Amor Fati na mesa ao lado.
Tem gente que é descuidada. Outras, são espécimes exóticas. Estes dois aqui ao lado, são as duas coisas.
Ele, de figura doentia. Mal vestido, de sujeira aparente. Ela, de aspecto cansado, exausta do viver, como se todo o esforço jamais devolvesse qualquer benefício.
Aparentemente, poderiam reclamar da loteria genética, da distribuição de renda, da justiça social, da incoerência dos padrões.
Mas, há algo feliz no jeito como ele conta que foi ao dentista. E abre a boca e mostra que algo lá dentro ainda está mal.
Existe um brilho por trás dos óculos grossos dela. Um olhar de admiração aos cabelos meio loiros, meio calvos e, numa terceira metade que a literatura me permite, meio grisalhos quase cinza.
Ela toma sua coca ignorando a pança sobressalente.
Ele ignora a falta de volume nos seios dela. E não disfarça a vontade de atirar-se em seu peito reto.
Não me julguem.
Não falo de mero desalinhamento facial. Falo de narizes, queixos, sobrancelhas e um conjunto muito particular de traços.
Ele tira a mão da bochecha inchada e estende sobre a mesa.
Ela prende os cabelos de corte indefinido, revela as orelhas largas. Em seguida, segura os dedos ossudos que repousam ao lado do prato vazio.
Há um silêncio puro, seguido de um cochicho. O garçom traz uma fritura qualquer enrolada em papel pardo.
Ele levanta, puxa as calças que lhe caem pela falta de bunda.
Ela levanta, fecha o botão que havia aberto para o conforto da posição sentada.
É a vez dela estender a mão. Ele pega a fritura enrolada no papel já translúcido e prende sob o sovaco. Depois segura firme a mão da amada.
Ele fala qualquer bobagem. Ela ri com prazer e responde polissilábica. Ele abre os olhos cheios de admiração profunda e verdadeira.
Eles se vão de mãos dadas.
Lá fora, vejo através da janela molhada, tocam os dentes tortos num beijo pleno.
Estão cegos aos belos, aos ricos, aos arrumados, aos bem-sucedidos, aos tristes, aos solitários, aos falsos, aos quaisquer que sejam.
Eles nada querem de todos os outros.
Eles só se querem.
Só querem a si.
Ignoram tudo o que não é seu. Evitam distrações. Escolheram amar o que de fato têm. E brilham mais que o papel pardo onde o salgado foi enrolado. Brilham de 'amor fati', do latim amor aos fatos. Para os estóicos, aceitar de bom grado. Na filosofia de Nietzsche, amor integral ao destino. Para o casal feio, amar apesar da dor de dentes, da opinião alheia, do observador entediado, da crônica preconceituosa.
Às mordidas, eles rasgam o papel pardo, saboreiam salgado e se beijam ao mesmo tempo. E neste momento, a curiosidade deste escritor se extingue.