6 meses e 28 anos de cárcere: Graciliano, Gárgulas e eu.

Felipe Monteiro
7 min readJul 13, 2023

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6 meses. Foi o tempo que tomei para ler Memórias do Cárcere, de Graciliano. Um tempo sem cabimento e que cabia tanto.

Foto. Arquivo: Graciliano Ramos escrevendo em papel e caneta.
Graciliano Ramos.

É um calhamaço e exige anotações, mas não o suficiente para que me arrancasse meio ano. É que minha relação com as palavras em nível pessoal varia entre picos e afastamentos. Se hoje arremato um livro, me inspiro e escrevo um conto, amanhã a náusea me toma ao abrir um documento no computador. Deixo de mergulhar na tela branca, e me afogo.
Falo “nível pessoal”, pois o meu ofício consiste justamente em, veja você, palavras. O cotidiano numa agência de publicidade me pede roteiros, revisões, redação, outras revisões, copy, chamadas, fichas técnicas e mais revisões. Escrevo para os outros, raramente para mim.
Memórias do Cárcere acompanhou esse declínio como um companheiro frio e paciente. No final de janeiro, tive o primeiro contato com o relato de Graciliano sobre o período que passou preso na ditadura Vargas. Nos mesmos dias, escrevi um conto inspirado em Shadow de Poe. A narração do conterrâneo sempre me pesca, não é novidade, e o conto, embora não apaixonado, deixara-me satisfeito.

Tudo ia bem. E de repente, nada.

Foram 6 meses para voltar à leitura e uma tentativa besta de escrita. Se me perguntar o motivo, não digo, desconheço. Não recordo evento, bom ou ruim, que tenha engatilhado a minha entrada nesse limbo literário. Não lia nem escrevia. Na linguagem de comunicólogo, não fui receptor, e o papel de emissor era-me impossível.

Mas vamos ao Velho Graça.

Graciliano não era boa companhia para dividir sua cerveja, sua tarde e sua filosofia num boteco perto de sua casa na Pajuçara. Era ranzinza, rabugento e com preconceitos que apenas um homem de educação burguesa, criado no final do século XIX no interior coronelista de Alagoas, poderia ter. Ainda assim, conseguia se distanciar (nunca totalmente) de cada situação para tentar observar analiticamente o quadro. Crítico, inclusive (e talvez principalmente) dele mesmo, apontava sua hipocrisia e preconceitos de maneira que exigiria uma análise filosófica e psicológica de um juiz experiente. Não me atrevo.

Não é novidade que a ditadura de Vargas, assim como qualquer outra, criava uma falsa necessidade da força bruta “em nome da pátria.” Se hoje fala-se sobre a caça ao “fantasma do comunismo”, a Gestapo, na década de 30, abraçava o Brasil num tentáculo imundo.

Preso sem explicações ou processo, surpreendia-se ao ouvir de outros que o seu trabalho teria criado aquela desordem.

“Absurdo julgar que histórias simples, produto de mãos débeis e inteligência débil, constituíssem arma. Não me sentia culpado. Que diabo!”

Paro aqui para dizer que farei uma crítica sobre Memórias num outro momento. Quero apontar o que me chamou atenção no parágrafo anterior. “Mãos débeis”. Ora, se as dele eram débeis, as minhas são mortas, dissolvem-se no tempo sobre o teclado. Percebi em Graciliano um desdém, por vezes desprezo, por tudo que escrevia.

“Dois romances quase desconhecidos, o terceiro inédito, um conto, vários produtos inferiores (…).”

Quando em casa:

“Ocupava-me em redigir um vago esboço literário, destinado ao fogo, naturalmente: quando as gavetas se abarrotassem, seria preciso, como de ordinário, esvaziá-las, destruir as composições medíocres.”

Em cárcere:

“Prosa de noticiarista vagabundo. Tropeços horríveis para alinhavar um simples comentário. Ora comentário! Se até a narração e o diálogo emperravam, certo não me iria meter em funduras. Havia chumbo na minha cabeça.”

Se odiava o que escrevia, por que teimava em escrever? Por que em meio à selvageria da Colônia Correcional que calejava o espírito, as juntas tremiam com a possibilidade de ficar sem papel e lápis?

“A perda irremediável das folhas de papel mexia-me os nervos.”

“Inútil, ocioso, a vagar à toa, ouvindo a parolagem dos grupos (…) e o trabalho abandonado. (…) Necessário escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava.”

Tese, antítese e síntese de si. Para o inferno com a lógica! Essa aparição contraditória de Graciliano não parava de me interessar. Era constante, onipresente. Admitia seus preconceitos como preconceitos, odiava escrever e não viveria sem lápis e folha, discordante e empático, bruto (mais ainda pela cadeia) e compreensivo.

Se num momento dizia:

“Era penosa a convivência inevitável com pessoas diferentes de mim.”

Ou

“Éramos frangalhos; éramos fontes secas; éramos desgraçados egoísmos cheios de pavor. Tinham-nos reduzido a isso.”

Também foi o único a tentar socorrer o colega de cela que morria sozinho,

“Fui à porta, olhei pelas barras de ferro, procurei um soldado, um funcionário, chamei. Ninguém. Nenhuma assistência ao infeliz.”

ou que corria a abraçar Apporelly em suas crises de terror noturno:

“De repente erguia-se num tremor convulso, batendo os dentes, a arquejar. (…) Abandonava o travesseiro, agarrava o doente até que ele se acalmasse. Atormentava-me. Iria Apporelly morrer-me nos braços?”

Tinha noção (de novo a capacidade de afastamento parcial) dessa dualidade. Ria do absurdo. Era chamado de “Doutor” e respeitado por alguns guardas da Colônia Correcional, e ali estava de cabeça raspada, seminu, dormindo em mijo e areia, cobrindo-se com trapos sujos do sangue de companheiros mortos, ao lado de moribundos e moscas famintas por feridas abertas.

Não faz muito tempo, ouvi que eu era “ótimo com as palavras e péssimo em me comunicar”. Embora não acreditasse tanto no elogio, a acusação não deixava dúvidas: dualidade, confusão. Vivia de contradições e respirava paradoxos.

Afetava-me encontrar no livro uma identificação dolorosa, especialmente com a escrita. Em 28 anos, dezenas de drives com anotações para histórias, contos, críticas e apenas uma publicação: um conto que escrevi e enviei no mesmo dia. Um raio de exceção que caíra em 2022.

Sempre houve preocupação com o julgamento, já que quem me lê, me lê como é, não como sou e a falta de controle, ainda que natural, é agoniante. Mas o carrasco ainda era eu. Meu maior crítico. Se releio, odeio. Se refaço, me desmancho no teclado e desisto.

Remexi os volumes da memória, analista incompetente de mim mesmo, tentava encontrar base para essa identificação. Deparei-me com uma ironia desgraçada. Ainda criança, alheio a questões do ser, tinha uma personagem preferida nas animações diárias: Golias, a gárgula. Durante o dia, estátua. Durante a noite, dor viva. Uma existência dividida entre pedra e carne monstruosa. Ora bruto, ora demônio. Para o próprio horror, ainda vivia submisso a desejos, ambições, preocupações e sentimentos. Entre passado e presente, Escócia e Manhattan, escondia-se nas alturas a proteger quem vivia no chão. Herói trágico.

Golias — Os Gárgulas.

Curioso o reconhecimento em criaturas de existência múltipla. Não se trata de caminhar numa linha safada entre contrastes, o “moralmente cinza”. Ao contrário, é mergulhar nas duas bandas ao mesmo tempo. Contradições, paradoxos.

A figura do escritor artista me assombra. Ama a sua arte e apresenta a filha com sorrisos e orgulho. Me assombra porque é linda. É linda porque não consigo alcançá-la. A pessoa abre um documento digital ou um bloco de notas amassado pela umidade e se vê livre. Liberar-se através das palavras. Que beleza.

À minha escrita não chamo arte. É penosa, exorcismo. O problema é decidir o que fazer com os vários diabos após o ritual. Pior ainda quando são insuficientes. Por vezes, não há palavras para descrever o sentimento, vultos ilegíveis de sílabas e pontuação brincam no canto do olho, mas nunca se mostram. O aniquilamento do escritor. Sem expressão nem impressão.

Graciliano diz:

“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”

Acabo por concordar com ele (que milagre, não?), talvez por falta de resposta melhor, que escrevemos porque é o que sabemos fazer.

“Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários.”

Assim, tenho um refúgio qualquer para a motivação da escrita. Sobra-me outra questão: por que mostrar? O que ganho com o post? Do que me adianta a publicação? Um impulso utilitarista me dobra a pensar que é apenas a necessidade de um portfólio não publicitário. Apesar de real, a conclusão me cai falha.

Talvez espere, num intuito egocêntrico, servir de exemplo a alguém que também combate diariamente o perfeccionismo impostor. Talvez acredite que escrevo o que quero ler. Esperei que alguém melhor aparecesse colocando em palavras minhas impressões do mundo. Não apareceram.

E se tenho interesse, alguém também terá. Há histórias que precisam ser contadas e talvez algum dia, alguma delas venha do choque estrondoso na minha cabeça. Se isso acontecer, me calo em seguida. A verdade é que não sei. Aqui começo a publicar.

Sigo criando monstros, resultados de exorcismos, que agora exponho num show de horrores com a esperança de que sejam como Graciliano, Golias e eu. Pedra, carne e alma.

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Cut deep and I’m still alive. I talk my shit ’til the day I die ‘cause
Oh, baby, I live. Oh, baby, I tried. — Cut Deep, Matt Maeson.

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