Uma proposta de política monetária para o Brasil — Parte I

Fabrício
20 min readOct 18, 2019

--

Para ter uma base sobre a atual política monetária brasileira, clique aqui.

O objetivo desse artigo é fazer uma sugestão simplificada de mudança de política monetária e revisão da função do Banco Central no Brasil utilizando como pilar central um ativo digital desenvolvido com uma combinação única de tecnologias, o Bitcoin, cuja infraestrutura é decentralizada, conta com registro de transações imutável e público, pode ser transferida entre partes globalmente sem intermediários e sua emissão é limitada, tornando-a verdadeiramente escasso. Para formular essa sugestão, foi necessário criar hipóteses baseadas no histórico do valor do Bitcoin e sua adoção pelo mercado, tendo a consciência de que tais hipóteses são estritamente conjecturas de cenários possíveis, mas absolutamente imprevisíveis. O tema é tão recente que apenas a imaginação pode nos dar visões do futuro do uso e desenvolvimento dessa nova tecnologia.

Introdução

O dinheiro é algo presente na vida de todos. É uma das tecnologias mais antigas desenvolvidas pela humanidade. A relação com o dinheiro se tornou ao longo do tempo algo tão inerente na vida das pessoas que passou a ser uma banalidade e, apesar de presente, não é estudada como deveria pela maciça maioria. São poucos os que se interessam pela história, pelo funcionamento, pelo propósito real que fez o dinheiro existir. O que é unânime é o desejo pelo acesso a grandes somas de dinheiro, geralmente, objetivando o consumo, sem se importar com o que realmente importa, que é a liberdade e as funções de reserva e transferência de valor no espaço e no tempo.

O dinheiro foi uma das tecnologias que proporcionou avanços na humanidade que provaram a diferença entre os homens e os animais irracionais. Ele foi uma nova forma de linguagem, a linguagem da transferência de valor, permitindo a ação histórica de longo prazo. Viabilizou a concentração e cooperação de esforços em causas pontuais, mesmo com cada individuo tendo interesses próprios distintos, resolvendo o problema da “dupla coincidência”. Viabilizou a especialização, o débito, e, consequentemente, a prosperidade do ser humano alcançou outro patamar. A transferência de valor é uma forma de linguagem que, por sinal, surgiu antes da escrita, dado que existem descobertas arqueológicas de “colecionáveis” e expressões de arte que datam de antes dos primeiros vestígios de escrita.

Ao longo do tempo, a tecnologia do dinheiro mostrou sua força e importância tendo sua utilização sido constantemente aprimorada. O uso do dinheiro se tornou naturalmente um instrumento de poder, e a formidável criatividade humana tratou de buscar formas para exercer esse poder cada vez mais, contornando o tanto quanto fosse possível, todas as limitações para o acúmulo de dinheiro no curto prazo que surgiam durante esse processo, chegando ao ponto da busca pelo poder através do dinheiro, sobrepor a função original do dinheiro, corrompendo seu funcionamento e propósito, causando, na minha opinião, um grande retardo no desenvolvimento humano.

Atualmente, esse retardo do desenvolvimento não é tão perceptível para a maioria das pessoas, porque o nível da qualidade de vida alcançado pela parcela da população que detém a maior parte da riqueza do mundo é consideravelmente confortável, e a parcela mais pobre sequer tem referências ou condições de avaliar nada, já que a principal preocupação é sobreviver. Essa realidade camufla o fato que estamos patinando economicamente e retrocedendo culturalmente. Zona de conforto excessiva para poucos, escravidão econômica para muitos. Os mecanismos de estímulo e competição natural da vida estão distorcidos.

Neste trabalho, vamos brevemente revisar a história do dinheiro até os dias atuais, apontando alguns detalhes importantes no processo de distorção do uso e das funções do dinheiro, apresentando uma sugestão baseada em um fato novo, o surgimento do Bitcoin, que já provou ser uma solução tangível e real, sendo portanto uma questão de tempo para que seja adotado em larga escala. Assim, fazendo com que aqueles que se anteciparem sejam os maiores beneficiados nessa nova era cujo o resgate do dinheiro “legítimo”, sob uma versão realmente aprimorada, está ocorrendo e certamente resultará também no resgate da cultura virtuosa, com estímulos saudáveis às ações de longo prazo sustentáveis.

Uma breve história do dinheiro

A função e a origem do dinheiro

A história do dinheiro é fascinante. A abordagem do estudioso Nick Szabo (2002) que trata os “colecionáveis” como a gênese da reserva e troca de valor, e a investigação de David Graeber (2011), que aponta a criação do débito como algo simultâneo ao dinheiro são muito interessantes e mostram a importância de uma tecnologia que possa realizar o controle e a transferência de valor no espaço e no tempo.

Os colecionáveis e controle contábil dos mesmos levaram o dinheiro até outro ponto de inflexão, que foi a existência de vários “dinheiros” diferentes. Desse dilema, começa a era dos metais e da moeda. Carl Menger (1982), o pai da escola austríaca de economia, foi pioneiro na análise das origens do dinheiro na era das moedas. A tecnologia já existia, tendo passado pelos colecionáveis, “planilhas” de débito, metais preciosos e as moedas. Contudo, Menger observou com muita lucidez que o que transformava uma moeda ou algo em “Dinheiro” era sua liquidez, e que para se ter tal liquidez, era necessário ter uma reserva de valor que fosse possível utilizar como meio de troca. Ou seja, as pessoas tinham que ter interesse indiscutível em possuir a moeda em questão, e a mesma precisaria ter características que tornassem possível seu valor ser mantido, sendo estas a escassez, a dificuldade de falsificação, a durabilidade e a possibilidade de transporte. Tendo conquistado essas características, o “dinheiro” passa a ser associado à três funções tidas hoje como clássicas, sendo estas: reserva de valor, meio de troca e unidade de conta, sendo a ultima condicionada a um ponto de total adoção em larga escala pelo mercado, que servia como uma espécie de consolidação das outras duas funções antes desse estágio.

A opção das pessoas é subjetiva e não existe definição certa ou errada de dinheiro, mas as características descritas têm se mostrado determinantes na escolha das pessoas, apesar de distorções na função do dinheiro terem sido uma constante ao longo de sua história. Como veremos a seguir, o dinheiro passou a ter uma quarta função ou característica nada nobre além das três “originais”, deixando de ser apenas uma tecnologia formidável para o desenvolvimento humano, e passando também a ser uma eficiente ferramenta para controlar as pessoas.

Metais monetários

À medida que a capacidade técnica da humanidade avançou e o uso de commodities e metais cresceu, muitos metais passaram a ser produzidos em quantidades grandes o suficiente para se tornarem meios monetários, devido a sua liquidez, durabilidade, valor relativamente alto e escassez, pois inicialmente a produção de metais não era fácil e o aumento de seu estoque era lento.

Entre eles, teve destaque o ouro e a prata por serem mais escassos e duráveis. O ouro, cuja durabilidade é considerada quase que indestrutível, possibilitou que humanos pudessem criar reservas de valor que atravessaram gerações, permitindo o desenvolvimento de uma visão orientada no longo prazo.

Um dos obstáculos para o aumento da liquidez dos metais era a necessidade de apenas poder medir a quantidade pelo peso, mas à medida que a metalurgia avançou, surgiram as moedas uniformemente cunhadas com marcas indicando o peso e a origem de sua produção.

Essa solução fez com que moedas de ouro, prata e bronze fossem utilizadas como as principais formas de dinheiro por mais de 2500 anos, desde a cunhagem das primeiras moedas pelo rei Creso da Lídia (Grécia), no século VI a.C., contribuindo fortemente para consolidação do controle e monopólio governamental sobre o dinheiro.

As moedas feitas com os metais permitiram expressivos avanços desde a criação de grandes mercados, atividades especializadas e comércio internacional. Entretanto, dois grandes problemas também surgiram, sendo o primeiro problema cambial entre os diferentes tipos de metais, diretamente ligados ao seu estoque à medida que a produção crescia e o valor caia, como foi o caso da prata. E o segundo problema muito sério foi a frequente pratica adotada por governos e falsificadores de alterar o conteúdo de metal precioso nessas moedas, reduzindo seu valor e, consequentemente, transferindo uma fração do seu poder de compra para os falsificadores ou o governo, comprometendo a pureza e a “legitimidade” do dinheiro.

A história mostra que o ouro foi o vencedor entre os metais dando início ao padrão ouro, que será tratado a seguir.

O padrão ouro

O padrão ouro não foi intencionalmente implementado, o objetivo era o bimetalismo entre ouro e prata com sua relação sendo determinada por decreto (MISES, 1949), mas os fenômenos de mercado e a busca subjetiva pelo “dinheiro legítimo” fizeram do ouro o campeão e, no século dezenove, com o desenvolvimento dos bancos e da comunicação, indivíduos passaram a poder transacionar com papel-moeda e cheques lastreados por ouro nos cofres do seus bancos. Isso resolveu a questão cambial que existia entre diferentes moedas metálicas e viabilizou a concentração de todas as escalas de transação sob o padrão ouro levando o nível de liquidez do mercado a outro patamar.

O ouro venceu claramente a disputa da reserva de valor na humanidade por dois motivos principais, sua composição química e física que o torna quase indestrutível e sua escassez aliada a um custoso processo de mineração. Isso significa que o estoque de ouro após milhares de anos de mineração, continua nas mãos das pessoas e não há como a produção anual interferir com relevância no preço mesmo que haja um aumento da demanda. O estoque é muito maior que a produção possível para chegar a prejudicar o preço do ouro e consequentemente sua posição como reserva de valor.

O padrão ouro permitiu um acúmulo de capital e comércio internacional sem precedentes no globo, unificando majoritariamente a economia em um escolha mútua de dinheiro “legítimo”. Entretanto, o padrão ouro possui algumas “falhas” como o problema do custo e risco tanto para transportar grandes quantias em longas distâncias, como para custodiar, fazendo com que sempre seja necessário a utilização de intermediários na operação e no uso do ouro como moeda em larga escala, necessitando de mecanismos de consolidação centralizados, dando margem para emissões de meio de troca não lastreados pelo ouro em estoque com tais intermediários. Uma prática real mas consideravelmente limitada pela possibilidade de uma corrida do mercado para sacar o ouro. O uso de agentes intermediários também cria pontos centrais de falha que podem ser atacados por criminosos ou controlados pelo governo.

O controle do dinheiro por parte do governo, mesmo sob o padrão ouro, que mitigou de forma considerável o poder destrutivo de um governo com relação à moeda, mostra que tal centralização de poder dá margem para riscos que prejudicam a “legitimidade” (soundness) do dinheiro e que quando esses riscos se tornam realidade, o resultado coincide com declínio civilizacional e colapso social. Um grande exemplo na história é o caso do império romano (AMOUS, 2018). Tornaremos a tratar sobre o dinheiro como sistema de controle mais adiante, agora vamos examinar os benefícios provocados pelo padrão ouro e a existência de um dinheiro “legítimo” (soundmoney) reconhecido internacionalmente.

“La Belle Epóque”

Em 1871, com final da guerra Franco-Prussiana e consequentemente com a mudança do sistema monetário das maiores potências europeias para o mesmo padrão, o ouro resultou em um período de prosperidade que continua a impressionar até os dias atuais quando relembrado. A segunda metade do século dezenove foi indiscutivelmente o período de maior prosperidade, inovação e desenvolvimento que a humanidade já tinha visto, e o papel monetário do ouro nesse processo foi determinante. O mercado de câmbio de moedas entre diferentes nações era todo baseado em ouro, tornando as conversões entre moedas fácil, usando medidas de peso em ouro para tal.

Moedas nacionais eram apenas uma maneira de medir valor econômico representado na reserva de valor universal, o ouro. A base monetária de cada país não era uma métrica determinada por um banco central, mas pela dinâmica natural de mercado. As pessoas podiam acumular ou gastar no mercado que desejassem livremente. A base monetária não era sequer facilmente mensurada.

A “legitimidade” do dinheiro, além de ter sido refletida no livre comércio no mundo, aumentou a poupança nas sociedades mais avançadas que estavam utilizando o padrão ouro. Esse acúmulo de capital foi quem viabilizou o financiamento da industrialização, urbanização e os avanços tecnológicos que moldaram nossa vida moderna. Em 1900, aproximadamente 50 países estavam oficialmente no padrão ouro, e até os que não estavam tinham moedas de ouro sendo usadas como o principal meio de troca em suas economias.

O termo “La Belle Epóque” significa a “A época bela”, e esse período obteve esse título justamente porque alguns dos maiores avanços tecnológicos, medicinais, econômicos e artísticos da humanidade foram realizados nessa época, a época do padrão ouro, que nos Estados Unidos ficou conhecida como a “Era dourada”.

O acúmulo de capital nesse período possibilitou uma expansão global do modelo de civilização ocidental levando a liberdade, a prosperidade e o aumento substancial da qualidade de vida para alguns dos cantos mais remotos do planeta. A chegada dessa era foi um dos marcos mais importantes na história do desenvolvimento humano, e durou até o início do século vinte, quando em 1914, grandes economias do mundo deixaram o padrão ouro e estourou a Primeira Guerra Mundial. Após esse período, que a humanidade mais se aproximou do dinheiro “legítimo” ideal através do padrão ouro, mesmo com as falhas já descritas, veio a era do dinheiro controlado pelo governo sem as limitações impostas pelo padrão ouro e as inevitáveis consequências têm sido desastrosas até os dias atuais.

O “dinheiro estatal”

A partir desse momento foi que os governos das maiores economias perceberam que o mercado havia alcançado uma escala que permitia literalmente a “criação de dinheiro” pelas instituições financeiras através da atividade bancária e as “reservas fracionárias” (ROTHBARD, 2010). Apesar do padrão ouro, estas instituições utilizavam em seu favor mecanismos de consolidação e a credibilidade de seus meios de troca que, em tese, eram lastreados em ouro, para calcular os riscos de uma corrida pelo saque do ouro, fazendo com que a atividade bancária tivesse um potencial imenso de criação virtual de riqueza, levando governos a concluir que deviam tomar o setor através da regulação e dos bancos centrais.

A criação dos bancos centrais foi um fator determinante para explorar a fragilidade do padrão ouro diante dos governantes, pois o monopólio da força exercido pelos governos tem controle sobre as instituições financeiras e pode confiscar fisicamente o ouro da população já que esconder e transportar grandes quantidades do metal é muito difícil e custoso. As práticas que levaram ao fim do padrão ouro eram muito tentadoras para serem evitadas. Dissidentes de tais ideias eram silenciados e propagandistas trabalhavam a todo vapor diante da força econômica gerada, mesmo que de forma insustentável, sem o devido lastro. Foi o fim da era do dinheiro escolhido pelo livre mercado e o início da era do dinheiro do governo sem o padrão ouro, o “fiat”, que é a moeda fiduciária cujo o significado vem do latim e significa: decreto, ordem ou autorização.

A vigilância da população com o intuito de restringir esse processo foi sendo minada pelo efeito de “relaxamento intelectual” que acompanha o conforto da riqueza (GLUBB, 1978), reduzindo gradualmente o nível do conhecimento por gerações, deixando o consciência sobre os riscos de dinheiro “ilegítimo” no passado e as pessoas cada vez mais vulneráveis aos vigaristas e economistas ligados ao governo, que têm interesse em se beneficiar financeiramente e controlar vida das pessoas literalmente na trapaça, através do controle da moeda, da base monetária e, consequentemente, das relações comerciais e da possibilidade de acúmulo de capital.

Mesmo advogando pelo fim do padrão ouro e eventualmente chegando a esse ponto, governos continuaram mantendo reservas em ouro. Afinal, manter reservas em moeda estrangeira é concentrar riqueza em uma reserva de valor nas mãos de quem tem o controle da emissão dessa moeda, e mesmo com toda a credibilidade ou pujança de uma dada economia como a americana, as reservas em ouro proporcionam uma segurança que comprova a vitória do ouro sobre as moedas governamentais, dado que mesmo se todos os bancos centrais resolvessem vender suas reservas de ouro, que giram em torno de 20% do estoque total, o impacto no preço não seria tão grande diante da liquidez do metal que rapidamente seria absorvido no mercado, pois além da função monetária, tem uso industrial e estético (que também funciona como reserva de valor).

A moedas fiduciárias sem padrão ouro, fiat, são por definição de curso legal e o mercado é literalmente obrigado a utilizá-las. O interessante é que mesmo sem o padrão ouro oficial — que possibilitava a troca da moeda por ouro — os bancos centrais das principais moedas fiat, que são reservas de outras moedas fiat (como é o caso do Real do Brasil que usa o Dólar como reserva), têm reservas em ouro. Ou seja, no final, todas os emissores de fiat continuam respeitando o ouro, confirmando o risco, a fragilidade, a desconfiança nas fiats após anos de abuso estatal do monopólio do dinheiro cada vez mais distante do livre mercado. O fato é que os governos e seus bancos centrais procuram literalmente se proteger de suas próprias práticas irresponsáveis e insustentáveis usando o ouro, e ao mesmo tempo, privam todas as pessoas de fazer o mesmo, mantendo todos sob controle.

A 1ª Guerra Mundial foi marcada pela inovação monetária que efetivamente saia do padrão ouro. Até então, os recursos do governo para uma guerra eram limitados a suas reservas em ouro, e no calor do combate cobrar mais impostos para fazer caixa não é exatamente muito eficaz. Eliminar o padrão ouro e poder livremente emitir mais moeda, fez com que o governo tivesse acesso a toda a riqueza da nação independente de impostos para financiar suas guerras. Enquanto os cidadãos e estrangeiros aceitassem a moeda, a guerra seguiria sendo financiada.

O desdobramento do fim do padrão ouro após a guerra, gerou o que Hayek chamou de “Nacionalismo Monetário”. Segue a tradução de minha autoria de um trecho do livro Monetary Nationalism and International Stability:

Aponto como Nacionalismo Monetário a doutrina que diz não poder a parcela de um país na base monetária global ser determinada pelos mesmos princípios e mecanismos que aqueles que determinam os valores relativos de dinheiro em suas diferentes regiões e localidades. Um verdadeiro sistema monetário internacional teria uma moeda homogênea em todo o mundo que pudesse ser obtida em países distintos, cuja flutuação entre regiões fosse determinada pelo resultado da ação de todos os indivíduos. (HAYEK, 1989, p.4)

Após a 1ª Guerra, o mundo nunca mais retornou plenamente ao padrão ouro como moeda homogênea. O monopólio dos bancos centrais e suas restrições para a posse do ouro forçaram as pessoas a usar o dinheiro do governo, fiat, que mesmo não sendo mais convertido em ouro para as pessoas, ainda tinha alguma relação com o ouro através dos bancos centrais.

A Segunda Guerra Mundial, Bretton Woods e o fim do padrão ouro

O abandono do dinheiro “legítimo” e sua substituição pelo dinheiro do governo fiat transformou as principais economias do mundo em fracassos com planejamento central dirigido pelo governo. À medida que governos controlaram o dinheiro, eles controlaram a atividade econômica, política, cultural e educacional. Foi nesse cenário que Jonh Maynard Keynes (1936) emerge como a grande referência intelectual na economia, pregando o gasto público, controle de preços e a manipulação da moeda como a solução para todos os problemas econômicos que, segundo ele e toda a classe política, haviam sido gerados pelo uso de uma política monetária baseada em dinheiro “legítimo” e no livre mercado com pouca regulação. A partir do momento que os governos das maiores economias perceberam que as ideias de Keynes fundamentavam exatamente o que viabilizava seu aumento sistemático de poder às custas de toda a nação, o mundo embarcou em um experimento econômico que até hoje perdura com consequências nefastas e corrupção generalizada nas mais altas esferas de poder para alimentar a narrativa de que esse experimento é benéfico.

O acesso ilimitado à riqueza das nações permitiu a construção das mais avançadas máquinas de guerra que o mundo já havia visto e, partindo da premissa de que o gasto estatal era a locomotiva do desenvolvimento, não foi difícil concluir que utilizar essas máquinas na guerra de fato, seria a fonte de gastos mais eficiente para alimentar o “desenvolvimento” via Estado, fundamentado por Keynes com retórica notável. Essa linha de pensamento e experimento econômico foi combustível para o horror da 2ª Guerra Mundial e as consequências econômicas que ela provocou para todo o mundo.

O final da segunda guerra fez com que economistas “Keynesianos” como Paul Samuelson (1943) previssem cenários escatológicos de desemprego e crise devido à redução drástica dos gastos governamentais e seu controle de preços. A previsão era que, o que já não estava bom, iria piorar. Mas ao contrário do previsto, o corte de gastos públicos aliado à remoção dos controles de preços nos Estados Unidos provocou o efeito contrário e houve boom econômico, deixando claro para tais economistas que sua noção de que o desenvolvimento econômico é diretamente ligado aos investimentos públicos, era nada menos que ridícula (AMOUS, 2018). Assim que o controle de preços acabou, desde a crise de 1929, e os mesmos puderam se ajustar livremente, eles fizeram seu papel de mecanismo de coordenação na atividade econômica e mesmo sem ser o ideal, dado o fato que o mundo continuava sem o padrão ouro, a situação melhorou, mas não evitou a cíclicas crises provocadas pela falta do uso do dinheiro “legítimo”.

Em 1944, os Estados Unidos da América promoveram o encontro de Bretton Woods em New Hampshire, convocando seus aliados para discutir a formulação de um novo sistema internacional de comércio. O acordo resultou no estabelecimento do dólar como a reserva de valor global a ser usada por outros bancos centrais com taxas de câmbio fixas, e o dólar, por sua vez, também poderia ser resgatado em ouro. Apenas entre bancos centrais, pois o banco central americano receberia o ouro de todos os outros bancos centrais — também por uma taxa de câmbio fixa. Com o acordo, em tese, o sistema monetário global ainda estaria baseado em ouro. Mas como era esperado diante da mentalidade “Keynesiana” entre economistas e governantes, os Estados Unidos não contiveram a emissão de dólares de acordo com as reservas de ouro e se tornou uma questão de tempo até que as taxas fixas de câmbio se tornassem insustentáveis. Para mitigar esse processo, foi criado o Fundo Monetário Internacional para fazer a coordenação global entre bancos centrais visando a estabilidade das taxas de câmbio e fluxos financeiros (AMOUS, 2018).

Em essência, Bretton Woods tentou fazer através de planejamento central, o que o padrão ouro internacional havia feito espontaneamente no século dezenove. No padrão ouro, capital e produtos fluíam livremente sem nenhuma necessidade de controle ou direção. Toda a movimentação entre fronteiras era realizada de acordo com a vontade discricionária das pessoas e problemas macroeconômicos não emergiam. Essa tentativa não tinha como dar certo com cada país manipulando sua moeda de acordo com a conveniência política do momento, fazendo com que o processo de desvalorização de moeda provocada por governos fosse um indutor de fluxos de capitais entre países e não o comercio em si. Ou seja, a irresponsabilidade de governos às custas da riqueza de toda uma nação, provocavam (e ainda provocam) relações comerciais desequilibradas e fuga de capital, uma espiral do fracasso para o povo e um cheque em branco para o político.

O acordo de Bretton Woods e a possibilidade de os bancos centrais resgatarem ouro com seus dólares americanos se transformou em uma chateação para o inflacionismo do governo americano, já que o preço do ouro estava constantemente sendo corrigido e, consequentemente, denunciando a inflação, o que levou os bancos centrais a quererem resgatar o ouro. Tudo isso levou à decisão do presidente americano, Richard Nixon, a acabar de vez com a conversão de dólares por ouro em 15 de agosto de 1971, deixando preço do ouro passar a flutuar no mercado livremente. Com efeito, os Estados Unidos deixaram de honrar seu compromisso de possibilitar o resgate do ouro. Era o fim oficial do padrão ouro e a consolidação da era inflacionista totalmente sem lastro, baseada apenas na credibilidade dos governos e na escala de suas economias (insustentáveis).

O dinheiro e a preferência temporal

O dinheiro “legítimo” é escolhido livremente no mercado pela sua liquidez, pela capacidade de manter e transferir valor ao longo do tempo e porque pode ser fracionado em pequenas e grandes quantidades. É o dinheiro cuja a oferta não pode ser manipulada coercitivamente por uma autoridade que impõe seu uso e controla sua emissão.

De acordo com o entendimento da Escola Austríaca de Economia, a importância do dinheiro legítimo tem três razões fundamentais: a primeira é proteger valor ao longo do tempo, dando as pessoas maior incentivo para pensar no futuro, baixando sua preferência temporal. A redução da preferência temporal foi o que provocou o início da civilização humana, permitindo que as pessoas cooperem, prosperem e vivam em paz. A segunda é o fato de que uma moeda homogênea e estável oferece uma unidade que facilita a criação de mercados cada vez maiores, livres do controle e da coerção governamental, permitindo o livre mercado que traz a paz e a prosperidade. Tal unidade é também fundamental para todos os tipos de cálculos econômicos e planejamento das pessoas e seus negócios. A terceira é o fato de que o dinheiro legítimo é fundamental para preservar a liberdade individual contra a tirania e repressão de governos que têm o poder de criar e confiscar dinheiro, assim como obrigar o uso da própria moeda. Esse tipo de poder dá margem para abusos imorais e irresponsáveis, com o objetivo primário de manter as posições políticas de poder.

A preferência temporal diz respeito à relação de valor que indivíduos dão ao presente comparado ao futuro. A incerteza é uma constante na vida humana, que tem um tempo de duração escasso. A necessidade de consumo para sobrevivência faz com que as pessoas o valorizem mais no presente do que no futuro, dado que a falta de consumo no presente pode fazer com que não haja futuro. Mas a partir do momento que o fator da sobrevivência é vencido no presente, há de existir uma compensação para deixar de consumir algo hoje e aguardar pelo futuro com toda incerteza da vida. Um bom exemplo é o reinvestimento de um lucro obtido. Só tem sentido abrir mão de utilizar o lucro obtido no presente, se for para obter mais lucro ainda no futuro. Essa capacidade de aguardar o futuro buscando um resultado superior ao que se tem no presente é a baixa preferência temporal. É literalmente a visão de longo prazo na prática.

Um dinheiro “legítimo” que mantém seu valor, ou até mesmo se valoriza com o tempo, é fundamental para baixar a preferência temporal das pessoas, pois o mesmo possibilita planos de longo prazo, transmissão de riqueza no tempo e consequentemente ação histórica em todas as esferas da humanidade, ao passo que um dinheiro inflacionário que perde valor com velocidade, tem o efeito contrário, gera alta preferência temporal, estimula o consumo imediato para se livrar da moeda antes que ela perca valor, tornando impossível o planejamento, o investimento de longo prazo, o acúmulo de capital e, consequentemente, o investimento e tampouco a ação histórica. A não ser que o agente seja o governo que inflaciona a moeda e faz uma curta história enquanto a riqueza dos outros dura.

Uma moeda legítima que estimule a poupança, que permita o planejamento em investimentos de longo prazo e o acúmulo de capital foi e continua sendo uma peça chave para o desenvolvimento da humanidade. Desenvolvimento este que, desde o fim do padrão ouro, teve seu ritmo consideravelmente reduzido diante do experimento econômico inflacionário, “keynesiano” e controlador que o mundo vem testemunhando há mais de um século.

O dinheiro como sistema de controle

Como já foi mencionado antes, temos as três características que sempre são associadas ao dinheiro: reserva de valor, meio de troca e unidade de conta. Entretanto, o avanço da relação do homem com o dinheiro gerou além da capacidade cada vez maior de consumo, uma concentração de poder traduzida pelo acúmulo de dinheiro, que cresceu proporcionalmente ao tamanho dos mercados e do volume do acúmulo de capital. Essa concentração de poder estimulou também a criatividade humana na busca por todos os meios possíveis de acumular riqueza.

Uma das características fundamentais do dinheiro “legítimo” é a escassez. A dificuldade de falsificar e o obter sem o devido esforço. O dinheiro é o valor materializado e por definição não pode ser fácil, caso contrário, perderia o valor e o sentido. Mas a busca por um método que facilite a obtenção de dinheiro estimula a criatividade humana para o bem e para o mal. Para o bem através do esforço, do trabalho, da poupança, do investimento. Para o mal através do roubo, do assalto, do estelionato, do crime em geral e da coerção estatal que tem o monopólio legal da força. Diante das consequências óbvias do crime, uma maneira sofisticada e legal para acelerar o acesso à riqueza sem o devido esforço, começou a ser explorado através dos “pontos fracos” do ouro (ou outros metais preciosos no passado) que era a necessidade de um terceiro para fazer a custódia devido ao problema da segurança e do transporte em maior escala. Era o início da atividade bancária que emitia notas lastreadas em ouro (ou outros metais). A partir do momento que as notas ganhavam credibilidade e liquidez no mercado, tinha início o processo de criação de dinheiro via notas sem lastro, dando início ao que se tornaria as já mencionadas reservas fracionárias. E como já foi exposto anteriormente, apesar do padrão ouro mitigar essa prática, o potencial de poder que ele apresentou fez com que caminhássemos aos dias atuais sem o padrão ouro.

O resultado da ausência de dinheiro “legítimo” e o uso de um dinheiro fiat, que além de ter sua base monetária e custódia absolutamente controlada pelo governo anda é de curso legal, forçado, fez com que as pessoas ficassem impotentes diante de um imenso sistema de controle que escraviza através do dinheiro. A pessoa pode ser fisicamente “livre” mas toda a sua sobrevivência e patrimônio estão sob controle do Estado, ou seja, não há liberdade de fato, como foi explicado de forma clara por Ludwig Von Mises (1949) ao dizer que sem liberdade econômica não há liberdade política, e sem liberdade política, não há liberdade alguma.

Dito isto, fica claro que os governos implementaram através da ausência do dinheiro “legítimo” uma quarta função possível do dinheiro: ser um sistema de controle muito eficiente e sofisticado. É literalmente a escravidão moderna.

A segunda parte do artigo está disponível clicando aqui.

--

--