Rodrigo Ogi- Aleatoriamente #Review

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Era o início da pandemia em 2020 quando perguntei pro Ogi na DM do Instagram sobre o disco novo: ele respondeu que a ideia era lançar ainda naquele ano, ou no ano seguinte se o evento sanitário terminasse logo. Como sabemos agora, o que viria nos meses seguintes abalaria a todos nós de alguma forma. E o que se viveu no Brasil nesse período afetou não apenas o planejamento da obra, mas certamente sua concepção e desenvolvimento. O quarto trampo do rapper é filho indiscutível do ambiente tóxico e insano dos últimos anos.

Após três anos de espera, o trabalho está aqui: “Aleatoriamente”, produzido por Kiko Dinucci e com participações de Don L, Tulipa Ruiz, Siba, Juçara Marçal, Russo Passapusso e Thiago França. Reconhecido pela capacidade ímpar de elaborar narrativas (versos inventivos, imagéticos) e interpretá-las (flow hábil, voz vibrante) de maneira vívida, Ogi se lança mais profundamente nos devaneios de sua mente e sai de lá com sua melhor coleção de canções. A presença de Kiko na produção trouxe elementos diferentes que exigiram do MC alguma adaptação: quem ouviu o premiado “Delta Estácio Blues”, disco de 2021 da cantora Juçara Marçal que Dinucci produziu, pode se lembrar do ambiente sonoro ali: samples, batidas industriais, e o ruído sendo parte da construção. Em “Aleatoriamente”, há similaridades no uso do desconforto, mas dentro do universo sônico apropriado para um vocal de rapper (que também canta) e não de uma cantora (que também declama palavras). Mesmo assim, a paisagem do álbum difere dos trabalhos anteriores de Ogi.

A coesão temática também chama a atenção. Rodrigo já havia criado canções em sequência que formavam narrativas desde o debut “Crônicas da Cidade Cinza” (Pronto Pra Guerra- Zé Medalha- Besta Fera) e Trindade 1,2 e 3 em RÁ! (2015). Embora ambos discos tenham fio de condução (a cidade de São Paulo em Crônicas e o narrador em psicanálise em RÁ!), o Ogi de “Aleatoriamente” traz uma estória única não linear, repleta de meta-visões e surrealismo: Acompanhamos um sujeito atormentado por trabalhos precários, amores perdidos, neuroses cotidianas (chefes arrombados, ônibus lotados, procrastinação digital, vontade de cagar na rua) com a figura do demônio sempre a espreita. A figura demoníaca reflete o estado agônico do período: doença, neoliberalismo econômico, violência generalizada e alienação refletindo na psique do indivíduo. O que poderia ser panfletário e demasiadamente pesado, mas não com Ogi: há humor, demência e emoção genuína em cada verso.

Musicalmente ousado e diverso, o álbum apresenta camadas que só são plenamente reveladas com audições repetidas. Se a argamassa de batidas quebradas e abrasivas, samples ruidosos e sons distorcidos mantém a estrutura, é dentro das canções que achamos melodias que acenam para além do rap underground. É curioso imaginar que o rapper deve ter escolhido os convidados como um fã de música tendo uma composição que encaixaria perfeitamente com o estilo de cada um: dessa forma, “Valha-me” é uma espécie de maracatu pós apocalíptico com a participação de Siba, compositor pernambucano que opera fazendo pontes entre a tradição e linguagens contemporâneas. Com direito até a um solinho de guitarra cheio de recortes e detritos. “Cupido” ressoa como um samba- axé-industrial em que os sopros de Thiago França irrompem como em um bloco de carnaval. O romance dark e noir de “Eu pergunto por você” só poderia receber as rimas de Don L, um mestre em abordar sentimentos limítrofes. A dinâmica “Peixe” se aproxima do art pop funkeado perfeito para a voz de Tulipa Ruiz.

Ogi entrega uma jornada desnorteante, entre construções líricas ricas e sinuosas e sonoridade cáustica e cheia de nuances. Como um Constantine paulistano, o compositor tenta devolver os demônios ao inferno. Mas e se o inferno for aqui? A trilha sonora está garantida. 9/10

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Music For The People by Eduardo Yukio

Escrevo sobre som, música, sem barreiras. Ja colaborei com +Soma, Vice Brasil. Fui criador do blog Music For The People, lendário no blogspot (dizem)