Falar de, falar sobre, falar com

Fabiana Moraes
5 min readOct 26, 2017

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Dávila, presente na reportagem Fale com elas (Jornal do Commercio, 2010). Foto de Mariana Guerra.

Dois mil e onze. Estava desligando o computador, final de um dia de trabalho na redação, quando um colega se aproximou. “Você checou seu Twitter recentemente?”. Respondi negativamente, já intrigada com o tom grave do rapaz. “Bem, acho que você deveria dar uma olhada lá”, disse ele. Voltei para o monitor e acessei a minha conta. As notificações pipocavam, meu nome sendo mencionado várias vezes. Colado a ele, palavras como homofóbica, escrota, filha da puta, falsa. Um link aparecia em várias das menções. Ele levava até um vídeo no You Tube no qual estava Luísa Marilac, naquele momento a travesti mais famosa do Brasil. Ela surgia ao lado de um computador no qual via-se uma página do jornal do qual eu trabalhava. Apontava para o título (“Luísa Marilac e o sonho de ser aceita”) e parte da matéria que eu escrevera sobre ela dias antes. Ela repetia, enfurecida, os termos que seus seguidores me dirigiam nas redes sociais. Homofóbica. Escrota. Filha da puta. Falsa.

A ira tinha uma razão: o tal “aceita” do título, palavra que tinha sido usada pela própria Luísa quando ela relatou um abraço recebido por uma criança que a reconhecera no meio da rua. A garota era uma das três milhões de pessoas que até então havia visto o vídeo dos “bons drinques”. “Eu nunca recebi tanto carinho em minha vida. Você não tem noção de como isso tá sendo importante para mim, como é bom ser aceita. É claro que eu sentia falta. Eu tomei porrada a vida toda”. Essa frase me tocou fundo: eu ouvira, em nossa quase breve conversa, Luísa falar das agressões sofridas durante sua vida e de episódios de quase morte, como quando levou sete facadas, perdendo parte de um pulmão. Naquele momento, eu já havia escrito duas longas reportagens sobre mulheres trans, a primeira, 2010, a respeito de travestis da cidade, a segunda, 2011, sobre uma mulher transexual moradora do agreste de Pernambuco chamada Joicy. Naquele momento, também, uma colega, Patrícia Gomes, mulher trans que eu conhecera fazendo a primeira reportagem, havia morrido. A matéria sobre Luísa foi dedicada justamente a ela.

Estudo para capa do especial Fale com Elas. Patrícia Gomes, falecida em 2011, está sentada sobre o tapete

A grande questão é que o título também tocou fundo em Luísa, mas por motivos exatamente contrários aos meus. Sem conseguir ler a íntegra do texto, ela interpretou o “aceita” dito por ela mesma, mas ali recontextualizado, midiatizado, como uma mera licença à sua existência, uma condescendência à sua presença no meio social. No que eu vi amor, ela viu mais porrada. No que eu vi aproximação, ela viu mais distância. Com Luísa — e com tantas outras pessoas com as quais eu tive contato na condição de repórter e/ou pesquisadora -, aprendi que nossa melhor das intenções está ancorada, antes de tudo, em um repertório pessoal que pode facilmente não ser compartilhado pelas pessoas com as quais conversamos, as pessoas que analisamos, pesquisamos, representamos.

Neste ambiente de contínua tensão, outra questão se impôs: o desacordo discursivo que surgira conosco tinha relação com o fato de eu, mulher cisgênera nordestina preta, não caminhar sobre calcanhares similares aos dela, mulher trans sudestina branca? Será que não? Eu deveria nos ler por esses códigos, corporificados, geográficos (e que nos separam) ou por aquilo que nos une (nossa condição feminina, nossa origem social)? De lá para cá, com a popularização desse necessário e urgente debate, o falar do outro foi muitas vezes visto — e de fato praticado — como falar pelo outro, em lugar do outro. Questionar essa enorme diferença de posições já é, de saída, um ganho precioso na seara da produção de representações, estas responsáveis por nossa mudez ou nosso grito. Essa discussão requer atenção contínua de quem fala e de quem é “falado”, com o esforço dos primeiros em entender a assimetria historicamente estabelecida nestas posições — e desse esforço deve estar, é claro, a procura em diminuir esse distanciamento. Não é uma tarefa fácil, principalmente quando os representados são pessoas que vivem em condições de pobreza extrema, seja ela material ou afetiva (geralmente, há prevalência de ambas em um mesmo ambiente). Como eu, carinho e alimentação em dia, devo reagir quando uma jovem mulher, grávida e dependente de crack, explorada sexualmente, me pede dinheiro para cigarro ou conta que vai vender seu bebê? Como eu, carinho e alimentação em dia, devo reagir quando uma mulher trans me classifica como homofóbica, a despeito de minha busca pela promoção do contrário? É obvio que a resposta não é fácil, mas nesse caminho fica claro que a mudança e a política vão ser produzidas justamente nesse desentendimento, como teorizou o filósofo Rancière. Não é permitido a quem lida com o sensível do mundo ter medo ou horror a ele. Ao mesmo tempo observar essa objetiva subjetividade não é deixar de perceber minha (sua) própria história e seu lugar no tabuleiro do cotidiano. Ser afetado por questões que não são necessariamente nossas é vital para o desmantelo de desigualdades, vital para promoção do heterogêneo que tanto nos falta. Sem isso, construiremos ilhas de fala e continuaremos a manter confortáveis aqueles e aquelas que há tanto determinam como nós (pretas, nordestinas, trans, pobres) devemos ser observados. Nesse eterno work in progress, corporificar o discurso (os índios que falem pelo índios, as mulheres negras que falem pelas mulheres pretas) pode ser tão perigoso quanto o silenciamento, assim como assumir uma postura heroica de quem “dá a fala”. Novamente, falar DE não pode ser confundido com falar POR, e essa diferença, palavra-chave em toda essa discussão, precisa ser entendida integralmente. Nesse interior é que se estabelece o exercício fundamental: ao falar DE, nós podemos provocar a quebra de imagens/discursos que invariavelmente mantêm as coisas como elas são; ao falar DE, podemos criar condições que tornem possível trazer não apenas essas novas imagens/discursos, mas a chance de dividirmos o espaço no palco com os próprios representados. E aí que passamos a falar COM. Aliás, e quando eles e elas também falarão sobre nós? E quando nós formos apontados, dissecados? São questões urgentes hoje no mundo no qual é preciso deslocar as representações da pobreza — e deslocar, caminho sem volta, a pobreza das representações.

Texto publicado no catálogo Todos os Gêneros — Mostra de Arte e Diversidade, Itaú Cultural 2017. Publicação pode ser baixada aqui.

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Fabiana Moraes

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões