BOOM! Studios e o mercado de quadrinhos para todas as idades

Felipe Autran
5 min readMar 23, 2015

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Na contramão de Batman e Superman, a editora californiana vai atrás de uma faixa etária que parecia esquecida pela indústria americana

Durante um painel na San Diego Comic Con de 2013, o quadrinista Paul Pope, vencedor do Eisner de Melhor Escritor/Artista em 2007, deu uma declaração que confirmou o que já se imaginava sobre o posicionamento das grandes editoras americanas em relação ao público jovem. Ao ser perguntado se já teria tentado criar uma série de quadrinhos infantis com alguma personagem de franquia, o artista respondeu citando uma reunião com um executivo da DC Comics.

Eu queria muito fazer Kamandi - O Último Rapaz da Terra, esse personagem do Jack Kirby. Eu tinha essa ótima ideia… e aí ele disse, ‘Você quer que seja para crianças? Pare! Nós não publicamos quadrinhos para crianças. Nós publicamos quadrinhos para pessoas de 45 anos. Se você quer fazer quadrinhos para crianças pode ir escrever gibis do Scooby-Doo.’

A resposta não deve ser recebida com surpresa por quem acompanha o mercado de super-heróis americanos. Com algumas exceções pontuais, quase sempre baseadas em animações de televisão de sucesso, Marvel e DC praticamente esqueceram tal fatia do público.

Uma criança de dez anos que saia encantada do cinema com o último filme dos Vingadores vai ter dificuldades em encontrar quadrinhos atuais com os personagens que não sejam classificados como ‘para maiores de 13 anos’. O caso da DC é pior ainda, já que até mesmo os filmes com personagens da editora são feitos apenas com o público adulto em mente, como foi o caso de Homem de Aço e Batman — Cavaleiro das Trevas.

“Nós não publicamos quadrinhos para crianças. Publicamos quadrinhos para adultos de 45 anos.”

Diante desse cenário, uma editora californiana, fundada em 2005, resolveu apostar de vez nos jovens leitores. A BOOM! Studios tem desde 2007 um selo focado em quadrinhos infantis.

Durante os primeiros anos, uma parceria com a Disney rendeu várias séries com personagens da Pixar, além de revistas com participações de nomes conhecidos da empresa, como Mickey, Pato Donald, Os Muppets e até uma série de reimpressões dos clássicos de DuckTales escritos por Don Rosa e Carl Barks.

O sucesso de público e crítica foi tanto que a editora se viu obrigada a reformular o selo. O antigo nome, BOOM! Kids, acabava afastando adultos e pré-adolescentes, que não queriam comprar algo considerado ‘infantil’. Nasceu então o KaBOOM! Studios, diversificando a linha com produções originais e verdadeiramente para todas as idades.

Embora o KaBOOM! ainda dependesse de muitas adaptações de animações com personagens conhecidos, a contratação de excelentes artistas e uma liberdade criativa pouco vista nos quadrinhos americanos de super-heróis foram a chave para o atual sucesso da empresa.

Para adaptar para os quadrinhos o fenômeno do Cartoon Network, Adventure Time (Hora de Aventura no Brasil), foi chamado o roteirista canadense Ryan North, criador de Dinosaur Comics, uma tirinha diária feita com clip art de dinossauros em que apenas o texto é alterado.

O conhecimento de North sobre o meio no qual trabalha transformou Adventure Time em um grande experimento da arte sequencial. O roteirista quebra a quarta parede em quase todas as páginas, inserindo notas de rodapé com comentários sobre os acontecimentos.

A linguagem não raramente é levada ao limite, como quando os protagonistas perdem a voz e precisam se comunicar apenas através de desenhos ou quando uma viagem no tempo os leva de volta à primeira edição da própria série.

Adventure Time rendeu para a BOOM! o Eisner de Melhor Publicação para Crianças e o Harvey de Melhor Publicação Original para Jovens Leitores. O sucesso foi estendido para uma linha de álbuns e minisséries que fazem jus à influência dos quadrinhos independentes na animação original, trazendo vários artistas conhecidos por seus trabalhos autorais, quase todos com webcomics de sucesso.

É o caso de Kate Leth, de Kate or Die, que escreveu Seeing Red, protagonizada por Marceline e Jake, e Meredith Gran, da premiada Octopus Pie, que escreveu e desenhou a divertidíssima Marceline e as Rainhas do Grito, todas publicadas com o selo KaBOOM!

Esse investimento contínuo na formação de um novo público, com quadrinhos que podem e devem ser lidos por pessoas de qualquer faixa etária, vem rendendo à editora ótimos títulos, como Bravest Warriors, escrito atualmente por Kate Leth, e Bee and Puppycat, de Natasha Allegri.

Mas, embora tenha uma linha editorial que dá liberdade para os artistas criarem novas histórias com essas personagens, a editora ainda depende bastante de adaptações de franquias já existentes.

A virada do jogo pode ser Lumberjanes. Lançada originalmente como uma minissérie de oito edições, a revista acabou sendo promovida à publicação regular mensal depois do sucesso de público e crítica dos dois primeiros números.

Com uma equipe criativa composta apenas por mulheres, da editora à letreirista, e que inclui as roteiristas Noelle Stevenson e Grace Ellis, com arte de Brooke Allen e cores de Maarta Laiho, Lumberjanes segue um grupo de garotas escoteiras e suas aventuras no acampamento que dá nome à série.

O roteiro divertido, que nunca teme soar absurdo, e preocupado em desenvolver as diferentes personalidades das meninas, é complementado pela arte propositalmente cartunesca e colorida.

O humor das roteiristas, com referências a Joan Jett, Bessie Coleman e outros ícones feministas, mostra ser possível criar bons quadrinhos que possam ser lidos e adorados por crianças e adultos.

Nas palavras de Noelle Stevenson, “os quadrinhos [americanos] estão em um lugar esquisito, onde todo mundo tenta refutar a noção datada de que gibis são só para crianças.” Enquanto editoras como a DC Comics e séries como The Walking Dead ainda tentam provar que quadrinhos podem ser sombrios e violentos, a BOOM! Studios abraçou a ideia de que devem existir bons quadrinhos para todos.

Os futuros leitores agradecem.

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