O mercadinho do João (1)

Ewan Stenz
20 min readAug 22, 2018

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Formado por indivíduos oriundos de carreiras no setor privado, o Partido Novo sustenta uma bandeira auto-intitulada “alternativa” para o eleitor descrente com a política tradicional. As propostas são claras: privatização de todas as empresas estatais; fim do financiamento público de campanha; fim do voto obrigatório; fim de qualquer financiamento público para os partidos políticos; corte do número de Deputados e Senadores; Estado Mínimo; e uma agenda pró-Mercado financeiro. Cada uma destas seria digna de uma discussão ampla, impossível de ser feita aqui. Resolvi enfrentar a complexidade do tema dividindo-o em blocos, onde apresento elementos que, na minha opinião, deveriam ser considerados na análise da figura pública de João Amoêdo e das bases de sustentação ideológica do Partido Novo. Cabe ao leitor decidir o peso destas informações em seu julgamento, é claro.

O primeiro texto é dividido em 3 partes. a) sobre as ligações do PN com o mercado financeiro, b) de como isto os coloca em posição central da política nacional, e, c) como a influência internacional se conecta com as decisões macroeconômicas no Brasil. Por sua vez, o segundo especula sobre a visão democrática do partido, e elenca possíveis consequências de suas propostas de reforma política. O terceiro texto fala sobre as privatizações no Brasil. Procuro não entrar no viés comum de que as empresas teriam sido vendidas à preço muito baixo, e abordo a questão sob o ponto de vista da corrupção legalizada do Estado em prol do enriquecimento individual, e da corrupção ilegal que guarda os espólios destas operações em paraísos fiscais. O terceiro texto será, portanto, sobre privatizações, mas não somente sobre o PN. O quarto texto, o mais breve de todos, cita o papel dos bancos nos escândalos nacionais, e apresenta algumas questões que precisam ser respondidas pelo candidato. A existência de uma conta em nome da mãe de Amoêdo em um paraíso fiscal na Bahamas, por exemplo. Concluo o texto com algumas observações sobre o significado da candidatura no campo político.

Parte 1: O BBA do Mercado

Os dois principais líderes do partido Novo, João Amoêdo, fundador, ex-presidente, e atual candidato aPresidência da República; e o co-fundador, a atual presidente do Novo, Ricardo Taboaço, dedicaram a totalidade de suas carreiras ao mercado fianceiro. Esta é a base do argumento de que Amoêdo é “uma cara nova na política.” O maior cargo de Taboaço foi a vice-presidênica do Citibank. Amoêdo, por sua vez, foi vice-presidente do Unibanco, fez parte do Grupo Itacu, do qual Taboaço era sócio-diretor, e chegou a ser sócio do Banco BBA Creditanstalt. A relação entre o BBA e o alto poder político sempre foi próxima. O ex-Presidente do Banco Central no Governo Sarney, Fernão Carlos Botelho Bracher fundou-o em 1988,⁠ menos de um ano após ter deixado o cargo.[1, 2]

Após a saída de Sarney, o BBA “foi a única instituição brasileira a coordenar o consórcio de bancos estrangeiros para investimentos no programa de privatização de empresas estatais” durante o Governo Collor, menos de 3 anos após sua fundação. No mesmo ano, o BBA “recebeu autorização do Banco Central para operar subsidiária em Bahamas⁠ (…)”, um conhecido paraíso fiscal no caribe. Collor saiu do governo, mas a proximidade do Banco BBA com o poder central político do país, não. Em 1995, às vésperas de uma desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar americano, o então presidente do Banco Central, Pérsio Arida fez uma visita à Bracher em sua fazenda⁠. Arida também figurou nos quadros da diretoria do BBA, o que levantou suspeitas sobre um eventual repasse de informação privilegiada. A questão nunca foi comprovada, nem suficientemente desmentida, mas desencadeou queda na bolsa brasileira.⁠[3, 4, 5]

Outro diretor do BBA, que também foi diretor do Banco Central, e posteriormente presidente, esteve envolvido em outros casos de proximidade suspeita de banqueiros com o poder político. Francisco Lopes era um dos sócios da Macrométrica, empresa com sede no Rio de Janeiro. O próprio Banco Central pagava por um boletim de conjuntura econômica R$ 7.400 reais (em valores atuais) por mês para a Macrométrica.

“Ironia: o boletim lido pelo Francisco Lopes funcionário público, no gabinete do BC, era redigido pelo Francisco Lopes consultor privado no escritório da Macrométrica.⁠”[6]

É claro que, neste ambiente onde as cifras incluem muitos dígitos, o valor pago por um boletim não chama tanto a atenção. Lopes ficou mais conhecido pela histórica desvalorização do Real em um conturbado momento da política cambial, e pela intervenção para ajudar os bancos Marka e FonteCindam.

Salvatore Cacciola, o dono do Banco Marka, depôs duas vezes em Brasília para explicar por que recebeu US$ 56,9 milhões do BC a fim de salvar seu banco no dia 14 de janeiro, logo depois da desvalorização do real promovida por Chico Lopes. (…) Nos dois depoimentos o dono do Banco Marka contou que no dia 13 de janeiro, desesperado porque seu negócio tinha quebrado em função da desvalorização da moeda brasileira, viajou a Brasília na companhia dos consultores Rubem Novaes e Luiz Augusto Bragança. “Sabia que Bragança era amigo de infância de Lopes e isso poderia ser útil no desenrolar das negociações”, disse.

(…)

Ao fim da conversa com Luiz Augusto, o Francisco Lopes que presidia o Banco Central aceitou defender a tese de que o BC deveria vender dólares ao Marka a R$ 1,27 quando o mercado já estabelecera a cotação da moeda americana em R$ 1,32. Operação semelhante foi feita depois a favor do FonteCindam, mas com o dólar a R$ 1,32. Nesse caso, o problema foi o horário da venda de dólares, efetivada à noite. No dia seguinte, a cotação do dólar superaria R$ 1,32 e, mais uma vez, o BC trabalhava no prejuízo.⁠[7]

O escândalo rendeu um arrastão de documentos nas sedes do Marka e da Macrométrica, e nas casas de Lopes e Cacciola. Então Ministro da Fazenda, o economista Pedro Malan telefonou para o Presidente Fernando Henrique Cardoso e reclamou sobre a “arbitrariedade” que, pouco depois, levaria a queda de Lopes. Malan é figura central na história recente da economia brasileira. Sua esposa é, por acaso, sócia da filha de Bracher, do BBA. Malan foi presidente do Unibanco (onde Amoêdo foi vice), e seu nome foi cogitado para ser o sucessor de FHC na eleição presidencial. Função que acabou sendo de José Serra, então Minsitro da Saúde. Malan também foi professor de Armínio Fraga (sucessor de Lopes), e um nome que constitui o elo entre as linhas estratégicas da economia brasileira por pelo menos uma década.

Após o escândalo, Lopes foi substituído por Armínio Fraga, que na época trabalhava para o mega investidor George Soros. Antes de assumir o cargo, contudo, Fraga teve sua integridade profissional questionada pelo Nobel de Economia Paul Krugmann, que o acusou de ter utilizado informações conseguidas diretamente com a cúpula do governo Brasileiro para prever posições futuras dos títulos da dívida externa no mercado. Krugmann suspeitava, mas não tinha como provar. Sabendo que com certeza não haveria moratória, Soros poderia vender tranquilamente os títulos na semana seguinte, embolsando pelo menos 5% de ágio sobre o capital investido. Levando-se em conta os milhões ienvolvidos, uma operação bastante lucrativa.

(…) Fraga estava em Brasília, hospedado na casa do ministro Pedro Malan. Na quarta-feira, dia 27, jantou no Palácio da Alvorada com o presidente Fernando Henrique Cardoso, Malan, André Lara Resende e Francisco Lopes. Conversaram durante quatro horas. Falaram de economia, da estratégia defensiva do governo contra os especuladores, de câmbio e de dívida. No dia seguinte, Fraga tomou café da manhã com o presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, e dele ouviu conselhos políticos para que retornasse ao Brasil. Soube no Alvorada o que era do conhecimento geral: não haveria moratória. Até a hora de sua partida para Nova York, na noite de sexta-feira.⁠[8]

É difíci acreditar que Fraga não sabia da estratégia interna do governo FHC para lutar contra a crise especulativa naquele momento. Ele não era figura “estranha” em Brasília, pois já havia integrado a diretoria do Banco Central durante o Governo Collor, e esteve na equipe que coordenou os esforços que culminaram no confisco das poupanças. Antes que o caos se instaurasse, Fraga foi trabalhar para Soros, em Nova Iorque. Contudo,…

George Soros

“…para que a acusação de Krugman fosse verdadeira, seria necessário provar que Armínio Fraga passou a Soros as informações privilegiadas que obteve. Disso não há vestígio”. “Sabe-se, contudo, que um boletim da Chase Securities, publicado em Nova York na sexta-feira, dia 22, propunha claramente o calote, espichando a dívida interna com papéis de 5 a 10 anos de prazo e juros de 6% ao ano”.⁠[9]

Quando assumiu o Banco Central, Fraga indicou Luiz Fernando Figueiredo, também sócio do BBA⁠, para fazer parte do quadro de diretores da instituição e assumir a responsabilidade pela política monetária, cargo que ele manteve até o fim do governo FHC. Segundo levantamento feito pela folha do Sisbacen, o sistema eletrônico de informações do Banco Central, o BBA triplicou de patrimônio nos quatro primeiros anos do governo FHC. O FonteCindam, o mesmo socorrido pelo BC depois da desvalorização, foi outro que triplicou seu patrimônio⁠ nos quatro primeiros anos.⁠ Com a eleição de Lula, Fraga e Figueiredo (do BBA, só para lembrar) abriram juntos a Gávea Investimentos, com sede no Rio de Janeiro.⁠[10, 11, 12, 13]

Fernando Henrique Cardoso

Apenas para ilustrar o tamanho dos ganhos dos bancos de economistas ligados aos governos de FHC, outro banco, o Matrix, passou de um capital de 14 milhões para 500 milhões de reais, e tinha como seu principal sócio André Lara Resende, diretor do Banco Central, e presidente do BNDES.⁠[14]

Nesse período, não foi raro ver bancos multiplicarem seu patrimônio, embalados pelo plano econômico formulado por Pérsio Arida, André Lara Resende e Edmar Bacha. Esses personagens tiveram em comum, além das respectivas ligações com o Opportunity, BBA e Matrix, passagens pelo comando do Banco Central (com exceção de Bacha) e do BNDES. [15]

Edmar Bacha, por exemplo, foi presidente do IBGE no governo Fernando Henrique, e teve como primeiro cargo na iniciativa privada depois de sair do governo uma cadeira no Conselho de Administração de qual banco? Acertou quem disse o Banco BBA, onde permanceu mesmo depois da venda do para o Itaú e depois de várias fusões. Bacha não foi o único que permanceu no banco. Fernão Bracher, seu principal fundador, manteve o controle executivo até 2005, quando passou o cargo para seu filho, que surpreendentemente assumiu também a presidência do Itaú-Unibanco. (O Unibanco, do qual Amoêdo foi vice-presidente, e no qual Fraga trabalhou,⁠ e Malan foi Conselheiro também foi comprado pelo Itaú, no qual Malan permaneceu como conselheiro, assim como o BBA, do qual Amoêdo era sócio).

“O João deu o seu salto profissional no BBA, com a família Bracher, com um trabalho brilhante e bem-sucedido, principalmente na financeira”, diz Armínio Fraga⁠ que, apesar de não ser filiado ao Novo, afirma ter conversas constantes com o partido. A manutenção de Bracher (pai) no controle das operações causou espanto no próprio Itaú e em seus acionistas, como revelou Roberto Setubal. [16, 17, 18]

“Foi preciso um esforço para convencê-los (os acionistas) de que isso seria melhor (…) ” Nem todos se convenceram ou aceitaram essa argumentação.” “Nós fomos os compradores do BBA”, diz um executivo com muitos anos de carreira no Itaú. “Mas, na hora de escolher as pessoas que ficariam e as que sairiam, parecia que éramos os comprados, pois quem vinha do BBA tinha prioridade.”⁠[19]

Drenando o Estado

Segundo Bacha, os lucros dos bancos com as “taxas de juros elevadas implicam transferência de renda”.⁠ Só com o pagamento de juros, o setor público desembolsou quase R$ 220 bilhões no primeiro mandato de FHC. Para se ter uma idéia, todo o orçamento de Educação, Saúde, Infraestrutura em aeroportos, estradas, recursos hídricos, energia , Forças Armadas, Ciência e tecnologia… enfim, todos os gastos do governo naquele ano que potencialmente influenciam a vida do cidadão comum, seja na sua qualidade de vida ou na facilidade de produção, somavam 266,4 bilhões de reais⁠! Em outras palavras, o governo gastou um valor equivalente à mais de 80% do seu orçamento corrente com juros. Em parte, estes valores foram embolsados por indivíduos ligados às instituições criadas pelas mesmas pessoas que comandavam a política econômica.[20, 21]

Com um orçamento tão apertado era impossível atender uma demanda básica de compromissos do Estado. A dívida pública saltou de R$ 155 bilhões, em dezembro de 94, para R$ 389 bilhões ao fim do primeiro mandato de FHC. Curiosamente, o Brasil pagou mais juros, do que era a nominalidade de sua dívida interna. Essa enorme transferência de recursos públicos para privados enriqueceu muita gente. E o BBA, do qual Amoêdo foi sócio, esteve no centro destas questões, assim como toda a cúpula do sistema financeiro privado brasileiro, que passeava pelos corredores de Brasília em cargos que rendiam informações privilegiadas.

Antes de formularem o Real, Lara Resende, Bacha e Arida se juntaram a Luiz Carlos Mendonça de Barros, durante o governo José Sarney, em diretorias do Banco Central, sob o comando de Fernão Bracher, então presidente da instituição. A relação de Arida e Bracher se estreitou na fundação do banco BBA, em 1988, a ponto de inviabilizar, mais tarde, a permanência de Pérsio Arida na presidência do Banco Central. Mendonça de Barros já havia sido diretor do BC quando fundou o Banco Matrix, em parceria com André Lara Resende, em 1993.⁠ [22]

Resende era proprietário do banco Matrix quando apontado Presidente do BNDES. Em 8 de novembro de 1998, o jornalista Elio Gaspari denunciou a existência de um grampo telefônico que gravou conversas entre Fernando Henrique Cardoso, Lara Resende e Mendonça de Barros. Nelas, ficava escancarada a interferência da cúpula do governo para beneficiar o grupo formado entre a Telecom italiana e o banco Opportunity, de Daniel Dantas. [23]

“Temos que fazer os italianos na marra, que estão com o Opportunity. Combina uma reuniao para fechar o esquema. Eu vou as 6h30 e as 7 horas a gente faz a reunião. Fala pro Pio que vamos fechar (os consórcios) daquele jeito que so nós sabemos fazer (…) ”. (Luiz Carlos Mendonça de Barros para Andre Lara Resende, presidente do BNDES, sobre a intenção de operar em favor do cons6rcio integrado pelo banco de investimentos Opportunity e a Telecom-Italia.)[24]

Assim como Bracher, Lara Resende, e Mendonça de Barros, Dantas notabilizou-se por realizar investimentos com rendimentos fantásticos. Antes da edição do Plano Collor, em 1990, Dantas investiu em mercadorias básicas de consumo, como café, laranja e cacau. Quando os ativos financeiros foram confiscados, Dantas pôde exportar o que havia comprado e tinha, assim, mais capital do que a maioria dos outros empresários. Nesta época, ele fazia parte do Banco Icatu, onde Amoêdo e Taboaço exerciam funções de comando. O Banco Oportunity teve como um de seus dirigentes Pérsio Arida, inclusive. No fim das contas, a intervenção de Fernando Henrique Cardoso, Mendonça de Barros e Lara Resende em prol do Oportunity beneficiava diretamente Arida, Dantas, além dos outros envolvidos.

A Polícia Federal (PF) indiciou o ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida em um dos inquéritos da Operação Satiagraha. Ele é acusado por suposta prática de gestão fraudulenta, evasão de divisas e formação de quadrilha, na época em que foi um dos dirigentes do Opportunity Fund, do banqueiro Daniel Dantas. Arida foi diretor das companhias gestoras do fundo, a Opportunity Asset Manage­­­ment Inc. e a Opportunity Asset Management Ltda., no período de 1996 a 1999. Ele ingressou no Opportunity apenas um ano após ter deixado a presidência do Banco Central, em 1995.⁠ [25]

A despeito das ligações duvidosas de Mendonça de Barros com o poder financeiro, e do escândalo da tentativa de fraude em um processo de licitação, ele foi eleito presidente do PSDB, pouco tempo depois.⁠ A Telebrás foi a maior privatização da história até então. As cifras envolvidas eram bilionárias (e apareceram misteriosamente em um consórcio do Grupo Jereissati, ligado ao PSDB, e da Construtora Andrade Gutierrez. Tratarei sobre este assunto no texto sobre as privatizações). Para os bancos responsáveis pelas intermediações, esta era uma grande oportunidade. Apesar das comissões recebidas serem, em tese, legais, não podemos esquecer que os bancos recebiam o direito de exercer determinada função dos governos por indicação. Ou seja, este era uma espécie de monopólio. Nas gravações, Mendonça de Barros e Lara Resende comentam o assunto. [26]

“É que o FonteCindam está querendo cobrar US$ 46 milhões de comissão deles. Os fundos dizem que não pagam. Chegaram a US$ 13 milhões, mas, aí, o dono do banco diz que não assina porque eles é que são donos da conta”.

Lembrando, o FonteCindam foi um dos bancos quebrados com a rápida desvaloriação do Real, menos de um ano depois, e que foi rapidamente socorrido pelo Banco Central, sob a direção de Chico Lopes, do que também passou pelo BBA. Poder político? Poder financeiro? Pergunta-se, mais uma vez, qual o interesse tão urgente de salvar um “banquinho”, como se referia Lopes ao FonteCindam?

Um exemplo do papel político do capital foi a compra pelo Itaú do Unibanco, no qual Amoêdo era vice-Presidente. A Receita Federal acusou o não pagamento de vários ganhos que teriam sido mascarados por diversas operações. Recentemente, a dívida que, somada às multas ultrapassava 20 bilhões de reais foi perdoada por uma canetada de um Conselho da Receita. Este conselho é formado por de 50% auditores da Receita, e 50% por “representantes dos contribuintes”. Entenda-se: grandes corporações, muitas pertencentes ao sistema financeiro. O histórico desta dinâmica resulta em situações onde um órgão que deveria defender os interesses dos bens coletivos da União toma decisões contra a própria União. Ou seja, elas submetem o interesse privado ao custo dos recursos públicos.[27]

Para se ter uma ideia, segundo o Ministério Público, toda a Operação Lava Jato no Paraná até agora efetivamente comprovou 6,4 Bilhões em recebimento de propina. Somados aos pedidos de ressarcimento no RJ, SP, e DF o valor comprovado chega perto dos 10 Bilhões de Reais. O que um Conselho da Receita autorizou foi simplemente ignorar um valor que é mais de 2 vezes tudo o que a maior operação contra corrupção da história do Brasil conseguiu comprovar até agora. Isso, depois de vários anos com a maior estrutura judicial já empregada no país. Enquanto as penas somadas dos envolvidos na Lava-Jato somam (sem exagero) alguns milhares de anos, ninguém está sendo conduzido coercitivamente para explicar por que o Estado brasileiro resolveu abrir mão, do nada, de 20 Bilhões de Reais. Ninguém foi preso. Ninguém fez “greve de fome”. Nada aconteceu. Isso não tem nada a ver com a defesa de um Estado Mínimo, ou não. É apenas o cumprir da Lei corrente. Além disso, grandes executivos ganham de acordo com o a performance das coorporações e pelo preço corrente das ações negociadas no mercado. Uma conta 20 bilhões mais barata beneficia diretamente os envolvidos. Ainda mais, quando falamos do vice-presidente da organização, por exemplo.

Alterar o funcionamento de uma instituição com o objetivo de subverter, corromper seu papel principal em razão de seus próprios interesses é uma definição bastante razoável para “corrupção”.

E, é esta a capacidade do capital financeiro ligado ao poder político. Amoêdo negociou e operou diretamente vários destes acordos, como no caso citado do Unibanco e Itaú, e isso lhe rendeu muito dinheiro. Para se ter uma idéia, um brasileiro médio, com renda média⁠, que começou a trabalhar aos 16 anos e nunca parou até o último dia da sua vida,⁠ precisaria de 465 vidas inteiras para ter recebido, de salário, o montante que o candidato João Amoêdo declarou como patrimônio pessoal na ocasião de sua candidatura. Pode parecer absurdo, mas isso levaria mais de 35 mil anos. Este é o tamanho da fortuna declarada de Amoêdo: 425 milhões⁠ de Reais. Curiosamente, um estudo do Credit Suisse aponta que o patrimônio do brasileiro médio é de 12 mil Reais,⁠ menor do que o preço de um carro popular com 10 anos de uso.⁠ Sabe quantas vezes esse valor é menor do que o patrimônio do candidato Amoêdo? 35.416 vezes. Bingo.[28, 29, 30, 31, 32]

Dentre as muitas ilusões que o conceito de sufrágio como definição de democracia tenta vender, uma delas é a de que o poder econômico não tem peso sobre o poder político. Na época em que a economia brasileira era baseada nos engenhos de cana-de-açúcar seria ridícula a discussão sobre o poder político de alguém cujo patrimônio é equivalente a mais de 35 mil pessoas de rendimento mediano. Por conseguinte, pensar em João Amoêdo como uma figura distante da política pode ser a base de sua persona pública, mas é uma contradição intrínseca de sua condição como membro da sociedade. Em outras palavras, a existência de sua fortuna o torna criatura política, ainda que este papel não seja exercido de forma pública. É um tipo de “poder não-eleito”.

Há de se ter cuidado com esta linha crítica, contudo. O fato de a política ser tradicionalmente o território dos ricos e abastados não pode condenar, automaticamente, a legitimidade de Amoêdo e de seu partido. Isto seria argumento ad hominem. A sinceridade e a capacidade efetiva de um projeto de país não podem ser julgadas pelo fato de que seus propositores sejam de determinada classe social. Afinal, não há nada de ilegal, em si, na riqueza. No entanto, ignorar a possibilidade de que seus interesses específicos estejam eventualmente representados com maior peso em suas propostas é insensatez analítica. E, ignorar que a força do capital disponível não torne a divulgação de uma determinada agenda de interesses de um grupo mais fácil do que a de outro, é subestimar o capitalismo.

Candidato desconhecido, a atenção que ele vem recebendo da mídia, assim como o seu partido que não possui tradição eleitoral alguma são prova empírica do fenômeno mercadológico da política. Referindo-se a mídia e a indústria da Propaganda, o filósofo Guy Debord dizia que “o espetáculo é o capital em tal grau de concentração, que se torna imagem”. Publicitário dos Rockefeller, e da tradicional direita Norte-Americana, Edward Barnays concordaria com o francês marxista, autor de A Sociedade do Espetáculo. Nesta lógica, este humilde autor sugeriria uma expansão intepretativa, afirmando que, atualmente, o espetáculo midiático é a concentração do capital de tal forma, que o poder político e o poder econômico se tornam irreconhecíveis. São as duas faces da mesma moeda.

O Elo de Washignton

Como dito, defender a tese de que Amoêdo não é novo na política, e de que, eventualmente, ele pode estar a lutar pelos seus próprios interesses com as propostas citadas no início deste texto, não o descredencia. Ao menos, não necessariamente. Este é o motivo que me leva a comentar sobre as bases intelectuais das propostas. E aqui, postulo: é rigorosamente a mesma para todas as estratégias econômicas brasileiras desde a redemocratização. Com uma certa diferença em alguns pontos da política petista, mas, a principal linha é exatamente a mesma. Neste sentido, Amoêdo é um coadjuvante, por não ter pertencido ao Departamento de Economia da PUC/Rio, onde Dantas, Bacha, Lopes, Arida, Fraga, Lara Resende, e Pedro Malan, em algum momento, estiveram.

Foi lá que, entre 1978 e 1981, um economista chamado John Williamson elaboraria os primeiros estudos para uma análise que seria publicada em um artigo acadêmico que apareceu no final da década de 80. Em novembro de 1989, um encontro organizado em Washington pelo Institute for International Economics e patrocinado pelo Banco Mundial (no qual Malan era Diretor), FMI, BID e governo norte-americano, tinha como objetivo discutir políticas econômicas para a América Latina. John Williamson atuou como uma espécie de relator do encontro, e organizador/editor dos trabalhos ali apresentados.⁠ O resultado acabou por ser tornar conhecido por “Consenso de Washington”. Nas palavras de Williamson,[33]

O termo “Consenso de Washington” foi usado originalmente para descrever uma lista de dez reformas que, segundo o argumento, eram praticamente aceitas universalmente em Washington como desejáveis nos países da América Latina da época, 1989.⁠ [34]

As diretrizes eram:

  1. Disciplina na política fiscal, com foco em evitar grandes déficits fiscais em relação ao PIB.
  2. Substituição do gasto público com subsídios indiscriminados à favor de serviços favoráveis aos mais pobres, como a educação primária, saúde básica, e infraestrutura.
  3. Reforma tributária progressiva, ampliando a base tributária e a adoção de impostos mais leves sobre o consumo.
  4. Juros definidos técnicamente, mas moderados.
  5. Câmbio competitivo.
  6. Abertura comercial baseada na exportação.
  7. Investimento estrangeiro direto, com eliminação de barreiras.
  8. Privatização das empresas estatais.
  9. Desregulamentação, afrouxamento das leis econômicas que dificultem o acesso à mercados, e leis trabalhistas, exceto pelas que estejam justificadas por razões de segurança, proteção do meio-ambiente e ao consumidor, e ao controle providencial das instituições financeiras.
  10. Seguridade jurídica para os direitos de propriedade.

No final das contas, a encomenda acadêmica de Williamson saiu muito diferente da prevista. Com a Perestróika e o fim da União Soviética, a hegemonia norte-americana acabou por estabelecer-se sistemáticamente com a generalização de uma receita que deveria abrir caminho para a criação de mercados para produtos americanos, ou para a realização de produções partilhadas. Este sistema foi testado no Chile na ditadura Pinochet. Todos os países Latino-Americanos que passaram por regimes militares pós II Guerra Mundial tiveram influência do mesmo conjunto de medidas provindas de Washington. O Consenso se transformou em uma base teórica para a realização de reformas que não eram as originalmente previstas, pelo menos não da maneira como foram emplementadas.

Em um artigo posterior, já nos anos 2000, Williamson diz que o Consenso…

…ganhou significados alternativos ao longo dos anos, sendo um deles um sumário de medidas para os países clientes das instituições financeiras internacionais baseadas em Washington. Outro foi o que os críticos acreditavam ser as medidas daquelas instituições (uma lista que tende a consistir de medidas que nunca foram consenso, nem mesmo em Washington). Argumenta-se que em seu sentido original, o Consenso de Washington consiste de medidas que ainda representam uma razoável — apesar de incompleta — , agenda de reformas, mas, algumas das diferenças entre a minha lista original e a que as instituições financeiras internacionais advogam são indesejáveis. No entanto, até mesmo a lista original deve ser suplementada com o objetivo de prover um conjunto de medidas para a América Latina de hoje. (…) …com medidas macroeconômicas contra-cíclicas, reformas institucionais, e uma preocupação com a distribuição de renda como a ênfase original do processo de liberação econômica.

De fato, como observou o Professor de Política Econômica Internacional da Universidade de Harvard, Dani Rodrick, “estabilizar, privatizar, e liberalizar se tornou um mantra para uma geração de tecnocratas…”. Esse mantra não reconhecia a necessidade de uma distribuição de renda. Ao contrário de Williamson e Rodrik, que permaneceram em carreiras acadêmicas, no caso brasileiro, esta geração de tecnocratas ganhou muito dinheiro com isto. Um dos trabalhos apresentados ao longo do encontro, por exemplo, era do banqueiro Daniel Dantas. O mesmo do banco Opportunity citado no escândalo dos grampos no BNDES. Ele esteve no centro da complexa e controversa Operação Satiagraha, na qual foi preso duas vezes. (Há um livro muito bem documentado que conta vários aspectos do processo, chamado Operação Banqueiro: As provas secretas do caso Satiagraha, de Rubens Valente).

Em um dos episódios, Dantas afirma a existência de listas com nomes de brasileiros que possuíam contas clandestinas em paraísos fiscais que teriam sido intermediadas pelas operações do Opportunity. Uma destas listas conteria o nome de um filho de FHC, que estaria envolvido nas negociações da privatização da Companhia Vale do Rio Doce. As mensagens revelariam também que outros bancos, o Pactual e o Matrix (do escândalo do grampo) manteriam fundos irregulares no exterior. Estas informações também eram de conhecimento de José Serra, então Ministro de Estado.⁠ A operação teve seu fim com o incineramento de todo o material recolhido pela justiça.[35]

A simplificação do Consenso é a base do programa de Amoedo. Considerando que a versão do documento trouxe miséria e bolhas econômicas para a América Latina, além de repetidas moratórias e o aniquilamento de fundos de pensões e do patrimônio público, vale a pergunta: Amoêdo se refere à ideia original do Consenso, e ao seu processo revisionista, ou a essa mantida por vários dos citados, que conseguiram acumular grande fortuna pessoal com relações duvidosas entre o público e o privado? Em que medida ele pretende diminuir o Estado e aumentar a participação democrática que, pela falência de nosso sitema eleitoral chega à abstenções de mais da metade dos eleitores em vários estados?

Aqui neste ponto cabe uma pequena reflexão sobre as implicações políticas das ideias defendidas pelo Partido Novo para o processo democrático. Tema do próximo texto.

. . .

1 http://www.bba.com.br/portugues/bba/index.asp

2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernão_Carlos_Botelho_Bracher

3 http://www.bba.com.br/portugues/bba/index.asp

4 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI95288-15259,00-DIRETO+AO+PONTO+FERNAO+BRACHER+MEMORIAS+DE+BANQUEIRO.html

5 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/3/18/dinheiro/11.html

6 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI186428-15223,00-A+VIDA+DUPLA+DE+CHICO+LOPES.html

7 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI186428-15223,00-A+VIDA+DUPLA+DE+CHICO+LOPES.html

8 http://www.senado.gov.br/noticias/OpiniaoPublica/inc/senamidia/historico/1999/2/zn02172.htm

9 http://www.senado.gov.br/noticias/OpiniaoPublica/inc/senamidia/historico/1999/2/zn02172.htm

10 https://www.institutionalinvestor.com/article/b150q8yv2m05dc/arminio-fraga-the-intellect-behind-brazils-gvea-investimentos

11 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc09059915.htm

12 Em outras palavras, este caso poderia ser resumido da seguinte maneira: um banco ganha dinheiro em cima de posições do governo sobre a política cambial, triplicando seu patrimônio. Quando especulou em uma posição que tinha como certa, e estava errado, o Estado brasileiro (o mesmo do qual ele ajudou a drenar as reservas cambiais) tem que salvar o banco com dinheiro de suas reservas. O valor reposto, vale lembrar, foi o já triplicado pelos 4 anos de especulação. É ganhar ou ganhar.

13 https://www.institutionalinvestor.com/article/b150q8yv2m05dc/arminio-fraga-the-intellect-behind-brazils-gvea-investimentos

14 Página 197. “Os cabeças de Planilha” de Luis Nassif. https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/economia/economia-nacional/os-cabecas-de-planilha-1872926

15 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc09059915.htm

16 http://www.atribuna.com.br/noticias/noticias-detalhe/economia/economistas-do-real-se-destacaram-no-setor-privado/?cHash=2c07baef92e378e8d34c07ecec2243a6

17 http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/fraga-arminio

18 https://www.istoedinheiro.com.br/amoedo-uma-face-nova-na-politica/

19 https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/a-vitoria-dos-brasileiros-m0039835/

20 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc09059915.htm

21 http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/artigos/antes-de-2005/Artigo200.pdf

22 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc09059915.htm

23 http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI184939-15223,00-GRAMPO+FEITO+EM+CASA.html

24 https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=Esc%C3%A2ndalo+do+Grampo+no+BNDES+Lara+Resende&ie=UTF-8&oe=UTF-8

25 https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/ex-presidente-do-bc-e-indiciado-por-evasao-de-divisas-erzd9wn7ogzms1ddcfz4m7vwu

26 https://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/pre_sp_3.htm

27 https://noticias.r7.com/brasil/carf-protege-grandes-contribuintes-diz-representante-dos-trabalhadores-da-receita-27042015

28 https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/consumo/noticia/7300547/renda-media-brasileiro-foi-268-2017-regiao-mais-rica-recebeu

29 http://agenciabrasil.ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2017-12/expectativa-de-vida-do-brasileiro-e-de-758-anos-diz-ibge

30 https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mais-rico-na-disputa-amoedo-declara-patrimonio-de-r-425-milhoes,70002448655

31 http://publications.credit-suisse.com/tasks/render/file/index.cfm?fileid=AD783798-ED07-E8C2-4405996B5B02A32E

32 https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/os-precos-dos-carros-usados-mais-vendidos-do-brasil/

33 “What Washington Means by Policy Reform,” Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (Washington: Institute for International Economics, 1990).

34 https://www.jstor.org/stable/4538920?seq=1#page_scan_tab_contents

35 https://www.amazon.com.br/Operação-banqueiro-secretas-Satiagraha-História-ebook/dp/B00HSNC0FA

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Ewan Stenz

Creativity. Classical Music. Society. It's confusing… A Brazilian living in Germany writing in Portuguese and English.