Uma Jornada ao Ciberespaço

Felipe Rayel
afya
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8 min readAug 17, 2023

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Aquela foi uma época fantástica. Uma época de descobertas. Éramos crianças. E não fazíamos ideia onde aquilo chegaria. Aquele era o nosso mundo. O “mundo do elétron e do switch”.

Eu tinha dez anos quando embarquei nessa loucura e comecei a brincar de programar em Basic em um Comodore. As linhas do programa eram numeradas e logo aprendi minha primeira boa prática: numerá-las a em saltos de dez para evitar ter que alterar o programa todo depois. Não lembro muito do que eu fazia com um computador naquela época, acho que só imprimia bobagens na tela. Mas a mágica mesmo aconteceu quando aprendi a gravar tudo em uma fita k7. Era só ligar o gravador e dar o comando para transformar os bits em sinais sonoros. Depois era só desligar o computador que no dia seguinte era possível recuperar tudo apenas tocando a fita.

Comodore 64 | Imagem © rachidlotf

No ano seguinte, em 1988, meu pai chegou com um PC XT. Aquele trambolho de metal ocupava quase a mesa toda, tinha um monitor verde monocromático e muitos comandos estranhos. Mas para a minha alegria, havia um interpretador de Basic!

Descobrir as coisas naquela época era algo solitário, pois você não tinha com quem compartilhar. Na escola, ninguém sabia do que você estava falando. Os PCs só se tornariam populares muitos anos depois.

Encontrei na banca de revistas, diversos livretos com códigos fonte de jogos de uma ou duas páginas. Eram jogos simples, com caracteres que se moviam na tela, mas era incrível porque nunca funcionava de primeira, e foi ali que aprendi que esquecer um simples ponto era suficiente para que nada funcionasse. Encontrar o erro às vezes levava o dia inteiro e desistir nunca foi uma opção.

Livros de programação com jogos na linguagem Basic.

Passei então a querer a criar os meus jogos e modificar os das revistas. Não tínhamos disco rígido, mas cabia tudo em um único disquete. E foi nessa época que descobri que bastavam dois drives para transformar um CPD em um Centro de Pirataria Desenfreada.

Desde então as coisas começaram a acontecer muito rápido. A década de 90 chegou, mas o PC que tínhamos em casa não havia melhorado muito, continuava o mesmo processador de 8 MHz. Porém, agora com um disco rígido, monitor de 4 cores e um negócio chamado modem.

No começo não vi muita utilidade naquele acessório que parecia transformar o PC num telefone. Sabia que podia transformar bits em sinais sonoros (sim, igual ao usado no gravador de fitas k7) e transmitir através da linha telefônica a uma taxa de 2400 bauds (ou bits por segundo). Parecia não ter muita utilidade, mas aquela pequena peça transformaria a minha vida e a vida de todas as pessoas.

Não demorou para descobrir que em São Paulo já haviam BBSs (Bulletin Board System). Bastava uma linha telefônica e um modem para discar e se conectar. Geralmente elas tinham só uma linha, o que permitia apenas uma pessoa conectada por vez. A maioria delas limitava o tempo de conexão em 20 ou 30 minutos por dia para que todos pudessem usar. Além disso, eu morava no interior e com o custo do interurbano, ficar conectado por muito tempo deixava a conta telefônica bem amarga no final do mês.

Apenas uma linha telefônica também não permitia comunicação em tempo real com outros usuários. Era necessário deixar uma mensagem, que então era inserida em um pacote. Esse pacote podia ser posteriormente baixado e lido usando um leitor de mensagens, como o Blue Wave. A menos que você conseguisse chamar o SysOp (System Operator) e tivesse o privilégio de um atendimento direto, proporcionando assim a oportunidade de um bate-papo em tempo real. Uma das experiências mais fantásticas que já havia tido com um computador.

Posteriormente, as maiores BBS passaram a oferecer múltiplas linhas telefônicas, viabilizando conexões simultâneas para vários usuários. Nos anos subsequentes, elas se transformariam no berço dos provedores de Internet. No entanto, não é disso que quero falar.

Quem começou no mundo pós Windows 95, pode olhar toda essa nostalgia com desdém. Viver em um mundo de tela preta, sem mouse, sem YouTube ou Google Maps pode parecer um tanto monótono. Ter acesso a uma rede sem um mecanismo de busca como o Google, qual era a vantagem?

A verdade é que tudo era novo e não existia nada melhor que aquilo. Eu vivia a época das grandes navegações e infinitas possibilidades se abriam a cada nova descoberta.

Conectar em um sistema desconhecido a quilômetros de distância era quase irreal, coisa de ficção científica. Era o ciberespaço, ao qual William Gibson se referia. Você nunca imaginava o que encontraria. Centenas de arquivos e fotos para baixar. Textos, programas, jogos, vírus. Tinha de tudo. Mas meu modem era de 2400 e baixar algo a uma taxa de 300 CPS (bytes/s) era penoso. Você praticamente assistia à tela de gráficos ASCII ser desenhada linha por linha. Então resolvi entrar de vez naquele mundo, vendi meu videogame e comprei um modem de 14.400 bauds.

As melhores BBSs eram as menores, criadas por amadores que se dispunham a deixar um PC ligado em casa o dia todo e manter uma linha telefônica exclusiva para outros usarem. Tudo quase sempre sem cobrar nada!

Caçar BBS era outro desafio. Tínhamos que procurar números em jornais e revistas, mas nem sempre as listas estavam atualizadas e muitos deles já não funcionavam mais. Algumas BBSs eram restritas e você só entrava após ter o cadastro aprovado. Era o caso das BBSs underground, onde raramente se conseguia um nível que lhe dava um acesso além do básico.

O cenário hacker começou a surgir no Brasil e com ele, grupos e redes de troca de arquivos HPAVC (Hacking/Phreaking/Anarchy/Virii/Cracking) com revistas de conteúdos proibidos como a “Phrack Magazine” e mais tarde a brasileira “Barata Elétrica”. Para quem estava de fora, aquilo soava como o “lado negro da força”, mas, na verdade, era a aliança rebelde contra o império, contra o sistema que expandia o controle e a vigilância sobre todos. Eram os caubóis do teclado que só queriam que o mundo fosse livre.

Programar em Basic não me ajudou muito naquela época. A galera usava C e eu só aprenderia isso anos depois ao entrar na faculdade. Acabei descobrindo que tinha talento para outras coisas como a arte em ANSI.

ANSI acabou sendo uma arte underground mais comum em BBS Hacker e quase sempre lembravam pichações. A arte era feita com caracteres da tabela ASCII estendida, mas com uma codificação para cores, o que deixava o visual bem mais alucinante. Desenhar ANSI exigia paciência e habilidade com as teclas. Eu movia as setas tão rapidamente que passava horas sem ver o tempo passar. Aos poucos, o desenho formado por blocos de caracteres como “▄ █ ▓ ▒ ░” tomava forma.

Conheci uma BBS chamada Lunatic Asylum, um nome um tanto quanto sugestivo considerando os seus usuários. “Mas eu não quero estar no meio de gente louca”, diria Alice (no País das Maravilhas). No entanto, lá fiz amizade com um coelho maluco, chamado Bugs Bunny. Nunca soube seu nome verdadeiro, pois todos eram conhecidos apenas por seus apelidos e o meu era Zombie Fox.

Tela de entrada da Lunatic Asylum desenhada por mim.

Por meio de desenhos que fiz, consegui acesso ao sistema e passei a fazer parte de um grupo chamado KiSS. É estranho não encontrar nada disso no Google. Não há registros daquela época, pois a Internet só se popularizou anos depois. Depender somente da própria memória traz uma sensação de que nada disso existiu. Temos a falsa sensação de que tudo está no Google e não encontrar nada lá é assustador.

Arte ANSI desenhadas por mim (1995 a 1997)

E foi num dia quente, desses que parecia que terminaria em chuva, mas acabou em uma noite abafada. Eu tinha me conectado na Lunatic Asylum e transferia o arquivo ANSI que fiquei a madrugada toda desenhando enquanto ouvia “The Prodigy”. Logo iria amanhecer e eu ainda precisava dormir.

O arquivo não era grande, mas a transmissão estava lenta, quase travando. O ventilador girava para lá e para cá diversas vezes e a barra de progresso andou pouco mais de dez por cento. Meus olhos já estavam vermelhos, pareciam escorrer pelo rosto e se derreterem pelos vãos do teclado. Meus dedos se definhavam enquanto minha mão pesava sobre as teclas.

A transferência parecia ter travado. Aproximei meu rosto tão perto do monitor (ainda de tubo) que quase pude sentir o raio-x transpassando o meu crânio. Então constatei que a barra de progresso não se movia mais.

Estava prestes a interromper a conexão quando algo estranho aconteceu. Primeiro senti um forte cheiro que lembrava ferrugem, depois o ventilador parou de girar e a música que eu ouvia parou de tocar. Um vento uivou tão forte pela janela que me fez levantar para ver o que estava acontecendo lá fora. Pelo reflexo do vidro, vi que meu nariz sangrava, mas o que vi lá fora me chamou ainda mais atenção. Ventava muito, mas as árvores não se mexiam; como se o tempo tivesse parado. “Que diabos está acontecendo aqui?” — pensei.

Subitamente, ouvi um som ensurdecedor de papel sendo rasgado e as paredes do meu quarto começaram a se dobrar para dentro como um origami. Tudo se escureceu enquanto eu senti que estava caindo em um abismo sem fim.

Após alguns segundos, meus pés tocaram o chão e me vi em um lugar completamente insólito. O céu era multicolorido e sem nuvens, povoado por blocos gigantes e objetos geométricos que giravam em torno de si. O chão era tão polido e espelhado que refletia o céu. No horizonte, tudo se fundia em uma coisa só, dando a sensação de espaço infinito.

Caminhei alguns metros e encontrei um grande cubo flutuante. Me aproximei e nele vi inúmeras telas, que reproduziam cenas comigo em diversas situações, mas em lugares que eu nunca vira antes.

Percebi que nelas eu estava mais velho. Eram visões do futuro, e nele eu desenvolvia software e escrevia histórias como essa. Percebi então que eu havia me tornando uma cópia de mim mesmo.

Uma vivendo no mundo real, enquanto a outra era assimilada por aquele lugar. Um lugar para onde sempre sou levado, quando ligo um computador e coloco a mão no teclado.

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Felipe Rayel
afya
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Engenheiro de software e escritor de histórias de ficção. Siga-me em https://www.getinkspired.com/pt/u/rayel/