Resenha: “Almas Mortas”

Felipe Barros
5 min readAug 16, 2020

Aqui está a resenha de um romance, Almas Mortas de Nikolai Gogol, que fiz para a disciplina de Introdução à Literatura russa, na faculdade de Letras.

UMA RESENHA DE ALMAS MORTAS

Almas Mortas é o romance de Nikolai Gógol, publicado originalmente em 1842, sendo hoje considerado um dos maiores clássicos da literatura russa. A narrativa é ambientada tanto na cidade, quanto na área rural, de uma província russa, de maneira que o autor explora amplamente as característica de seu povo, tendo em foco, neste romance, a aristocracia. Como é comum na obra de Gógol, o romance é construído através da comicidade, visando a sátira, e da caricatura, assim criando personagens-tipo que englobam e extrapolam as falhas que o autor via no povo russo.

O romance, originalmente planejado em três partes, possui apenas duas, sendo que somente a primeira foi finalizada. A narrativa da primeira parte abre com a chegada de Tchitchikov, o protagonista, na província NN. Ele é descrito de maneira genérica (“não muito belo, mas tampouco de aspecto agradável, nem muito gordo, nem magro demais (…)”), o que indica sua flexibilidade e capacidade de se ajustar a qualquer situação, além de o diferenciar das outras personagens caricaturizadas presentes no romance. Ao chegar nesta província, Tchitchikov, por meio de seu carisma e de bajulações, cativa os proprietários de terras locais e logo procura por seu plano em prática: comprar “almas mortas”. No decorrer da narrativa é revelado que o esquema do protagonista é comprar servos (“almas”) já falecidos destes proprietários, mas que ainda constam registrados no último recenseamento do governo russo, os quais aconteciam entre grandes espaços de tempo. Desta forma, Tchitchikov pode hipotecar estas “almas”, ainda registradas como vivas, e enriquecer facilmente.

A tarefa parece simples aos olhos do protagonista, já que a venda destas “almas” diminuiria a carga tributária exigida para os proprietários, porém a personalidade das personagens com as quais o protagonista interage dificulta gradativamente o seu plano. Personagens como Manílov, Nastácia Koróbotchka, Sobakêvitch e Nozdriov, por exemplo, podem ser consideradas personagens-tipo, construídas envolta de uma característica específica e tendo a descrição física e o espaço relacionado à tais personagens moldado para refletir esta característica. Manílov, por exemplo, é marcado pela agradabilidade e brandura, já em Sobakêvitch fica marcada a inflexibilidade, força e avareza.

O exagero destas características não é em vão. Este romance pode ser considerado uma grande crítica à situação da sociedade russa da época. Cada personagem engloba um defeito que Gógol observava na sociedade de seu tempo. O próprio protagonista é um instrumento desta crítica, talvez o principal, já que ao longo da narrativa é revelado que Tchitchikov fora funcionário público, flagrado em um esquema de corrupção dentro do governo russo (uma tentativa prévia para enriquecer facilmente), e que no momento está foragido da prisão. O passado do protagonista também é revelador. Sem nenhum talento específico, Tchitchikov é abandonado por seu pai ainda em sua infância, o qual só lhe dá uma quantia pequena em dinheiro e um conselho, o qual resume a personalidade do protagonista e o defeito moral apontado pelo autor:

Olha aqui, Pavluska, estuda, nada de travessuras nem de vadiagem, porém mais do que tudo trata de agradar aos professôres e superiores. Se souberes agradar ao superior, mesmo que não sejas bom nos estudos nem tenhas qualquer talento dado por Deus, sempre te sairás bem e passarás na frente de todos. Não te dês com os companheiros de escola; eles não tem nada de bom para ensinar-te; mas, se não o puderes evitar,então procura fazer amizade com os mais ricos, que te poderão ser úteis algum dia. Não convides nem presenteies ninguém, mas comporta-te de maneira a seres tu o convidado e o presenteado; porém mais do que tudo trata de guardar e economizar cada copeque: ele é a coisa de mais confiança neste mundo. Um colega, um amigo, não perderá a primeira ocasião de te engazopar, e, em caso de dificuldade, não hesitará em te denunciar, mas o copeque, esse não, esse nunca te trairá, qualquer que seja o problema. Tudo no mundo se resolve com o copeque.” pág 272

É preciso notar que a crítica feita por Gógol não é de caráter social, mas sim moral. O autor é conhecido por sua posição moralista, religiosa, patriótica e conservadora. A denúncia feita por Gógol neste romance não tem como alvo a estrutura social, nem as relações de classe presentes no período, mas ao fato de o povo russo ter esquecido valores morais provenientes da religião e os substituído pela ganância e pelo vício. No trecho citado, fica claro como Tchitchikov representa essa decadência moral, aos olhos do autor. O dinheiro se torna preocupação principal e a bússola moral do protagonista desde sua juventude, destituindo-o dos valores religiosos/morais apreciados pelo autor. O fato de Tchitchikov ser um funcionário público, da burguesia média, não é um acaso. Para Gógol, a decadência moral está presente em todas as esferas da sociedade russa e, portanto, ele busca denunciá-la

Para construir a crítica em sua obra, Gógol utiliza diversos recursos de comicidade. Em Almas Mortas, como já foi citado, a caricatura é uma marca muito presente. O teórico Vladmir Propp define a caricatura da seguinte maneira: “Toma-se um pormenor, um detalhe; esse detalhe é exagerado de modo a atrair para si uma atenção exclusiva, enquanto todas as demais características de quem ou daquilo que é submetido à caracterização a partir desse momento são canceladas e deixam de existir. A caricatura de fenômenos de ordem física (…) não se diferencia em nada da caricatura de fenômenos de ordem espiritual”. Também segundo o teórico citado: “O exagero é cômico apenas quando desnuda um defeito”.É exatamente este o caso de todas as personagens em Almas Mortas. A aristocracia russa aparece de forma tão caricaturizada que, após a verdadeira motivação para as aquisições de Tchitchikov ser revelada aos outros por Nozdriov, ninguém dá credibilidade a este, já que não possui a estima dos outros senhores. Porém, ao primeiro indício de um rumor, toda comunidade da província começa a especular e expressar boatos cada vez mais absurdos, como “Tchitchikov é Napoleão disfarçado” ou “Tchitchikov quer sequestrar a filha do governador”, ao ponto que o protagonista é obrigado a fugir da província. Tchitchikov é rejeitado por aquele que antes o tratavam cordialmente, não como consequência de suas escolhas éticas, mas por simples fofoca.

Desta forma, Gógol usa o riso para expor os defeitos que vê em seus conterrâneos, sendo eficiente tanto na exposição quanto na comicidade. Almas Mortas é um imenso projeto de caracterização e denúncia social, infelizmente não concluído. Porém, a obra existente é tão primorosa que facilmente encanta qualquer leitor dos dias atuais, possuindo extrema riqueza de conteúdo e maestria estilística.

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