Diários confinados 1: Simétricas aparências

Fabio Fonseca de Castro
2 min readMar 22, 2020

--

A imagem da organizada fila de supermercado (imagem 1), na cidade italiana de Prato, faz pensar no Golconda, o quadro de Magritte, pintado em 1953 (imagem 2). O respeito às regras de distanciamento pessoal, que passaram a ser necessárias em todo o mundo em função da epidemia, parecem encontrar uma representação profética no quadro de Magritte.

A chuva de homens retratada no quadro pode ser lida como uma alegoria da representação. Os homenzinhos pintados podem parecer iguais — afinal se vestem da mesma maneira e têm semelhanças físicas, mas eles não são iguais. Olhem para os rostos e perceberão. Representações enganam, mentem.

Tal como, aliás, a riqueza dos diamantes produzidos durante séculos na cidade de Golkonda, na Índia, que dá nome ao quadro.

Essa pintura parece ser uma alegoria crítica do individualismo, do isolamento, mas Magritte não deixou explicações — afinal, era um surrealista…

Livre de imposições interpretativas e confinado em casa nestes tempos de coronavirus, fico pensando nas aparências de nosso mundo, que esta epidemia desvela: as aparências de simetria entre as pessoas e de que todos terão as mesmas condições de sobreviver ao vírus; as aparências de riqueza produzidas pelo modelo ambiental do capitalismo, produtivista, que estabeleceu as condições, insuficientes, que temos hoje de combater o vírus; as aparências do consumismo, que apenas falsamente distingue as pessoas; a aparência de que somos seres autosuficientes, individuais, simetricamente demarcados por uma certa ideia de “sujeito”; as aparências de governabilidade que o presidente Bolsonaro e sua gangue ainda transmitem para alguns.

Notas:

1. Golconde é um óleo sobre tela com 81cm/100cm e hoje está na The Menil Collection, em Houston, no Texas.

2. A cidade italiana de Prato, na Toscana, não distante de Florença, tem duas curiosidades a observar no contexto: primeiro, tem uma das maiores populações chinesas da Itália, notadamente imigra te da província de Wu-Han; e, segundo, é o município italiano que registra, proporcionalmento, dentre as cidades que o registram, o menor número de mortes pela Covid 19 em todo o país: 5 mortes.

3. Golkonda é uma cidade fantasma situada no atual estado de Andhra Pradesh, na Índia. Suas ruínas, suntuosas e refinadas, construídas sobre uma colina de granito com 120 metros de altura, atestam um passado de riqueza, associada à produção de diamantes. Durante séculos foi uma das cidades mais ricas do mundo e capital de um reino independente, em guerra constante contra os mongóis e outros reinos indianos.

Fábio Fonseca de Castro — Professor da UFPA

--

--