto Erdmann lembrava que,

“em uma discussão, o que está em ação não é o desejo pela verdade, mas o desejo pelo poder. E o ser humano, que não é um ser especialmente nobre, revela seu lado mais sombrio: a vaidade e a hipocrisia triunfam”.

A obra em questão é um dos mais sinceros textos filosóficos já publicados, e ensina como vencer debates sem ter razão. Schopenhauer faz a distinção entre a lógica, que tem a ver com o conteúdo da argumentação, e a dialética, cujo objetivo maior é o convencimento dos demais. Segundo o autor, toda tese apresentada pode ser atacada de duas maneiras: Ad rem (foco na questão). E, ad hominem (foco no oponente). O último modo, como não tem relação com a tese, recusa-se de antemão a acrescentar algo que ajude no esclarecimento da verdade objetiva. Leva-se a questão para um campo (geralmente moral) onde o objeto discutido não pode ser examinado claramente.

Há várias maneiras de se atacar ad hominem. Além da estratégia anteriormente citada, outra é a de não deixar o interlocutor falar, entrecortando a sua construção de pensamento, de tal maneira, que organizar qualquer resposta sensata se torne quase impossível. A platéia perde o foco, e a discussão pode ser encaminhada para qualquer lado. Combinando estas duas estratégias com uma terceira — proclamar a vitória sobre o tema, sem ter realmente vencido a discussão — , conclui a aplicação dos estratagemas schopenhauerianos com habilidade ímpar.

É de se observar que, ao formular a pergunta, o jornalista deixa claro que a questão não é legalidade, mas se é moral, adequado, o recebimento da quantia, sendo que ele possui imóvel próprio. Defensor de seu privilégio, o Deputado ataca o interlocutor sobre a forma como ele recebe seu salário como jornalista. Uma ruína de argumento então é esboçada: “eu tenho várias despesas, como IPTU…” como se fossem gastos diferentes dos pagos por todos os proprietários de imóvel em área urbana, de todas as classes socias, em todas as cidades brasileiras. O candidato eleva o tom de voz ao ponto do grito, diz que é absolutamente legal (e ele tem razão).

Mas, com um detalhe: a pergunta não foi essa.

Bolsonaro acha que receber esse dinheiro é moral?

As implicações de uma resposta negativa são claras. Como é que ele explica essa dicotomia, entre receber e achar imoral?

Uma resposta positiva, de que, sim, receber tal benefício é moral, entraria em direto confronto com a realidade da maioria dos espectadores que batalham para pagar as contas no fim do mês. O salário de um deputado, mais de uma dezena de vezes acima do valor recebido por um trabalhador médio desautoriza o argumento da necessidade. Portanto, como é que Bolsonaro poderia fazer deste, um benefício justificável?

Preparado para tal confronto, ele tinha seu discurso na ponta da língua: um ataque a manobra legal de grandes salários, como os dos repórteres em posição de destaque nos maiores veículos de comunicação do país. É importante aqui ressaltar que, ao invés de elaborar uma justificativa plausível para o recebimento do recurso, o candidato se apoiou na dialética erística. Na patifaria argumentativa.

Além de uma demonstração-modelo sobre o seu conhecimento da dialética erística, Bolsonaro deixa transparecer que não se preocupa com privilégios. Em momento algum ele propõe acabar com os privilégios caso seja o futuro líder do Executivo. Nem o privilégio dele mesmo (político, com direito ao auxílio); muito menos da elite salarial brasileira, que paga, proporcionalmente, menos impostos do que a grande maioria da população… em parte por manobras fiscais.

Não há qualquer intenção de esclarecer a dicotomia aberrante entre o seu discurso e suas ações. Para os amantes da lógica, fica a questão de como amalgamar o discurso e as demontrações efetivas de Bolsonaro, e permanecer íntegro com os princípios da racionalidade? Como acreditar que este candidato é contra a política de privilégios, que é a matriz central da mentalidade corruptiva do Estado?

O pior é que, este caso de utilização deliberada de privilégios não é único.

Ainda sobre a lógica, pergunto-me: é importante que um candidato que tem sua plataforma eleitoral baseada na moralidade, que ele seja um exemplo moral? Já que o candidato não atacou os privilégios que sempre estiveram em seu poder decidir, como o do recebimento de um valor para um auxílio que ele não precisava? Será que ele atacará os outros, seríssimos privilégios que ocorrem legalmente, dentro da estrutura de poder?

A dicotomia aberrante entre ação e propaganda do candidato leva-me à crer que, assim como sugeriu Karl Otto Erdmann, neste embate, onde “a vaidade e a hipocrisia triunfam,” revela-se o lado mais sombrio dos seres-humanos. Obrigado pelo exemplo, Deputado.

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Ewan Stenz

Creativity. Classical Music. Society. It's confusing… A Brazilian living in Germany writing in Portuguese and English.