A conduta faz o homem

O cavalheirismo e suas insuspeitas origens medievais

Felipe Azevedo Melo
4 min readFeb 28, 2016

Matthew Vaughn é um bom diretor. Gosto do seu trabalho. Produziu dois filmes de Guy Ritchie dos quais gosto muito — “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (Lock, Stock and Two Smoking Barrels) e “Snatch: Porcos e Diamantes” (Snatch.) –, e fez um trabalho excepcional no seu primeiro filme, “Nem Tudo É O Que Parece” (Layer Cake). Adaptou alguns quadrinhos para o cinema: Kick-Ass, X-Men e, com grande licença poética, The Secret Service. Bom, falar de licença poética no último caso é puro eufemismo, pois a história foi bastante reformulada, o que a deixou bem melhor.

“Kingsman: Serviço Secreto” (Kingsman: The Secret Service) é um filme muito divertido. Não me arrependi de ter visto no cinema. Valeu o ingresso. Tem tudo o que você espera encontrar num filme de Vaughn: periferia de Londres, sotaque cockney, ritmo forte e muita violência. Ter visto Colin Firth chutando algumas bundas foi ótimo, para dizer o mínimo, e ver atores do calibre de Michael Caine, Samuel L. Jackson e Mark Strong trabalhando juntos é um atrativo a mais. Juntar todas essas coisas foi um sucesso: o filme rendeu aproximadamente US$ 415 milhões. Muita gente achou o filme legalzinho; muita gente reclamou da violência (o massacre na igreja, sobretudo). Mas o filme tem um mérito que, acho, pouca gente percebeu.

A agência internacional de espionagem Kingsman foi criada com base nas lendas arturianas, com direito a Merlim e tudo mais. O personagem de Firth, Harry Hart, atende pelo codinome de Galahad. Para Eggsy, seu recruta, Galahad enfatiza sempre que todo agente Kingsman deve ser um cavalheiro, e que ser um cavalheiro significa ser um cavaleiro moderno. Dentro da narrativa do filme, isso é interessante e se encaixa muito bem, mas associar o cavalheirismo moderno ao código de cavalaria medieval não parece ser uma coisa séria no mundo real.

Acontece que Vaughn está mais certo do que você pensa.

Podemos começar a averiguar isso dirigindo nossa atenção para as letras. Na língua portuguesa, a palavra “cavalheiro” vem do castelhano antigo “cavallero”, que, por sua vez, veio do latim vulgar “caballarius” (cavaleiro). Na língua inglesa, “cavalheiro” é “gentleman” — que poderia se traduzir por “gentil-homem”, um termo que designava os cavaleiros mais próximos do rei –, e “cavalheirismo”, “chivalry” — que vem do francês “chevalerie”, que significa, literalmente, cavalaria. Essas associações etimológicas não são fruto do acaso, nem mera curiosidade lingüística, mas um indício forte rumo à tese apresentada no filme.

Godofredo de Bulhões

Desde o Império Romano, um membro da cavalaria devia ter algumas características essenciais: pertencer à nobreza, ser um guerreiro de valor e agir em conformidade com o decoro e a honra que se esperavam de um nobre (elemento mais ideal e, às vezes, ilusório dos três). A cavalaria voltou a ter importância para o Ocidente durante o império de Carlos Magno, e a idéia de vocação para a cavalaria nasceu num dos lugares mais importantes da civilização ocidental: a Abadia de Cluny. Entre os anos 909 e 920, o abade Odo de Cluny escreveu a obra “Vida de São Geraldo de Aurillac”, onde defende a vocação de cavaleiro como algo excepcional e sobrenatural. Essa idéia se desenvolveu ao longo dos anos até atingir seu clímax durante a era das Cruzadas, e, ainda que fosse um ideal ao qual devessem aspirar os cavaleiros, não foi apenas um delírio romântico. Homens como Godofredo de Bulhões, William Marshal e São Luís IX, rei da França, foram exemplos da materialização do código de honra da cavalaria medieval.

O processo de transformação do código de cavalaria no cavalheirismo moderno passou por muitas etapas que não convêm abordar, já que a explicação para isso daria um tratado considerável. Basta dizer que o ideal do espírito de cavalaria se foi perdendo aspectos fundamentais: com o Iluminismo, a piedade religiosa foi descartada; com doutrinas como o racionalismo e o utilitarismo, o cultivo de virtudes passou a ser visto como uma afetação de outros tempos. Hoje, a compreensão que se tem de cavalheirismo se restringe, basicamente, a um comportamento especial com relação às mulheres.

Além da compreensão capenga que se tem de cavalheirismo, esse ideal de comportamento masculino causa uma aversão incrível a muita gente. O feminismo fez o seu papel em pintar qualquer atitude cavalheiresca do homem como uma manifestação de dominação patriarcal e falocrática (seja lá o que isso signifique) sobre a mulher. Não bastasse isso, o cavalheirismo agora é atacado também por homens: tem se tornado cada vez mais aceita no âmbito masculino a idéia de que as maneiras de um cavalheiro são sinal de fraqueza e submissão aos caprichos da mulher, coisas das quais o homem deve se livrar para se tornar um “macho-alfa”. Se você ousar cometer o pecado de, por exemplo, ceder seu lugar no ônibus para uma mulher, você corre um duplo risco — ser chamado de machista ou de frouxo.

As relações construídas por Vaughn em seu filme, ainda que acessórias, não são fruto do acaso, mesmo que não tenham sido pensadas minuciosamente pelo diretor. Mas vê-se no comportamento de Galahad um ideal de valentia e nobreza que encontra paralelos em obras que vão desde o ciclo arturiano, como “A Demanda do Graal” e “A Morte de Artur”, até o oitocentista “Ivanhoe”, de Sir Walter Scott. Em meio a uma intriga bizarra de alcance internacional, milhares de balas e alguns litros de sangue, é possível enxergar um breve lembrete de onde está a fonte do verdadeiro cavalheirismo.

Manners maketh man.

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