“alguns comentários sobre cappuccinos, estranhos e pensar demais”

(ou “Não É Egocentrismo Se For Verdade” (ou ainda “A Vez Em Que Fui Para São Paulo Por Um Fim De Semana”))

Fellipe Mendes
20 min readMar 1, 2017

Às quatro horas da tarde do dia 24 de janeiro de 2017 eu pedi um cappuccino em uma cafeteria. Tinha acabado de sair de uma entrevista de emprego praticamente surpresa que foi muito boa e decidi fazer minha costumeira comemoração de Não Ir Direto Para Casa Quando O Dia É Bom. Desde então tenho pedido cappuccinos em cafeterias.

Não é que eu não gostasse antes, mas o hábito de sair duas ou três vezes por semana para ficar lendo enquanto tomo café surgiu depois disso. Esse é um costume que consiste basicamente em ir à uma cafeteria com um livro, pedir um cappuccino e ficar intervalando a leitura com momentos de observação extrínsecas e anotações mentais sobre as pessoas ao redor. O cappuccino também serve como um ingresso para que eu possa ficar sentado na cafeteria por três horas sem ninguém ficar me olhando feio demais (“demais” já que, acredite, ficar sentado em qualquer lanchonete ou cafeteria por três seguidas horas sempre irá fazer com que algumas pessoas te olhem feio). O meu lugar favorito desde que iniciei esse hobby é a Café Do Ponto do São Luís Shopping. Apesar de ela não ter o melhor cappuccino — esse título vai para a Rei Do Mate do Shopping Da Ilha — ela é perfeitamente posicionada na interseção de quatro corredores, o que faz com que seja a mais movimentada de todas as cafeterias daqui; o que, novamente, faz com que seja a minha favorita.

Não costumo ser bom em conversar com estranhos. Nem é tanto por não ter o que falar, a minha propensão para falar sobre assuntos dos quais sou inapto é surpreendentemente alta: (a) geralmente gosto de descobrir o que não conhecia antes e (b) gosto muito de ouvir as pessoas falando honestamente sobre o que gostam. Acho que meu problema acaba sendo o fato de eu ser semi-analfabeto em linguagem corporal e não conseguir exprimir e nem notar com clareza certas nuances padrão que ocorrem nos primeiros momentos de um contato interpessoal (é surpreendente como isso se transporta para as mensagens instantâneas como um pensar-demais-antes-de-falar-e-falar-justamente-o-que-pensei-demais (o que me faz preferir sempre encontrar as pessoas pessoalmente já que a outra opção me soa mais desastrosa)), mas o desenrolar das coisas geralmente acaba bem. Em síntese, sou bobo demais com primeiros contatos com pessoas, o que em alguns casos pode durar semanas. Vou relatar agora uma vez em que consegui não ser (muito) bobo.

***

240117

No dia 24, quando pedi o cappuccino precursor, estava sentado com uma garota no shopping. Conheci ela mais ou menos trinta minutos antes. Estava no terminal esperando o ônibus para ir para o shopping quando essa garota parou na minha frente e me informou que não gostava da minha camisa; uma de mangas compridas vermelha com a bandeira da Alemanha. Era completamente compreensível, àquela altura nem eu gostava mais daquela camisa que estava grande demais e velha demais. A garota tinha um cabelo castanho comprido com franja e um rosto arredondado com bochechas volumosas, mas não muito. Usava um vestido branco com flores rosa até a altura do joelho, sandálias marrom claro e carregava uma mochila cinza nas costas e uma mala de viagem pequena na mão direita. Olhei pra cima meio atônito e respondi que não gostava do cabelo dela (eu gostava do cabelo dela). A garota sentou do meu lado e perguntou aonde eu ia. Respondi que ia “ao shopping”. O ônibus chegou, ela entrou comigo, sentou ao meu lado e ficamos calados por dez minutos.

“Eu puxo assunto com você, sento ao seu lado e você não fala comigo depois, é isso mesmo?”

Tirei um lado do fone de ouvido e perguntei “o quê?”

Ela revirou os olhos e repetiu “eu puxo assunto com você, sento ao seu lado e você não fala comigo depois, é isso mesmo?”

“O que você quer que eu fale?”

“Não sei, ué.”

“Como foi seu dia hoje?”

Ela ficou calada e olhou para um ponto no infinito do lado de fora do ônibus por alguns segundos.

“Você não sabe como são os meus outros dias.”

“Não.”

“Então por que está perguntando sobre esse?”

“Sei lá, parece uma pergunta boa para ser feita.”

“Pois não é, não.”

“Entendi.”

Ficamos calados novamente. O ônibus foi chegando perto da parada do shopping, falei pra ela que iria descer ali e perguntei se ela ia continuar me seguindo.

“Vai continuar com essas perguntas assim?”

“Muito provavelmente.”

Ela não respondeu nada.

Desceu junto comigo na parada e fomos em direção ao shopping.

No caminho perguntei o motivo da bolsa de viagem, ela respondeu que estava esperando uma conexão para voltar para casa. Era para ser uma conexão de 40 minutos, mas ela perdeu o vôo e teve que pagar outro que chegaria em 9 horas, então decidiu dar uma volta. Perguntei se ela tinha se perdido ou se estava procurando lugar específico quando saiu do aeroporto, e respondeu que já havia morado aqui só que de um jeito meio irascível que deixou claro que não queria responder perguntas assim. Então perguntei qual era o problema da minha camisa e ela disse que era grande demais pra mim, assim como a minha calça. Parecia que estava usando roupas de alguém com o dobro do meu tamanho. Falei que emagreci rápido demais e não tive tempo de comprar roupas novas ainda. A Companheira Provisória me olhou como se eu tivesse acabado de confessar um crime horrendo. “Se você teve tempo pra emagrecer também tem para comprar” ela virou e disse para procurarmos uma loja para que pudesse me mostrar algumas roupas que ficariam melhores do que as que usava (novamente, não era uma tarefa muito difícil dadas as condições).

“Você gosta mais ou menos de que tipo de roupa?”

“Não dá pra ver pelo que estou usando?”

“Não é possível que você goste do que está usando.”

“Está tão ruim assim?”

Ela olhou para mim afirmando por exformação.

Depois de alguns minutos folheando camisetas nas araras da Renner pegamos duas e fui experimentar. Gostei muito de uma delas e comprei. Era uma camiseta branca com um bolso bege de veludo e uns traços pretos meio riscados. Cinco dias depois eu sujei essa camisa com marcador de quadro vermelho e a mancha não saiu direito até agora (isso não é relevante em nada para este texto). Depois da loja a Companheira Provisória disse que queria comer alguma coisa, então entramos na fila da cafeteria.

Sempre tenho um receio muito grande quando vou falar com atendentes em qualquer lugar que seja. Uma pressão angustiante de que eu não gostaria de atrapalhar a pessoa misturada com a sensação de já estar atrapalhando e isso me faz às vezes acabar gastando dinheiro que não deveria ser gasto. Dois anos atrás perguntei sobre um livro em uma livraria e o vendedor falou que ainda não estava nas prateleiras, mas ele sabia onde tinha. O rapaz foi até o depósito e depois de cerca de 23 minutos de busca ele voltou com o bendito livro. Depois dessa procura intensa, imagino eu, pelas estruturas prediais de livros que deve ser o depósito de uma livraria daquelas, eu não sabia como dizer a ele que queria apenas “ver” e não comprar. Esse é o motivo pelo qual tenho dentro do armário uma cópia de quarenta reais de A Breve História Do Tempo ainda embalada no tradicional plástico transparente.

Companheira Provisória pediu um pão de queijo multigrãos e eu um cappuccino sem canela. Ela perguntou o que eu iria fazer aqui no shopping, respondi que leria. Ela perguntou “o quê?”, então puxei o livro da mochila. Ela pergunta sobre o que é. Tento sintetizar a ideia do livro e alguns dos ensaios. Ela finge interesse de uma forma empática que acaba se tornando um interesse verdadeiro com a conversa. Ela vai ao banheiro e no meio tempo o pedido chega. Meu cappuccino veio com canela — muita canela. Não falei nada, só agradeci. Tiro uma foto da mesa e levo a xícara à boca. Ele desce quente de um jeito que quase consigo sentir por dentro do meu corpo depois de engolir. C.P. volta alguns minutos depois.

“O que você estava ouvindo quando falei com você no terminal?”

“Sufjan Stevens.”

“Nunca ouvi falar.”

“É muito bom, tava ouvindo o Carrie & Lowell, é um bem calminho dele.”

“Gosta de Oasis?”

“Nunca passei da Wonderwall que os caras tocavam para ganhar meninas no pátio do ensino médio.”

“Depois tira um tempo pra ouvir o Morning Glory, é o mais famosinho deles. Acho que você vai gostar.”

“Não sei se gostaria.” (no mesmo momento me senti culpado por não retribuir o interesse empático e tentei corrigir). “…mas vou baixar.” (não foi o suficiente, ainda me sinto culpado).

Duas semanas depois eu estava voltando de uma viagem de São Paulo, lembrei da C.P. e baixei o álbum no Spotify do celular para ouvir depois. Uma semana depois eu comecei a ouvir; ela estava certa.

“É muito bom isso aqui”

“O café?”

“Não, isso aqui que a gente tá fazendo. É bom.”

“Também tô achando.”

“Por que você puxou assunto comigo no terminal?”

“Sei lá. Você é bonitinho, mas parece que precisa de ajuda.”

“Ajuda?”

“As roupas, o cabelo… você podia se cuidar melhor. Pensando agora, você ficaria bem com uma camisa de botão.” (depois do café compramos uma camisa de botão (também gostei muito dessa)).

“E se eu fosse uma pessoa bem escrota?”

“Você teria sido grosso comigo.”

“Eu disse que não gostava do seu cabelo.”

“Era mentira. Ser grosso de mentira não vale.”

Ri com o canto da boca enquanto fazia um sinal de não com a cabeça por conta do desmascaro.

“Você costuma vir sempre pra ler por aqui?”

“Não, na verdade essa ia ser a primeira vez.”

“Então que bom que eu vim com você.”

“Por quê?”

“Porque você vai lembrar de mim toda vez que for em uma cafeteria, não é óbvio?”

“Nossa, que ego, hein, garota?”

“Não é egocentrismo se for verdade.”

“… ei… já assistiu The Nice Guys?”

Pelos próximos setenta minutos conversamos sobre filmes. Descobri que ela era muito fã de um cinegrafista japonês chamado Kenji Mizoguchi. Ela se empolgou (gosto quando as pessoas se empolgam) e começou a me contar tantas coisas sobre o diretor que em alguns momentos eu tive a plena certeza de que ela estava lendo a Wikipédia ou que alguém em uma outra parte da cidade estava mandando as informações pra ela por um fone de ouvido imperceptível. C.P. tentava me contar sobre os filmes, mas interrompia a si mesma o tempo inteiro para se certificar que não me daria spoilers. The Life of Oharu é o filme favorito dela — ela usou a palavra “devastador” três vezes em três sentenças diferentes seguidas. Também faço isso quando me empolgo. Foi uma conversa muito boa de se ter. Já fazem quatro semanas e eu ainda não assisti The Life of Oharu.

Depois que a conversa de filme terminou, olhei em volta.

“Não gosto muito desse shopping.”

“Por quê?”

“Não sei, não tem muita cara de shopping pra mim. Gosto de fazer parte da Massa de Shopping.”

“Aqui tem um monte de gente, só olha ao redor.”

“Eu sei que tem, é que aqui é menos. Tem um outro shopping mais perto da minha casa em que os corredores são maiores e as interseções mais frequentes, então a sensação de Massa de Shopping é maior.”

“Que gosto estranho esse.”

“Talvez. É que é engraçado como surge essa massa que se forma e desforma o tempo inteiro. Gosto disso. De ver esse bolo com um monte de gente passando, crianças brincando, gente vivendo suas vidas, trabalhando, rindo, essas coisas. É bom isso principalmente quando você se dá conta de que não está observando a massa, mas faz parte dela.”

“Tanta gente no terminal e eu escolhi um maluco que romantiza shopping.”

“Azar o seu, menina.”

Eu e C.P. ficamos alguns minutos calados objetivamente observando as pessoas passando.

***

100217

Estava sentado em um banco assistindo os números de partidas e chegadas se atualizarem no painel. Cheguei no Aeroporto Internacional de São Luís à tarde. Meu vôo era às duas. Eu já deveria estar em São Paulo, na verdade, mas perdi o primeiro por ter olhado o horário da conexão (8:00) e não da partida (4:27). Paguei outra passagem.

A área de embarque é sempre um lugar um tanto quanto agridoce.

Eu escutava Sherwood nos fones de ouvido como se estivesse em 2007. Então percebo a existência da Massa do Aeroporto. Aqui tem várias pessoas, mas algumas me chamam mais a atenção: um casal de velhinhos de uns 70 anos, os quais tenho absoluta certeza de que são turistas (ele usa um chapéu coco e suspensórios de uma forma tão verdadeira e apropriada que só vi sendo usada assim em filmes); tem um senhor gordo com seu filho que usa uma camisa do homem aranha; Há um japonês conversando sobre trabalho em inglês com um… pseudo argentino — digo isso exclusivamente pelo fato de ele usar uma camisa de botão branca com listras azuis; e na minha frente tem uma garota com botas e jeans chorando abraçada com um urso de pelúcia enquanto olha fotos em um celular. Pelo jeito que ela abraça o urso, julgo ser presente de algum namorado. Tento imaginar possíveis situações: pelo tamanho das bagagens que ela despachou mais cedo quando estava na minha frente na fila — quatro malas grandes e agora carrega duas de mão de tamanho considerável — ela está de mudança. Como está sozinha e aparentemente tem uns 20 e poucos anos, acho que deve ser algum intercâmbio ou está indo morar alguns meses com alguém já que a faculdade geralmente começa em fevereiro ou março. Olho pra ela e chego à conclusão de que possivelmente ela não mora aqui e deve estar voltando para o outro lugar. Olho para ela mais um pouco e percebo que acaba que não faz diferença isso já que ela está aqui abraçada com um bicho de pelúcia olhando fotos. O importante é que ela está indo embora.

Essa é a diferença entre a Massa de Shopping e a Massa de Aeroporto.

A primeira sempre tem pessoas que estão ali por querer assistir um filme, comprar alguma coisa, passear, comer alguma comida específica. Por quererem estar ali. A Massa de Aeroporto é uma letargia da Massa de Shopping. Ela se forma e desforma padronizadamente enquanto vôos partem. A área de embarque é como uma bolha de estase. Não é A e nem B, é apenas um intervalo entre lugares. Parece que a sua cabeça nunca estará de fato na área de embarque. Não é como uma viagem de ônibus ou de trem, uma viagem de avião é um intervalo estático, natimorto. A menina abraçada com o urso nesse momento se torna ilustrativa do que é estar aqui. Todas as pessoas de terno com maletas que passam de um lado pro outro, o casal de velhinhos lá no fundo, o homem gordo que está com o filho, o japonês e o pseudo argentino, todos estão pensando e conversando sobre para onde estão indo ou o que estão deixando. Revisitando na mente o que fizeram aqui ou projetando o que irão fazer em outro lugar.

Com isso chego a conclusão de que Milton nunca escreveria Encontros e Despedidas de dentro de uma área de embarque de aeroporto.

Fui até uma loja que tinha ao lado, comprei uma barra de chocolate de R$1,50 por R$4,50 e segui para o avião. Encontrei minha poltrona e sentei esperando a decolagem — o homem gordo e o filho estavam sentados na mesma fileira que eu. O avião começou a taxiar em direção à pista e subiu.

Depois de alguns minutos de vôo comecei a assistir A Viagem para Darjeeling no celular por causa de uma amiga da faculdade que havia reencontrado há alguns dias. É muito bom. Terminei o filme pensando em um review para o letterboxd: “família; amarelo; owen wilson; família”. Esqueci de escrever quando cheguei em São Paulo.

O homem gordo ao meu lado tinha uma marca no dedo. Uma barriga no dedo anelar que surge quando se usa uma aliança por muito tempo. Ele não tinha mais uma aliança. Quando descemos no avião ele encontrou uma mulher e o filho dele a abraçou. Os três saíram juntos — ele não abraçou ela.

***

110217

Era minha primeira manhã em São Paulo. O relógio marcava seis e eu estava no colchão de baixo enquanto meu amigo anfitrião e a sua namorada no colchão de cima ainda dormindo. Na noite anterior fomos a um bar e bebemos dionisicamente enquanto falávamos sobre videogames, Hacksaw Ridge e como a publicidade é megalomaníaca. Eles disseram que no caminho de volta fiquei pastorando para que andassem no meio da calçada. A Rua Augusta é basicamente o Reviver de São Luís em São Paulo. Um local que sozinho representa toda a promiscuidade e espiritualidade da adolescência da cidade — de maneira positiva e negativa. Ver isso me fez acreditar que em todo lugar deve haver essa rua em que geralmente há adolescentes vestindo camisas de banda, gente que toca violão, jovens com meias ⅞ (com destaque para o uso do termo unissex) e adultos de cinquenta anos que nunca saíram neurologicamente da adolescência. Fomos parados por pessoas pedindo dinheiro um total de três vezes. É inusitado que eles não só pedem, mas há todo um diálogo tragicômico durante o processo, quase como se esperassem que o dinheiro fosse dado em troca dele. Um dos meus momentos favoritos dessa noite certamente foi uma pessoa me parar para me oferecer um “brisadeiro” — o que me confirmaram depois ser na verdade um brigadeiro com maconha dentro. Neste momento quis muito ter o hábito de usar chapéu porque definitivamente o tiraria para esse nome (ou daria esse nome para o meu chapéu).

Todos do apartamento acordaram. Tomamos café juntos e eu comi o pão mais bonito que já vi na vida; sério, por alguns instantes considerei comprar mais alguns para levar para São Luís. Houveram curtas ameaças de morte durante o café pelo fato de eu ter dormido de calça jeans e mangas compridas em um “calor infernal” como eles definiram, mas estava tudo bem pra mim porque desde que senti a primeira bordoada dos ares de São Paulo que não conseguia nem lembrar mais como era suar. Bebi caldo de cana. Sem querer derrubei farelos de pão na cabeça de uma pessoa passando na rua abaixo da janela. Escutamos o Blackstar inteiro em vinil. A sensação geral é a de estar fazendo algo rotineiro com amigos que vejo quase todos os dias, mas nada disso é nem um pouco próximo da minha rotina. Minha rotina agora envolvia ir para o treinamento do emprego, sair para ler e assistir filmes em casa. Gosto da minha rotina. Também gostei do ar familiar que essa manhã teve. Depois de algumas horas encontramos um outro amigo que chegou de viagem do Rio para ficar no mesmo apartamento e saímos.

O sol desceu feito uma guilhotina nesse dia.

Algumas horas depois já estávamos todos reunidos em um grupo maior na frente do karaokê à noite. Durante a viagem de Uber até lá houve uma encenação não-intencional do vídeo “Carona” do Porta dos Fundos. Esperamos o resto do pessoal chegar, estávamos em oito agora. Depois de nos reunirmos e decidirmos entrar, uma mulher grita de dentro de um carro parado no meio da rua que queria ajuda para estacionar. Um dos nossos se oferece e começa a gesticular orientações para a moça que mesmo depois de alguns minutos ainda não consegue estacionar. Ele decide então entrar no carro para ajudá-la e de repente grita lá de dentro “é automático essa porra, eu não sei dirigir assim!”. Nesse ponto já estávamos filmando a situação com um misto emocional de risadas e pena por conta da moça que provavelmente se arrependeu de ter pedido ajuda ali. Então mais um se dispõe a auxiliar no estacionar do carro e gesticula por mais ou menos cinco minutos para finalizar uma cena que só consigo definir como ivoholandiana.

Entramos no karaokê e havia um velhinho japonês cantando Marilyn Manson. As próximas seis horas foram o mais em casa que eu me senti em meses.

***

120217

Desci as escadas do prédio e caminhei por dez minutos até a estação de metrô. Quando decidi checar novamente o mapa para a cafeteria vi que ela estaria fechada. Voltei para poder ir para o próximo lugar que havia escolhido, também estava fechado. Decidi voltar para o prédio e tomar algo na cafeteria que fica no andar de baixo. Entrei e pedi um café com leite. Eram oito horas e o pessoal ainda estava dormindo no apartamento. Lembrei da C.P. quando pedi o café — detesto como ela estava certa sobre isso. O café chegou, agradeci, a moça da cafeteria me olhou estranho. Tirei uma foto e li algumas poucas páginas, não conseguia me concentrar direito. Peguei o celular, abri o Google Keep e comecei a rascunhar uma lista bem sarcástica sobre São Paulo.

Aqui segue a lista de cinco comentários breves e provavelmente esperados de um turista em São Paulo que não vou me abster de fazer:

  1. Meu primeiro contato com alguém em São Paulo foi com uma atendente fofa da cafeteria do aeroporto. Ela me serviu um ótimo café. Ela não sabia receber obrigado. Percebi depois que a maioria das pessoas que trabalham como atendentes em São Paulo não sabem receber obrigado. Eles geralmente ignoram; talvez por achar que é falsa cortesia. De acordo com meu amigo anfitrião: “Agradecer sinceramente em São Paulo é meio coisa de velhinho e evangélico. A galera leva tudo no cinismo da rotina, mas continuo agradecendo e sendo educado”(Nota posterior: curiosamente isso é bem menos frequente nas lojas de shopping (julgo que ambos os casos são culpa do excesso de Sorrisos Profissionais dessa cidade)).
  2. Paulistas aparentemente precisam ser lembrados constantemente sobre muitas coisas. Toda esquina e rua tinha o aviso de ATRAVESSAR APENAS QUANDO O SINAL ESTIVER VERMELHO. Enquanto andávamos vi dois avisos de CUIDADO COM O DEGRAU na frente das escadarias dos prédios (nunca tinha visto um desses de verdade). Achei que era exagero até perceber que meu amigo anfitrião e a namorada dele atravessaram duas vezes quando o sinal não estava vermelho — talvez seja realmente necessário.
  3. A escala das coisas de São Paulo é absurda. É como ser um bonequinho de maquete daquelas expostas em shoppings para vender apartamentos caros demais. Eu gosto de andar por entre prédios enormes, mas os de São Paulo são assustadoramente grandes e quase opressivos se você olhar para eles por muito tempo.
  4. A parte em que eu estava da cidade tem muitas árvores (!), gostei disso. São Paulo é menos cinzenta do que eu esperava.
  5. A Massa do Centro de São Paulo me é bastante familiar já que há um equivalente em São Luís chamada Massa da Rua Grande. A Massa da Rua Grande: versão paulista é cegante e intensa. Há várias pessoas e pequenas Massas que surgem dentro de uma maior. Uma atomização constante. Você nunca consegue distinguir de fato as pessoas e nem elas você. (Nota: talvez com o devido treinamento e exposição seja possível!). Mesmo assim é curioso o número de grupos existentes pelas ruas e como todos eles parecem interligados e perceptíveis.

Voltei para o apartamento. Caminhamos 20 minutos e chegamos à Avenida Paulista. De um lado da rua tinha uma banda tocando jazz; do outro um velho sozinho tocando guitarra com um chapéu na frente dele; na frente do shopping havia uma aula improvisada de zumba e no meio de tudo isso estava eu e meu amigo anfitrião. A Paulista é provavelmente a mais espaçosa avenida que já pisei na vida. Ela é tão grande que é possível facilmente distinguir as pessoas apesar dos grupos. Dá para notar melhor o rosto das pessoas que estão passando pela gente.

“Por que todo mundo aqui parece cansado?” eu disse.

“Como assim?” ele disse.

“Parece que tá todo mundo com um cansaço tão intenso que tá em nível espiritual já, o negócio. Todo mundo tem essa posição de ombros meio arqueados e, mesmo sorrindo, os olhos parecem mostrar o cansaço.”

“Nunca tinha percebido isso.”

“Talvez seja porque é domingo.” eu disse.

Entramos no shopping e andamos alguns minutos procurando presentes para comprar.

“Eu não gosto de shoppings,” ele disse. “parece que as pessoas vêm neles para se obrigarem a se divertir.”

“Acho que a gente tá falando da mesma coisa que eu falei mais cedo.”

“Do cansaço?”

“É.” eu disse. “Gosto dos shoppings geralmente porque as pessoas parecem gostar de ir lá. Então a gente vê famílias juntas, casais, crianças esse tipo de coisa. Aqui é diferente.”

“Aqui os shoppings são escapismo. Algo meio ‘ah, trabalhamos a semana inteira agora temos que nos divertir, né, pessoal?’”

“Tipo um aeroporto?” (havíamos conversado disso antes)

“É, tipo aeroporto. A maioria das pessoas parece estar aqui por obrigação. Acho que por isso eu não gosto de shoppings.” ele disse. “As pessoas aqui em São Paulo tem barreiras muito fortes que você consegue ir quebrando quando vai mais para dentro dos bairros, mas em lugares grandões tipo rodoviária, aeroporto, etc, o pessoal só vira ser humano de madrugada mesmo. Durante o dia tem umas éticas de seriedade no trabalho que acabam virando grosseria na rotina. Quando eu trampava em bar, o treinamento envolvia você sempre fingir que está ocupado pros clientes não puxarem assunto. Ficar lavando louça, enxugando copo, essas coisas.”

“Nossa.” eu disse.

“Mas sei lá, é bom ser assim porque no meio do dia florescem uns momentos inesperados de felicidade quando as pessoas trocam gentilezas”.

Voltamos à Paulista e a aula de zumba agora tinha muito mais pessoas. Todos sorrindo, dançando e com olhos cansados. Acho que não tem muito a se fazer sobre isso e provavelmente não é algo muito incômodo para quem vive lá ou até mesmo para quem não vive lá.

Quarenta minutos depois encontraríamos nosso outro amigo e ele falaria que “São Paulo é um escritório gigante.” — eu concordaria quase que imediatamente. É um escritório gigante. Trabalhei por dois anos em um escritório de publicidade e aquela era bem a expressão que eu me via tendo e que eu via nas pessoas ao meu redor. São Paulo é um escritório gigante em que de vez em quando alguém conta uma piada que faz todo mundo esquecer por alguns instantes que estão em um escritório, daí os momentos florescem.

***

260217

Estava sozinho no meu quarto de tarde. Ouvi música. Li um livro. Liguei o videogame. Desliguei o videogame. Fui até uma padaria próxima. Andei dezoito minutos até essa padaria e tomei um chocolate quente com um pedaço de bolo de trigo. Depois de alguns minutos esbarrei com uma garota que tinha me convidado para sair há algumas semanas. Ela trabalha em um consultório no qual eu era paciente. Ela é legal. Ela pediu um copo de chocolate quente também e sentou na minha frente. Perguntou como estavam as coisas. Contei da viagem, ela do carnaval; rimos bastante. O chocolate acabou e ela se despediu. Pedi uma garrafa de água, puxei o celular e mandei uma mensagem para C.P.

Nas quatro semanas entre o primeiro cappuccino e essa garrafa de água fiz alguns amigos e encontrei várias pessoas. Minha baixa qualificação em conversas interpessoais ainda existe, mas só quando me deixo tomar por ela. É o excesso de pensar. Já me falaram três vezes essa semana para deixar disso — cada vez uma pessoa diferente. Nessas quatro semanas cortei o cabelo e comprei algumas roupas. Pintei o meu quarto. Comprei plantas para cuidar. Pedi ajuda para a amiga da faculdade sobre decorações pro quarto. Talvez eu tenha sido um pouco cínico sobre essas coisas meses atrás. Talvez não quisesse me permitir fazer parte do grupo de pessoas que se importa demais com isso, mas acaba que como em tudo sempre há quem irá extrapolar certos comportamentos e nos fará cair no cinismo em relação a eles. O que não significa que o problema sempre é o comportamento.

Várias coisas da primeira conversa com C.P. ainda voltam às vezes e é engraçado justamente porque isso faz perceber que essas coisas sempre estão por aí. Estava lá desde o primeiro cappuccino, talvez até antes se eu retroceder o suficiente. As respostas para o que já está dentro, mas que precisa de impulsos de fora para surgir. Talvez por isso seja comum as pessoas gostarem tanto de mostrar do que gostam. Uma necessidade talvez expor para os outros o que há de diferente em si, mas a extrapolação da significância é o problema. A descoberta de si dentro das próprias ações e rotinas é essencial. Não como se elas fossem uma definição do que você é, mas sim uma expressão e para isso é preciso se conhecer primeiro para não deixar que a idealização tome conta de você. É preciso deixar os momentos florescerem, não tentar forçá-los à existência.

Provavelmente C.P. estava certa e eu lembrarei dela toda vez que entrar em uma cafeteria ou ouvir Oasis. Ou lembrarei da noite com o pessoal no karaokê toda vez que cantar The Man Who Sold The World ou Apenas Um Rapaz Latino Americano. Ou lembrarei da manhã com o amigo anfitrião e sua namorada sempre que ouvir o Blackstar. Ou lembrarei da amiga da faculdade sempre que ver alguém falando de Birds do Hitchcock ou Design Minimalista Escandinavo (também achei que era piada). Ou lembrarei do rosto de algumas pessoas das Massas que entro e saio o tempo inteiro, já que todos somos só parte da Massa até alguma coisa nos diferenciar para alguém a ponto de sermos lembrados. É assim que memórias funcionam. Os oceanos e os silêncios, todos ecoando e reverberando gerando novos oceanos e silêncios. Provavelmente lembrarei de vários pequenos detalhes de várias pessoas por meio de momentos, rotinas, gostos e espero sempre guardar os mais importantes.

O telefone vibra em cima da mesa. Acendo a tela e C.P. havia repetido a mesma frase que havia me dito no começo da semana.

“Você deveria parar de pensar demais e chamar ela pra sair”.

No outro dia eu chamei.

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