“This is America”: por que a América odeia seus negros?

Fala, Rithy
8 min readMay 31, 2020

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por Rithyele Dantas

Em meio à pandemia, manifestantes incendiam Estados Unidos contra violência policial. No Rio, pessoas também "furam quarentena" para pedir justiça por um vírus que mata negros há séculos: o racismo da polícia e do Estado.

Negros brasileiros e norte-americanos são os que mais morreram de COVID-19. No Brasil, ser negro é o segundo fator de risco para morte pelo vírus, depois da idade, segundo estudo recente da PUC-Rio. Comunidades negras nos Estados Unidos estão sendo devastadas pelo vírus também. Lá, eles têm morrido pelo menos três vezes mais que brancos. Os dois países são considerados epicentros da doença — nos EUA, mais de 100 mil mortos; no Brasil, mais de 30 mil. Mas há outro vírus antigo que persiste matando negros nas Américas, do sul ao norte desde o século XVI: o racismo. É a partir desta data que africanos desembarcaram sequestrados nos territórios onde hoje estão Brasil e Estados Unidos.

Manifestação no Rio de Janeiro pela vida de João Pedro | Foto: Rithyele Dantas

EUA EM CHAMAS E UM CENÁRIO DISTÓPICO

A essa altura, boa parte do mundo já sabe que um homem negro de 46 anos teve o joelho de um policial branco em seu pescoço por oito minutos até a morte. George Floyd foi assassinado em Minneapolis, estado de Minnesota, nos EUA no último dia 25.

Enquanto a maior parte da população norte-americana está em casa há meses, quase como numa realidade distópica, um colapso civil toma conta pelo menos de 25 cidades nos Estados Unidos, com toques de recolher em algumas delas. Em Minneapolis, as principais delegacias da cidade foram incendiadas. Em Nova York, uma cena chocante mostra viaturas pegando fogo. Derek Chauvin, o ex-policial que matou Floyd, está preso e foi acusado de homicídio culposo em terceiro grau.

Manifestantes de braços ligados em Carolina do Norte, EUA | Foto: CNN

Grandes personalidades, como Beyoncé e LeBron James, pedem justiça por Floyd nas redes sociais. E o astro Will Smith reforça que a violência brutal contra os negros não é recente:

“O racismo não está piorando, só está sendo gravado agora.”

Manifestantes incendiam diversos prédios em Minneapolis/ foto: CNN

BRASIL TAMBÉM RESPONDE

Em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, uma criança negra foi morta dentro de casa pela polícia. Enquanto brincava, João Pedro de 14 anos, levou um tiro de fuzil. O disparo o matou pelas costas, segundo autópsia. Neste final de semana, ativistas também foram à porta do Governo do Estado pedir justiça por todas as vidas negras tiradas pelo próprio Estado Brasileiro. O recado brasileiro é o mesmo que o norte-americano: Vidas negras importam!

Manifestação no Rio de Janeiro foto: Rithyele Dantas

AFINAL, POR QUE A AMÉRICA ODEIA NEGROS?

Pode parecer ridículo dizer isso em 2020, mas a cor da pele é um fator. Descendentes de africanos são discriminados também por isso. Existem muitas semelhanças entre o racismo que opera aqui no Brasil e também nos EUA. Uma primeira semelhança é na forma como povos africanos chegaram em ambos territórios: sequestrados. Acontecimento que inaugura, para o mundo, um novo sistema econômico, político, social e cultural. Sistema que pode ser chamado de escravagismo.

O sistema econômico nos EUA tinha as plantations como base, conhecido no Brasil também como monocultura de larga escala. Escravizados nos EUA, principalmente, trabalhavam em plantações de algodão e milho. No Brasil, em canaviais (açúcar) e cafezais (café).

A perseguição à cultura do som e batuques de afro-brasileiros e afro-americanos também marca a história desses povos nas Américas. Politicamente, ambos modelos privaram africanos e descendentes de seus direitos políticos e de humanidade: durante a escravidão, negros tiveram inclusive nomes e sobrenomes negados. No pós-abolição, foram impedidos do direito ao voto, à educação e ao trabalho digno. Em 1959, quase uma década após a promulgação da lei antidiscriminatória de Afonso Arinos no Brasil, o racismo foi mencionado pelo O Jornal do Rio de Janeiro como a principal razão do desemprego do negro.

Ainda sobre emprego, em 1950, por uma lei consuetudinária — aquela que surge dos costumes de determinada sociedade — eram normais anúncios de emprego que proibiam pessoas “de cor” e, mesmo após leis que proibiam a discriminação racial, anúncios seguiam exigindo pessoas de “boa aparência” (leia-se “brancos”). Além disso, negros, nos dois territórios, estão entre os mais pobres, a maioria dos analfabetos e os que mais morreram na história.

Contemporaneamente, presidentes de ambos os países fazem parte de uma direita mundial que persegue não só negros, mas outros povos “não-brancos” e que fomentam movimentos racistas e fascistas. Neste final de semana, um protesto pró-Bolsonaro e contra o Superior Tribunal Federal (STF) reuniu uma Klu Klux Klan “à brasileira”. Manifestantes usavam máscaras e tochas, fazendo uma alusão a manifestações de 2017 nos EUA, quando supremacistas brancos saíram às ruas contra a derrubada da estátua de Robert Lee — associada ao passado escravocrata e supremacista. As cenas apavorantes aconteceram em Charlottesville, no Estado americano de Virgínia.

Manifestação pró-Bolsonaro e contra o STF em Brasília /
Supremacistas brancos nos Charlottesville, em 2017 / Foto BBC

Já no quesito memória negra há um abismo entre Brasil e EUA. Por lá, existem diversas biografias escritas por ex-escravos com memórias do tempo do cativeiro, como o que deu origem ao filme 12 Years a Slave (12 Anos de Escravidão), baseado no livro do ex-escravizado Solomon Northup. Além disso, também há diversos museus dedicados à escravidão nos Estados Unidos. No Brasil, embora a escravidão seja um grande assunto da história e da educação, é difícil encontrá-la escrita em primeira pessoa. Também não existem grandes memoriais. Nas escolas de ensino básico, o tema do racismo se encerra na libertação promovida por Princesa Isabel. Há, portanto, um problema de memória que também passa pela historiografia.

Há outras diferenças nestas histórias. Uma das mais interessantes de pontuar é que o número de africanos sequestrados e desembarcados nos Estados Unidos é, pelo menos, nove vezes menor que no Brasil, segundo dados do Slave Voyages, maior estudo internacional sobre o comércio escravagista.

Por lá, o crescimento da população escrava se deu de maneira interna: com maior expectativa de vida, o escravizado que estava nos Estados Unidos reproduziu e criou famílias maiores que a dos escravizados que estavam no Brasil, que morriam mais e eram incessantemente “repostos” por novas levas de escravos.

E A POLÍCIA?

Tanto as polícias brasileiras e americanas nascem para um controle social, como aponta o artigo A evolução da polícia no século XIX: Inglaterra, EUA e Brasil em perspectiva comparada, de Eduardo Batitucci.

Manifestantes gritam contra polícia em ato no Rio de Janeiro | Rithyele Dantas

A polícia surge no Brasil em 1809, ainda antes da Independência, necessariamente para perseguir negros e suas atividades pelas cidades. Um dos grandes indícios de que essa era sua principal função é analisar as atividades criminais na primeira década da polícia, de 1810 a 1821: 41% eram ofensas à ordem pública tais como capoeira, desordem, suspeita e vadiagem — quando um escravo vai de um lugar a outra sem justificativa. 18%, o segundo maior crime, correspondia à fuga de escravos. Nesta primeira década de existência da polícia, 80% dos “criminosos” eram escravos e os 15% ex-escravos. Os números são de estudos de Thomas Holloway e Leila Algranti.

Nos EUA, a partir da metade do século XIX, mesmo após certa profissionalização da polícia, elas se desenvolveram extremamente ligadas aos poderes locais. Quando trocava o prefeito ou o governador, quase toda a estrutura policial também era trocada. Assim, nos Estados Unidos, por muitas décadas, as polícias não tinham necessariamente uma missão de Estado, mas serviam aos governos de ocasião. Portanto, eram um instrumento da elite local, ou seja, da elite branca que, assim como no Brasil, tinha como principal medo e missão controlar esse contingente de negros. O pós-abolição nos dois espaços trouxe um problema às elites brancas: o que fazer com os negros? O que fazer com as “classes perigosas”?

A partir do início do século XX, a polícia americana passa a ter influência sobre as políticas de segurança da América Latina. No caso brasileiro, por exemplo, no tema da repressão ao comunismo já no governo Vargas, mas principalmente a partir da ditadura militar. Nas décadas seguintes, em especial a partir da década de 80, a política de segurança dos EUA também influenciou o Brasil na “guerra às drogas” e no superencarceramento, que afeta especialmente as populações negras dos dois país.

“Isso é a América
Não fica dando mole
Olha o que tô vivendo
A polícia tá viajando
Isso é a América" (This is America, Childsh Gambino)

POR QUE O BRASIL NÃO PEGA FOGO ?

Nessa semana de tanto debate sobre violência policial no Brasil e nos Estados Unidos, muitos brasileiros têm pressionado por protestos mais contundentes por aqui. Mas vale lembrar uma informação fundamental: a chance de uma pessoa ser morta pela polícia no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, é 48 vezes maior que em todo os Estados Unidos. Mais uma comparação assustadora: no Estado de Minnesota, onde Floyd foi assassinado, a polícia matou 11 pessoas em 2019, enquanto a do Rio matou 1.810. Respondo a pergunta, portanto, com outra: é possível realizar manifestações tão fervorosas na cidade que tem a polícia mais letal do mundo?

Manifestação no Rio de Janeiro | foto Rithyele Dantas

ESTA É A AMÉRICA!

O título da reportagem faz uma alusão à música e clipe This is América de Donald Glover (ou Childish Gambino) que foi premiada pelo Grammy em 2019. A música foi um manifesto antirracista do artista — que de norte a sul sufoca, encarcera, empobrece e massacra negros. Uma doença branca que contagia e mata negros há cinco séculos. Até quando?

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Fala, Rithy

Rithyele Dantas, 24, graduanda em jornalismo — Umas reflexões sobre jornalismo e reportagens antirracistas. | insta @falarithy