Glamour ou manutenção da servidão?

Fabiana Moraes
10 min readFeb 10, 2019

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reprodução/revista Vogue/maio de 2013

Como se desmantela uma bomba?

Com apuro, técnica, destreza. Com uma enorme força e paciência.

Mas nem toda bomba pode ser desmantelada: algumas precisam, necessariamente, ser explodidas, levando consigo a normalidade estabelecida. Para isso, é preciso apuro, técnica, destreza, força, paciência e ainda a recusa em ser, mais uma vez, didático quando se está sob ataque.

Há décadas que movimentos vários tentam desarticular a trama enredada do racismo brasileiro: conquistam a duras penas alguns espaços, conseguem pautar a politica institucional, furam bloqueios geracionais, etc. Por outro lado, precisam combater a intensa produção e reprodução massiva de estereótipos e distorções, levados a público principalmente através do popularíssimo discurso midiático. Eu poderia aqui citar diversos meios — cinema, publicidade, novelas, games — como instrumentos de propagação destas problemáticas visibilidades. Vou me ater, porém, a um exemplo poderoso que condensa jornalismo, publicidade e moda: a mítica revista Vogue.

O texto é um pouco longo, recomenda-se que não seja lido em uma cadeira de sinhá, seja ela simbólica ou real: não é conforto o que se pretende aqui. Também não há a intenção de desmantelar bombas.

Comprei muitas revistas Vogue durante a vida: como jornalista, cobri moda e suas fashion weeks durante anos e até hoje me interesso demasiado pelo tema. Meu primeiro emprego foi como garçonete em um bar famoso da Zona Norte de Recife, tinha 18 anos e havia acabado de entrar no curso de jornalismo. No bar, recebíamos o salário semanalmente. Na primeira vez em que fui paga, reservei a maior parte do dinheiro para minha mãe, mas antes guardei algo como uns R$ 20. Fui até uma banca na Conde da Boa Vista e pedi uma Vogue. Voltei de ônibus para o conjunto habitacional no qual morava com suas páginas abertas no meu colo.

Há 25 anos, eu olhava os ensaios fotográficos fantasiosos de David LaChapelle e Annie Leibovitz e adorava aqueles deslocamentos da realidade. Eram obras de arte que eu podia acessar.

Há 25 anos, com aquelas páginas em meu colo, eu também sentia um incômodo que não sabia exatamente nomear, algo muito parecido com uma certa inadequação, como carregar em mim algum erro, a sensação de estar fora de uma festa na qual apenas as pessoas “certas” podiam participar.

Essa festa é real e continua firme com toda sua tacanha construção do que é glamour, de quem merece ser visto e principalmente de COMO SERÁ VISTO. É a festa sobre a qual voltamos, agora nacionalmente, a falar.

As imagens de mulheres negras e mesmo algumas brancas (todas vestidas de baianas coloniais) recebendo convidados para um aniversário nababesco de uma diretora da Vogue me mostram que eu, lá atrás, cometi um erro de avaliação: pessoas com a pele escura como a minha podem sim adentrar esses espaços de exclusividade e distinção. São duas as formas mais frequentes de participação: na condição de serviçais ou, um pouco mais “glamourosa” (e perigosa, pois falsamente inclusiva), como atração exótica.

A primeira é a que está disponível nesse momento na imprensa sob a pecha de “polêmica”, termo errôneo que o jornalismo usa em lugar de confrontar as questões com dois dedos a mais de profundidade: diversas matérias e posts nas redes sociais trazem a já histórica festa de 50 anos de Donata Meirelles em Salvador. As imagens de mulheres que remetem ao Brasil colonial demonstram o tamanho da naturalização da escravidão no país. Nas redes sociais, participei de algumas interações/debates. Um deles se deu com uma ex diretora da revista e hoje executiva da Edições Globo Condé Nast, editora que publica a Vogue no Brasil. Ela insistia que não havia nada de errado na presença daquelas mulheres vestidas com aqueles trajes e recebendo os convidados na festa. Era, disse, uma homenagem à Bahia, sua terra natal. Apontei que, ali, elas atuavam na velha condição de serviçais. Eis a resposta da executiva:

A ex-diretora da Vogue acerta na comparação: de fato, aponta uma situação de servidão para explicar outra. Ou seja, usa um exemplo racista para justificar aquele visto na milionária festa, enxerga com normalidade o fato de mulheres negras vestidas como na época da escravidão trabalharem recebendo turistas no aeroporto de Salvador. Relatei o fato no post do Instagram da pesquisadora Lilia Schwarcz e duas mulheres brancas afirmaram que as negras recebendo pessoas fazem parte de nossa tradição e, mais, de nossa “ancestralidade”. A palavra vitimismo, é claro, foi usada para diferenciar as questões.

Há de se observar a imensa diferença entre o que a segunda mulher chama de tradição e a primeira de ancestralidade. De fato, é tradição, no Brasil, mulheres negras receberem o menor salário do mercado e ocuparem em quase 90% os postos de empregadas domésticas. É tradição, aqui, que essas mesmas mulheres passem menos tempo sendo atendidas em consultas médicas (ver livro No País do Racismo Institucional, no fim do texto). É preciso atentar se o que chamamos de “tradição” não é puro racismo estrutural. Se estamos tão preocupados com a ancestralidade, por qual motivo não representarmos historicamente pessoas negras como reis e rainhas? Afinal, eram essas as condições originárias de vários negros trazidos para o Brasil na condição de escravos. Será que só imagens de servidão nos interessam?

Mulheres negras que servem, que cuidam, que são sorridentes e dóceis estão impregnadas em nosso imaginário. Quase todas as manhãs, vemos a apresentadora Ana Maria Braga, branca, sendo ladeada por duas mulheres negras, Valéria da Silva e Maria Ribeiro, que a ajudam, “silenciosas”, na cozinha reproduzida para milhões de espectadores. São, como milhões de outras mulheres negras que atuam servindo, “anjos”, queridas, e, claro, coadjuvantes. Na Vogue também podemos ver imagens parecidas, como aquelas publicadas na revista em maio de 2013: no ensaio Glamour Old School (o título que traz “velho” em inglês é realmente apropriado), vemos uma mulher muito magra, branca, sendo “cuidada” por uma doméstica negra (lembra a famosa foto da babá negra carregando gêmeos enquanto pai e mãe brancos seguiam em seu ato cívico). A ironia e a violência repousam ainda no fato de a capa da edição de maio trazer a modelo negra Naomi Campbell.

reprodução/vogue brasil/maio de 2013
No trono de candomblé, a nova coleção de Valentino. De pé, trajes do Brasil Colonial

Mas, se Naomi está na capa, a Vogue não pode ser racista, confere? É aí que mora a perigosa operação retórica: a presença pontual de mulheres negras na revista serve como uma espécie de cano de escape para aliviar tensões que anos de invisibilização criaram. Serve poderosamente para que a revista se esquive de se entender como produtora e reprodutora de nossa falta de cidadania visual (termo empregado pela pesquisadora Rose Melo Rocha). A Vogue America tinha nada menos que 89 anos de circulação quando colocou pela primeira vez em sua capa uma mulher negra, sozinha: em 1974, Bervely Johnson furou o bloqueio do que era visto como “ o normal” (pessoas brancas) e repousou sua face em milhares de bancas de revista. A vista como muito moderna Vogue Paris só trouxe uma negra pela primeira vez em 1988 — e ainda se mostra quase hermética no momento de repetir o feito. A Vogue britânica demorou 102 ANOS para colocar uma mulher negra na capa: só ano passado, na edição de setembro, uma pousou ali. Foi Rihanna, com todo o peso de seu capital, quem conseguiu furar esse imenso bloqueio.

Depois de quase 90 anos de criação, a Vogue America colocou uma negra na capa, a modelo Bervely Johnson

No Brasil, país no qual mais da metade da população se declara preta/parda, a Vogue passou 36 anos para finalmente trazer uma mulher negra, sozinha: é a pernambucana Emmanuela de Paula, que aparece na foto usando branco, os cabelos lisos. Na chamada, um político mas aqui esvaziado “black is beautiful” anuncia uma edição apenas com modelos negros e negras. A Vogue repetia as famosas “black issues” das pares estrangeiras e, parece, acreditou ali ter decretado que evitar a pele escura nas suas páginas era coisa do passado.

Emmanuela e a edição com modelos negras, a primeira na história da Vogue Brasil: exceção que confirma regra

Mas não foi bem assim. Um artigo apresentado no 5 Congresso Cientifico Textil e Moda, realizado em São Paulo em 2017, analisou a Vogue Brasil durante dois períodos — 2009 a 2012 e 2013 a 2016. Foram 96 exemplares. As pesquisadoras Ana Martins e Julia Pasqualinotto queriam verificar a presença de mulheres pretas nas edições. No ano em que estampou “black is beautiful” com Emmanuela, a Vogue dedicou todas as outras 11 capas a modelos brancas. Em 2009, todas as 12 foram para mulheres brancas. Em 2010, apenas uma capa traz uma mulher negra — que é vista em meio a outras, brancas. O mesmo aconteceu em 2012 (pós decreto “black is beautiful”). A escassez de pessoas negras se repete em todos os anos posteriores, apesar de uma nova black issue (edição 413) ser lançada em janeiro de 2013 . A chamada: “Joan Smalls, a n. 1 do mundo, é negra. Esta edição também!”. Como se vê, a presença de uma negra precisa ser especificada, dada a sua raridade. É aí que entra a operação de exotificação, tão comum no ambiente midiático e vista em diversos momentos na revista — um ensaio trazendo modelos na África é um triste exemplo da participação negra na tal festa.

Ensaio publicado na Vogue America e Vogue Brasil: como é fashion a supremacia branca

Todo o barulho provocado pela festa de Donata, que incluiu um mal ajambrado pedido de desculpas em seu Instagram, nos mostra que, apesar das recusas em se saber reproduzindo atos racistas, imprensa e outros meios midiáticos não podem fingir que não há um enfrentamento lá fora, e que não se pode continuar a usar a figura e a história das pessoas — negras, indígenas, transsexuais, etc — como cenários. Não se pode insistir com a percepção de um ser universal normal — aquele que estampa com folga as capas da Vogue — enquanto os outros são exóticos e merecem edições especiais, não participando do cotidiano, ou seja, da naturalidade. Seria ótimo se a revista seguisse o exemplo da National Geographic, que veio a público e pediu desculpas pelo racismo praticado em sua linha editorial durante décadas: tiveram a coragem de apertar o botão e explodir sua bomba retórica para refundar o discurso da publicação.

Enquanto isso não acontece, Vogue e um vasto segmento da moda e de seu jornalismo especializado seguem caducando, desconectadas do ao redor. Durante toda discussão provocada pela festa pobre, foi impossível não lembrar das mulheres que entrevistei nos banheiros da Bienal em 2010, quando acontecia mais uma edição da São Paulo Fashion Week. Cumpriam a função da limpeza e varrição e andavam com tênis rasgados, roupas compradas em bazares de igrejas (não, não era “garimpo em brechó”) e viviam a cerca de três horas dali. Jennifer, Taynara, Telma, Joice, Nildes, Maria Lúcia: ganhavam entre R$ 24 a R$ 38 reais por dia e eram quase invisíveis no meio daquela massa que ou já fazia parte da festa da visibilidade ou lutava para entrar nela. No caso delas, não havia nem mesmo o micróbio desse desejo, pois eram constantemente ensinadas que seu espaço era, no máximo, ali, nos banheiros, longe do glamour.

Telma e Taynara, mãe e filha, limpavam os banheiros na São Paulo Fashion Week em 2010

A mídia massiva tem, em um país de educação fraturada como o Brasil, papel pedagógico, logo seu conteúdo precisa ser levado a sério tanto por quem o produz quanto por quem o consome. Precisamos nos perguntar, por exemplo, por qual razão a Helena protagonizada por Taís Araújo no horário nobre global ter sofrido chuvas de críticas. Nos perguntar até quando nós, negras e negros, vamos firmar acordos com quem usa o discurso da negritude para se capitalizar, fazer boa figura, deixando de reconhecer sua responsabilidade na manutenção das coisas. Não é mais possível deixar que se instrumentalize a cor de quem ganha menos e morre mais no Brasil, que higienizem a escravidão com a desculpa de reverenciar tradições.

Não precisamos entrar na festa, mas sim fortalecer a nossa. Antes, porém, é preciso buscar aquela cadeira. Afinal, como nos lembra Elza, ela sempre foi nossa.

Mais (texto e música):

  1. No País do Racismo Institucional (livro completo que escrevi para o MPPE/PE)

2. Sobre Diferença sem Separabilidade (Denise Ferreira da Silva)

3. Quem Pode Falar? (Grada Kilomba)

4. Para ouvir: A mão da limpeza, Gilberto Gil (“Mesmo depois de abolida a escravidão, negra é a mão de quem faz a limpeza. Lavando a roupa encardida, esfregando o chão, negra é a mão, é a mão da pureza”)

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Fabiana Moraes

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões