Óleo, Nordeste e a imagem-bumerangue

Fabiana Moraes
6 min readNov 6, 2019

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Sai a foto do menino esquelético fugindo da seca em 1878, entra o registro do menino no mar coberto por petróleo e um saco de lixo. A quem as cenas de sofrimento de uma região marcada pela omissão governamental interessam?

“Vítimas da Grande Seca”, J.A. Correa (1878) ; Leo Malafaia/Folha de Pernambuco/AFP (2019)

Fabiana Moraes *

@fabi2moraes

A omissão não é apenas uma falta de ação: a omissão é também uma forma sofisticada de ataque.

E o Nordeste brasileiro, está, agora, sendo novamente atacado.

Temos know how: desde que ficamos nacionalmente famosos através das fotos mostrando adultos e crianças esqueléticos, famintos, saídos da seca para serem registrados em Fortaleza por Joaquim Antônio Correa e exibidos no jornal carioca O Besouro, em 1878, fomos alçados ao posto dos que precisam ser eternamente salvos. De preferência, não por políticas públicas estruturantes que minem a desigualdade, mas por pessoas e indústrias muito benevolentes que investem na região algum dinheiro, uns donativos e muita condescendência. A manutenção de um povo que sempre precisa ser salvo significa também a manutenção de um herói.

Passaram-se dezenas de “grandes secas” desde aquela midiatizada no fim dos 1800, que fez dos nordestinos espécies de pop-stars do “real sofrimento” brasileiro. Vários jornalistas estiveram em terras semi-áridas para narrar ao resto do Brasil a nossa dor, entre eles José do Patrocínio e Euclides da Cunha. Em 1902, o segundo lançaria Os Sertões e legendaria o sertanejo (lido comumente como sinônimo de nordestino), como “antes de tudo, um forte”. Tornaria épica e mesmo romântica a nossa condição da falta. Uma falta não percebida como construída, nascida também pela omissão, mas “natural”. “N’Os Sertões a construção do sertanejo, que é ‘antes de tudo, um forte’, cumpre o papel de petrificar, de amarrar tais sujeitos em seu próprio destino já determinado pelas condições do sertão”, escreve Joana Barros em Sertão, Sertões (editora Elefante, 2019).

Foi justamente essa imagem cristalizada de uma gente que, apesar de ter tão pouco, consegue vencer obstáculos com sua força, aquela trazida em milhares de vídeos e fotografias de pessoas sem proteção removendo toneladas de óleo das praias nordestinas. Muitos se emocionaram: lá estava novamente aquele povo que, sem água, sem casa, sem comida, sempre deu um jeito. Mas a quem interessa a perpetuação desse sujeito? Há dois meses sendo atingida por ilhas de petróleo cru, a costa do Nordeste substituiu a caatinga como cenário dessa brava gente que não aprendeu a viver, e sim a resistir. É bonito no texto, mas quase insuportável no dia-a-dia.

Reatualizamos a fotografia do menino fugindo do semi-árido com a imagem do menino saindo do mar coberto por petróleo e um saco de lixo. O primeiro garoto, esquelético, não possui seu nome registrado na imagem antiga e famosa nos livros, pesquisas, reportagens. O segundo é Evérton de Oliveira, 13 anos, que naquele dia, fim de outubro, tentava ajudar a tirar o petróleo da praia de Itapuama (litoral sul de Pernambuco), onde a mãe, Maria, tem uma barraca. Éverton e o menino fotografado nos estúdios de Joaquim Correa não são a mesma pessoa — mas são.

Eles protagonizam o que tenho chamado de imagem-bumerangue: aquela que, apesar dos anos, das novas plataformas de informação, dos novos jornalistas, dos novos governos, sempre volta. E essas imagens do Nordeste retornam tanto para nos garantir que estão ali, intactos, aqueles que precisam ser salvos, quanto por se tratar da região em constante e histórico ataque mantido pela omissão governamental. São fenômenos fundamentalmente conectados.

O vice-presidente da República, General Hamilton Mourão, fez há dias uma boa síntese dessa forma de (não) agir. Ao ser perguntado sobre o que o Estado poderia fazer para coibir o avanço do óleo no mar, ele afirmou que, no máximo, ofereceria “gente capacitada para recolher o óleo quando chegar na praia”. Enquanto isso, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, instrumentalizaram o terrível desastre para fazer política hipócrita-vitimista, ora atacando a Venezuela, ora atacando o Greenpeace, sem entender que, no fim, atacavam de maneira quase jocosa uma população de 57 milhões de pessoas. Salles simplesmente proibiu órgãos como o Ibama de prestar informações para a população e a imprensa. Ao chegar no apontado como provável culpado do desastre, o navio petroleiro Bouboulina (da empresa grega Delta Tankers), JB afirmou no último domingo (3) que “o pior ainda está por vir.” Jogou a frase no ar e não anunciou nenhum plano de ação caso esse pior continue se dirigindo ao Nordeste. Entende-se: ele precisa continuar se dedicando aos seus meninos, garotos muito diferentes dos fotografados aqui. Precisa, enfim, continuar sua política de omissão. Você o viu fazendo isso ao vivo ao lado do secretário de Pesca Jorge Seif Júnior enquanto o último dizia que podemos comer nossos peixes, embora um estudo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) tenha analisado 50 deles e detectado contaminação em todos.

(Mas é verdade que JB, no meio de tudo isso, teve uma ação enérgica e premiou Salles: através da Medida Provisória 900/2019, de 17 de outubro, deu total liberdade ao ministro para criar e gerir um fundo privado formado por recursos vindos da conversão de multas ambientais, que podem chegar a 15 bilhões de reais. Ser premiado pela extrema incompetência — taí uma inovação nesse “novo Brasil”).

São mais de quatro mil toneladas de óleo recolhidas, mais de 270 praias atingidas, mais de 2.500 quilômetros (1/3) da costa brasileira afetados. O seguro defeso liberado para este mês será destinado a cerca de 60 mil pescadores e pescadoras — mas não dá conta de milhares de outras pessoas que, por exemplo, pescam na informalidade (essa modalidade de trabalho tão apreciada pelo governo federal). Mesmo assim, dois meses depois do surgimento do petróleo no mar nordestino, Jair Bolsonaro, para quem tudo do Maranhão até a Bahia é Paraíba, não colocou os pés na região que guarda a segunda maior barreira de corais do mundo. Além de quem vive da pesca, bares, restaurantes, pousadas, também já relatam queda da clientela. Vários podem estar seguindo as recomendações da governamental Agência Brasil/EBC, que em 14 de outubro publicou as orientações do Procon SP informando que consumidores já poderiam remarcar suas passagens para o NE sem prejuízos ao bolso.

Não podemos ficar omissos frente aos consumidores sudestinos, nos informava a agência do governo.

Os Procons nordestinos rebateram a informação, que foi classificada como alarmista.
Repete-se aqui, de certa maneira, uma falsa dicotomia cansada e monocórdica entre regiões que ocupam diferentes espaços de poder no imaginário nacional. De um lado, um Sudeste (mal) representado por um chefe de governo obcecado em transformar Angra dos Reis em “uma nova Cancún” e em extrair minerais de reservas indígenas amazonenses. Fazendo par, um ministro do Meio Ambiente que toma sol tranquilamente em uma praia do litoral paulista, São Sebastião, no dia em que o petróleo cru chegava ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos.

Do outro lado, os nordestinos fortes que aguentam a seca e o óleo, esse povo estóico que certamente vai superar mais essa omissão. Vai caber certinho em nossos estereótipos de cabra — ou mulher — macho. Como dito, somos caracterizados comumente por nossa força, não por nossa racionalidade. Também por nossa pobreza romântica, folclórica, como um dia deixou claro a ex-colunista da Folha, Danuza Leão, ao comparar a pobreza do centro do rio, “urbana e agressiva”, a uma pobreza idílica do Nordeste brasileiro (uma situação que faz parte das imagens-bumerangue, você verá):

“Fiquei pensando nos pobres do Nordeste, que se veem na televisão e em alguns filmes brasileiros; eles moram em casebres com chão de terra batida, sempre muito bem varrido. E têm uma dignidade; não sei bem de onde ela vem, mas ela existe. Talvez por terem um pedacinho de chão só deles, talvez”.

Ora, na agenda do governo Bolsonaro, porque não manter as coisas assim “como elas são”, e preservar nosso “Brasil profundo”?

Essa imagem da casinha pobre, desse nordestino antes de tudo um forte e, novíssima na galeria, do menino banhado em óleo, estão no repertório do que esperam de nós. É uma forma de apagamento que opera dentro da omissão. Citando Rancière em seu já clássico O desentendimento, Joana Barros bem sintetiza: “a invisibilidade política não é a ausência de aparecimento público, e é nisso que reside a maior força desse aniquilamento (…) A invisibilidade política acontece justamente pela superexposição dos grupos sociais, a cuja reivindicação de viver segundo seus próprios termos se imputam valores e sentidos”.

Uma imagem repetida centenas de vezes pode matar.

O respiro é que o nordestino é, antes de tudo, alguém com excelente memória.

*Texto escrito para a Newsletter dos Aliados da Agência Pública

Fabiana Moraes é escritora e jornalista, com doutorado em sociologia. Venceu três vezes o prêmio Esso, foi finalista do Jabuti e é uma das conselheiras da Agência Pública.

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Fabiana Moraes

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões