Segunda opção: uma novela barata

Falando de Amor
3 min readMay 21, 2020

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Por Cizenando Cipriano (Cizenando, Cipriano)

Ele se sente só e provavelmente está certo: ninguém se importa — in Solidões

Há um momento na vida em nos damos conta de nós. Um estalo que faz a gente se perceber como agente no mundo: pensamos, dialogamos, construímos, gostamos, sofremos, caminhamos. Nesta formação de identidade, a autoestima é um valor que oscila de acordo com o grupo ao qual você pertence — e, por mais especial ou mais merda que acreditemos ser, naturalmente fomos, somos e seremos incluídos nalguma categoria. E aí, diante das nossas construções de persona, estando aqui no Falando de Amor, a questão é: você escolhe ou é escolhido?

Neste jogo, não raro somos colocados no time dos “perdedores” e, com isso, temos retiradas nossa autonomia. Afinal, uma relação implica em igualdade — seja entre familiares, amigos ou paixões. Explicando: com o desenvolvimento dos nossos envolvimentos, vamos amadurecendo a percepção de como eles se dão ou não, entrando no registro da essência desses contatos. Entro aqui, com maior interesse, no ângulo romântico deste olhar.

Há o demonstrar interesse ou o saber-se interessante. Há também o vazio. E, depois disso, a segunda opção. Isto é, quando você é inserido na trama apenas porque os protagonistas estão ocupados em seus enredos e para saciar seu desejo o personagem vai atrás de figurante. A vida é curta e o mundo é pequeno, mas o que acontece quando o filme vira novela? Qual o lugar dos seus sentimentos em uma experiência que começou a partir do envolvimento de outros que o tinham invisibilizado e, agora, vendem promessas de futuro?

A observação óbvia é que a experiência humana é um encadeamento de acontecimentos interligados e que os afetos vão murchando e florescendo de acordo com o tempo e o cultivo que fazemos deles. O olhar não enxerga tudo que vê; algo descoberto hoje pode vir a fazer sentido apenas tempos depois. O argumento é uma adaptação da máxima de Lavoisier: estamos sempre em movimento, as interações se chocando, logo tudo se transforma. E é até natural que o insignificante de ontem seja o amor da sua vida amanhã.

“Sainthood” — Autor: Misheck Masamvu (Crédito: ArtNet)

Esta convicção é nítida, mas é inegável que parte de alguém que já experimentou o lado de cima da moeda proposta no início desta pensata. Quando se está relegado a ser ente passivo nessa equação sequer há a referência do que é bom ou ruim, você está do lado de fora do jardim onde as flores nascem e morrem. Com isso, ao percebemo-nos gente, questionar declarações de amor é luz de vela na escuridão: cria muitas sombras, mas ilumina a caminhada.

Notem que não enunciei quais seriam as características te colocam ou no elenco principal ou no de apoio deste espetáculo. São tantas e tão variadas, algumas óbvias, outras particulares. Preocupo-me, aqui, com essa ponta do iceberg. Há comédia, tragédia, romance, drama e farsa. O estilo não é também fundamental neste momento. Mas sim o que te confia o lugar prometido na continuidade da fábula quando os outros protagonistas estiverem livres.

Por certo, não há garantia de nada na vida — apenas da morte. Porém, o desgosto de quem nunca se sente em destaque é um dado real e afeta seus laços diante de cenários que, por mais verossímeis que pareçam, soarão sempre como faz de conta a quem viu a madeira e a tinta chegando. A desconstrução da carapaça de renegação — em quem a veste e em quem, consciente ou inconscientemente, a impôs — é uma função de todos os artistas envolvidos na trama.

Entrar em qualquer tipo de relação exige, além de entrega, uma crença na sua especialidade. O entendimento de que o passado e o presente, por mais que condicionem, não devem ditar aquele contato, é mais teórico do que prático. Usufruir das peculiaridades como néctar e não veneno é consequência de dar novos sentidos a relações e, ainda, tirar da ribalta todo esse papo e colocar os pés (descalços) no chão. Nem sempre é confortável; nem sempre há final feliz.

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