A origem da frase “ Ser gremista é o sonho delirante de não conseguir na vida ser uma outra coisa”

fred fagundes
5 min readJan 2, 2018

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Poucas horas após ter a morte anunciada, Paulo Sant’Ana foi relembrado em tom de homenagens por meio das mais célebres crônicas e frases reproduzidas nas páginas de Zero Hora. Além do material impresso, as memoráveis participações de Sant’Ana no Jornal do Almoço e Sala de Redação — condensadas à genialidade do escritor— , possibilitaram a criação de um arquivo de expressões provocativo e intenso.

Seja vestindo-se de baiana para celebrar a derrota do Internacional na final do Campeonato Brasileiro de 1989, ou dez anos depois, com eufóricos gritos de ‘Pelé, Pelé’, comparando Ronaldinho ao Rei após o gol do Grenal 340, o pronunciado por Sant’Ana sempre ganhava uma proporção maior, quase que imortal. Por se tratar de um comunicador multimídia, com presença voraz em todos os meios, Sant’Ana era uma fábrica de memes já no período pré-redes sociais.

Com as plataformas digitais cada vez mais acessíveis e completas, a voz de Sant’Ana multiplicou alcance. E entre tantos depoimentos, cornetas e até mesmo uma esquecida expressão gaúcha, uma frase tornou-se símbolo do fanatismo de qualquer gremista:

“Ser gremista é o sonho delirante de não conseguir na vida ser uma outra coisa”.

A frase é tão impactante e identificada com o colunista que ganhou até faixa da torcida do Grêmio. Uma rápida pesquisa do Google apresenta milhares de montagens e compartilhamentos da citação. O site O Pensador traz as aspas com a assinatura de Sant’Ana. Encontra-se de tudo, menos a coluna original ou momento que a frase foi criada.

A resposta para isso é simples. A frase está incompleta.

Tá expulso o Batata

Em 2005, o YouTube engatinhava nos Estados Unidos. Os grandes canais de troca de produção de conteúdo eram blogs, fóruns e comunidades do Orkut. Entre depoimentos e scraps, estava na extinta rede social uma das melhores maneiras de divulgar material. Comunidades disponibilizavam discografias completas para Download, por exemplo.

Já as comunidades do Orkut de clubes de futebol eram bons grupos de disseminação de dados. Haviam tópicos apenas de wallpapers, outros com fotos antigas, narrações históricas e, claro, vídeos. E foi ali que eu arrisquei publicar uma produção autoral.

Com um modesto domínio de Windows Movie Maker, editei um vídeo sobre a Batalha dos Aflitos. Nada muito elaborado. Somente a inclusão de uma narração da Band-RS AM cobrindo as imagens da TV Globo. Pra finalizar, fotos da chegada dos jogadores à Porto Alegre ao som de Querência Amada.

Faltava algo.

Foi aí que apelei para uma frase daquele que tão bem exemplificou o sentimento de ser gremista. Era preciso um comentário de Paulo Sant’Ana para fechar o vídeo.

A alternativa: uma pequena coleção de jornais e revistas que teimo em manter. Edições de Zero Hora de grande momentos da história do Grêmio, como os jornais pós-título das Copas do Brasil de 1994, 1997 e 2001, além da Zero com poster do time campeão da Libertadores de 1995. Foi num exemplar bem menos que raro que localizei a frase que desejava. A ZH Nº13.071, de 4 de junho de 2001.

O mundo se despedida de Anthony Quinn, vítima de uma pneumonia aos 86 anos; Caetano Veloso era vaiado ao cantar Um Tapinha Não Dói durante um ensaio aberto no Rio de Janeiro e a então secretária de Energia, Minas e Comunicação, Dilma Rousseff, anunciava o racionamento de energia em três regiões do país.

Mas a notícia mais importante era ilustrada por uma foto de Gavião, Cláudio Pitbull, Marinho, Itaqui, Marcelinho Paraíba, Eduardo Martini e Renato Martins: o Grêmio voltava a ser Campeão Gaúcho.

Ensaio geral

Paulo Sant’Ana abriu a coluna celebrando o título, mas já prevendo uma glória ainda maior na semana seguinte, quando o Grêmio iniciava as disputas pela vaga à final da Copa do Brasil. O artigo é repleto de euforia e homenagens à torcida e ao jovem técnico Tite, que, segundo o artigo, “ todos os espíritos gremistas ou não-gremistas rendiam homenagem lá no estádio e em todo o Estado ao Tite que honrava o Grêmio com sua reconhecida capacidade, nunca antes tão meteoricamente reconhecida pela unanimidade da opinião e da emoção do meio sócio-esportivo”.

Foi no último parágrafo que encontrei a conclusão do vídeo em edição. A frase de impacto que permaneceria tantos anos em evidência e ainda flutua no imaginário do torcedor do Grêmio. E foi nesse mesmo parágrafo que, na plenitude da minha arrogância, decidi editar uma obra de Paulo Sant’Ana. Simplesmente por achar a construção por ele utilizada de teor desmoderado.

E tirei uma palavra.

A frase original é:

“Ser gremista é o sonho delirante ou a realidade concreta de não conseguir ser na vida uma outra coisa”.

Na época, tratei a conjunção “ou” como uma incerteza ou até mesmo exclusão. Erro meu. O “ou” em questão é um complemento. Um reforço. Uma técnica simples de escrita que fortalece a mensagem. Como não encontrei a coluna original nos arquivos digitais da RBS, redigi o texto e você pode conferi-lo clicando aqui.

Pronto. Eu tinha o fecho do filme.

O vídeo foi editado com a frase modificada. Em seguida, hospedei o arquivo para download no ftp de um pequeno jornal onde trabalhava como auxiliar de diagramação. Publiquei link para download nas comunidades do Grêmio no Orkut e alguns fóruns.

O sucesso foi imediato. Tão grande que fui obrigado a tirá-lo do ftp do jornal, pois o consumo da transferência de dados estava maior que o normal. Era a única maneira de descobrir que o vídeo estava sendo compartilhado, já que não havia um contador de visualizações ou métrica parecida.

A frase exposta ganhou vida própria. Como citado anteriormente, foi homenageada de todas as maneiras. Palavras que quase passaram despercebida no final de uma coluna pós-Gauchão. Mas quis a torcida do Grêmio, com a influência de um despretensioso vídeo, que essa manifestação de Sant’Ana viesse a se tornar um dos ícones de seu gremismo.

Anos depois, o vídeo foi hospedado no Youtube por um desconhecido. Recebeu, inclusive, algumas versões piratas, com cortes diferentes. A narração também foi alterada, tal como a música do Teixeirinha. A única coisa que se mantém é a frase do Sant’Ana, já no frame final.

Isso ninguém muda. Não mais.

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