SOBRE O FILME DE A TORRE NEGRA (e porque ele não é essa porcaria que todo mundo está alardeando)

Felipe Castilho
9 min readAug 26, 2017

Esse texto é CHEIO de spoilers tanto da história para o cinema quanto do livro, e o escrevi considerando que você já leu e assistiu — ou ainda que não liga pra essas coisas. Aqui quem está falando é um fã inveterado da obra do King, então esse texto contém mais empolgação e fanboyismo do que uma crítica embasada, ok? Aliás, passa longe disso. Estou defendendo meu ponto e tentando colocar na tela tudo o que pensei de maneira desordenada mesmo, então PEÇO DESCULPAS ADIANTADAS, SAI.

Primeiro de tudo, o Ka é uma roda.

e não é que é uma roda memo?

A história de Roland é cíclica. Mesmo dentro de “uma vida”, ele se vê fadado a perder o seu ka-tet e enfrentar uns deja vu cabulosos. No escopo da Torre, ele sempre vai atravessar a porta e voltar ao primeiro parágrafo do primeiro livro.

“O homem de preto fugia pelo deserto, e o Pistoleiro ia atrás.”

Pra mim, essa frase está para a literatura fantástica como o primeiro parágrafo de A Metamorfose está para a, hum, literatura universal. Ela contém o DNA de todas as quase 5 mil páginas do resto da série, e nós encerramos a jornada com ela. De todas as mudanças de percurso que o King teve nos 30 anos de escrita da Torre, essa é uma das que no fundo ele sabia que deveria manter. Não podia existir outro final.

No final do sétimo livro, assim que ele se vê de volta ao ponto inicial onde o conhecemos, vemos que pelo menos uma coisa está diferente da versão anterior — Roland está de posse do Chifre do Eld, um artefato que teria feito a diferença em vários momentos de vida e morte (oi, meu nome é Cuthbert).

E aí o Stephen King fez este polêmico tweet

Uma vez eu havia comentado com amigos que, se eu fosse escrever um filme da Torre, eu já começaria mostrando que o Roland está com o Chifre no cinto. Simplesmente deixaria lá, sem maiores explicações, porque aí o filme transcorreria normalmente para quem não conhece os livros, e quem leu já ficaria preparado com toda e qualquer mudança de percurso que desviasse muito dos livros. Mais ou menos a atitude que o J. J. Abrams teve para contar uma prequel de Star Trek sem mexer no cânone original: os filmes se passam numa realidade paralela. Fim. Ninguém reclama (mentira, um monte de gente reclama)

Afinal, com o Chifre, ele poderia ter outras atitudes, fazer outros caminhos.

Lembrem-se que "vários caminhos levam à Torre Negra".

presença do chifre = cânone, não é adaptação. Não tem que discutir se é ou não é, tá óbvio.

Bom, eu vou pular a parte em que fiquei doidão quando vi o tweet do SK. Achei foda. Aliás, o fato de Roland ter o Chifre no filme não significa que essa existência dele é exatamente aquela que começa no fim do livro 7. Pode ser inclusive dez, vinte, trinta realidades depois.

Em um desses retornos, Roland teria voltado negro. Essa realidade fez algo com ele, de certa forma considerando que isso o ajudaria por exemplo a ganhar a confiança de Susannah.

Um monte de gente saiu mordendo a testa dizendo que o fato dele ser da mesma cor dela mataria bons momentos do livro onde ela não vai com a cara de Roland por ele ser branquelo. Mas, calma gente! Ao longo dos eternos retornos, uma coisa ou outra vai se modificando. Em uma delas, Roland veio negro. A sua família é negra. Talvez ele tenha uma identificação maior com Susannah (Detta vai odiar ele de qualquer maneira com qualquer pele). Ou não, vai saber. No filme vimos que os laços dele com Jake são BEM mais fortes. Em pouco tempo, ele cria uma identificação com o menino — pouco tempo mesmo, o filme é curto pacas… mas já entro nesse detalhe.

teve gente que desfez amizade comigo porque defendi o Roland negro, eu fico muito chateFODA-SE ¯\_(ツ)_/¯

Na cena em que eles recitam o Credo dos Pistoleiros juntos, vemos que eles estão conectados através da perda de seus pais. Só sei que chorei pra cacete nessa cena do galpão.

Tá, já que tocamos no assunto principal, vamo logo: o filme.

Pra mim, tem coisas ruins, sim. Uma delas é a duração dele. Apressado. Podia ter momentos mais introspectivos, podia ter mais da solidão do Roland num mundo imensurável e gigantesco e bizarro. Mas não teve nada disso, e o Mundo Médio estava até que bem limpinho. O foco está no Jake, o que seria uma saída para tornar o filme mais comercial nos padrõezinhos quadrados dos grandes estúdios. Mas a Torre não precisava COMEÇAR com o Jake.

Sim, o filme começa com ele — e aí pra mim é um lance estranho. Nunca imaginei um filme da Torre que não começasse com o primeiro (e último) parágrafo dos livros. Ele tem uns sonhos, e nos sonhos ele vê os Sapadores — coisa do quinto livro pra frente. Depois, mais para a frente, em outro sonho, rola até um voice over dizendo a frase inicial dos livros… mas custava ter colocado essa mesma voz sussurrando a coisa antes de abrir na primeira cena, ou algo assim? Nem tô pedindo muito. Isso se resolveria na edição.

(tá, na hora dos créditos iniciais vibrei com a Tet Corporation)

Os desenhos nas paredes do quarto de Jake são o tipo de coisa que vou ficar vendo quadro a quadro quando sair blu-ray. A cena de abertura, mostrando o gira-gira do parquinho e referenciando os Feixes, já mostra que os produtores gostam bastante da Torre. Rola um carinho ali, dá pra sentir.

Os can-toi ficaram bem legais. Dá o elemento terror pro filme logo de cara. O Walter "Man in Black" Paddick do McConaughey não está tão solto quanto eu esperei, mas ficou um bom vilão. Cuzão as fuck. Só achei algumas cenas desnecessárias… quem perde tempo envenenando a mente de uma menininha feliz tomando sorvete? Tipo, ele faria isso, eu sei. Mas não é esse tipo de cena que vai ajudar a construir o personagem em 90 minutos de filme.

Na real, não gostei muito do núcleo de vilões lá na base do Walter. Achei meio "Esqueleto e seus comparsas". Gru e seus minions. Algo assim… eu gostaria de ver Walter sozinho, caminhando, distorcendo palavras, invadindo mentes e se garantindo sozinho. Mas mostrar ele com a Toranja de Merlin, ah, isso foi bem legal.

O caminho de Roland ficou um pouco diferente logo de cara. Tivemos O Dixie Pig (coisa do sexto livro) substituindo o tiroteio em Tull, que nos livros é basicamente onde conhecemos o potencial do Pistoleiro. Eu queria demais ver o Roland dizimando uma cidade de fanáticos sob o comando de Sylvia Pittston. Mas ela ainda pode ser aproveitada em outros filmes, ou na série que contará o passado do Pistoleiro.

Mas seqüência no Dixie Pig é impecável porque de qualquer maneira é emocionante ver Roland SE MEXENDO NUMA TELA. A movimentação e o carão do Idris Elba ficaram incríveis, isso não dá pra reclamar em nenhum instante. Eu achava difícil imaginar uma seqüência no Dixie Pig sem o Padre Callahan, mas ela ficou bem boa.

E aí tocamos no assunto do Kingverso.

O filme resvala em It (o parque! Pennywise!), O Iluminado (o Overlook Hotel numa foto no consultório do psicólogo, e toda a coisa que dá a entender que o Jake e o Danny são duas crianças "iluminadas"), 1408 (o número do segundo portal), Dança da Morte, Christine (um carrinho de brinquedo), O Talismã e A Casa Negra… Seria do caralho ver um filme de Salem's Lot mostrando a morte de Callahan no Mundo Chave para seu renascimento no Mundo Médio, mesmo ator. Um macroverso de terror nos cinemas, ligados por detalhes e não necessariamente por participações óbvias e team-ups, mas com simbologias e paralelos… isso é uma coisa legal demais.

Porém, acho que algumas coisas poderiam ser melhor apresentadas para o público recém-chegado ao Mundo Médio.

A Rosa, por exemplo. A cena final do filme é bem legal, mas… para algumas pessoas será apenas um take preguiçoso. Eu colocaria o Walter secando uma rosa com a presença dele na casa de Jake, algo do tipo. Para o espectador criar algum padrão na cabeça dele, mesmo que ninguém fosse dizer no filme "que a rosa é uma representação da Torre em sua realidade, Jake".

Achei que tentar simplificar o propósito do porquê a Torre deve cair também foi um pouco bobo. Criar um mundo de monstros? Ok, o todash é uma coisa importante na saga. Mas não é bem isso que Walter quer. Nos livros ele quer controle, e de cara vemos que seus interesses cruzam com os do Rei Rubro, de quem ele se diz um "arauto", mas também um comandante. Aliás, o Rei aqui se resume apenas à uma pixação na parede (legal!), à cor predominante nos desenhos de Jake e à cor da energia que os monstros de fora do universo apresentam na cena quando tentam invadir a realidade. De início eu estava esperando uma aranhona (tava até imaginando como iriam trazer Mordred antes da hora) mas aí me apareceu um treco com tentáculos que pode muito bem ter ligação com os monstros de The Mist. Aliás, na hora em que Roland explica pro Jake sobre os monstros querendo invadir o mundo deles, ele não usa uma aranha à toa.

Richard Sayre, que é um puta personagem importante nos livros (à partir do quinto, Lobos de Calla), aqui aparece antecipadamente e não faz muita coisa. Quer dizer, ele impõe respeito quando entra em ação, mas depois da briga com Roland some abruptamente.

Falando em coisas abruptas, o final do filme fez algo "ousado", mas que pode complicar as seqüências. Essa coisa de matar o Walter nos faz vibrar, mas isso só pode significar que: a) o resto da história vai transcorrer sem O Homem de Preto, o que é impensável b) "Shazam, carai! Num morri, rsrsrs", o que é mais provável, ainda que simplório. O filme não tem cena pós-créditos, mas assim que a última letrinha some da tela nós podemos ouvir o assobio zombeteiro do Walter. Ok. Só acho que esse desfecho da batalha poderia aguardar outro filme. Seria mais interessante se o feiticeiro escapasse e Jake ficasse com um desejo de vingança entalado na garganta, isso facilitaria na coisa do "eu vou contigo, não tem mais nada pra mim aqui nessa NY".

Mas vamos aos grandes momentos que me fizeram sorrir/vibrar e valem por todo o resto:

  • Roland no hospital vendo a propaganda com os guaxinins e perguntando se os animais da Terra ainda falam (Oy!). A seqüência inteira é boa;
  • Roland no busão falando que as rolezeiras esqueceram os rostos de seus pais;
  • Tiroteio no Dixie Pig;
  • As frases enigmáticas e dúbias do Walter, que parecem sempre se referir à outra vida de Roland ao mesmo tempo que ao passado de sua vida atual (o outro grupo que morreu, você sempre volta ao início, coisas do tipo).

Enfim, falei demais já, mas desabafei o que queria dizer. Balanço geral e resumo, o filme é bom? Cara, eu fiquei emocionadaço de ver qualquer coisa da Torre na tela. Já tinha ficado feliz quando apareceu um quadro do Roland no começo de O Nevoeiro, imagina agora?

eu sei, eu me contento com pouco.

Se esse filme tivesse sido o piloto de uma série de TV, teria sido um BAITA dum primeiro episódio. Mas não é, a série vai focar em Mago e Vidro, então vamos ter que esperar pelo menos dois aninhos (sendo otimista) pra ter mais do Mundo Médio numa tela.

E como hoje foi um dia de abrir a mente, acho que vou assistir alguma coisa que seja realmente uma adaptação do original, para equilibrar as coisas. Vi aqui que Death Note entrou na Netflix. Vou lá ver. Estou super otimista.

Obrigado por chegar até aqui lendo um monte de pensamentos soltos sobre o filme. Eu adoro conversar sobre a Torre, e se quiser colocar alguma coisa sobre aqui nos comentários ou me procurar no Twitter pra falar sobre (@felcastilho), tamo junto! É só chegar.

Longos dias e belas noites, sai!

Meu nome é Felipe Castilho, sou escritor e roteirista de quadrinhos, games e séries. Tenho uma saga que por enquanto tem três livros, chamada O Legado Folclórico — falta um pra terminar. A Torre Negra é uma das minhas séries de livros favoritas de todos os tempos, ao lado de Discworld. Moro em São Paulo, onde louvo o Deus-Bomba.

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