La Casa de Papel: Que comece o matriarcado… ou não.
(Crítica com Spoilers)
Dividida em duas partes, uma lançada no final de 2017 e a seguinte no começo de 2018, La Casa de Papel prendeu a atenção do público com uma trama intensa, excitante e cheia de cliffhangers*. Se a primeira parte focou mais nos relacionamentos entre assaltantes, reféns e policiais, a segunda trouxe questões mais filosóficas, desconstruindo conceitos de certo e errado e esbarrando de leve numa crítica ao capitalismo. O resultado é um ode a uma moral revolucionária romantizada e simplista, com pitadas de novela, que inevitavelmente passa por cima de pontos cruciais — e como a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco, quem paga são as mulheres.
Partindo da perspectiva da esquerda, lidar com os dilemas morais propostos pela série é fácil. A sociedade capitalista rouba de toda uma classe, geração após geração, e culpa os dissidentes por tentarem sobreviver; há, então, uma poética agradável no enredo da série, de retribuição e subversão do sistema. O plano do Professor é crucial nesse ponto: num recurso metalinguístico, o foco em manipular a opinião pública sobre o assalto — direcionar energias para que nenhum refém ou policial seja ferido gera compaixão — prova que esse tipo de técnica funciona, pois ela também atinge quem assiste a série; até quem vê no roubo uma prática imperdoável ou necessariamente uma falha de caráter se surpreende torcendo pelos assaltantes em algum momento, tanto pela genialidade do plano, quanto pelo carisma de algumas personagens.
Mas o enredo falha com as mulheres quando não dá a atenção devida aos dilemas das relações de poder de homens sobre mulheres que inevitavelmente são exacerbados numa situação de sequestro coletivo. E o espectador cai no conto da esquerda que ignora o patriarcado enquanto condena o capitalismo, feliz com o desfecho da série e com a consciência tranquila. La Casa de Papel é um show de moral revolucionária masculina: convincente, manipuladora, maquiada de libertação.
A série é narrada por Tokio, que perdeu o namorado em seu último assalto e está prestes a ser capturada pela polícia quando é recrutada pelo Professor, que idealizou o assalto à Casa da Moeda. O arquétipo da protagonista habita um limite tênue; sua agressividade e auto suficiência são atípicos do estereótipo de personagens femininas no cinema, mas em alguns momentos a aproximam de outro estereótipo, o da histeria feminina. Tokio não é livre de defeitos, pelo contrário; a situação de tensão à qual ela está exposta os exacerba mais do que o normal. Apesar de sua amizade com Nairobi, a outra assaltante mulher, ser exaltada no início da série por meio de um flashback, o enredo não se preocupa em reafirmar essa existência no tempo presente, por toda a duração do assalto. O resultado é que na prática, as relações íntimas que Tokio cultiva são todas com homens: amorosa com Río, de pai e filha com Moscú, de companheirismo com o Professor; e essas relações são base para muitos de seus erros.
Mas é com Nairobi que o roteiro peca com mais brutalidade. O assalto, milimetricamente planejado, começa a desandar na medida que imprevistos e erros monumentais dos assaltantes começam a acontecer. Nairobi é uma rocha: a única assaltante que se mantém focada no objetivo do início ao fim, sem deixar que suas emoções e vontades pessoais afetem suas decisões. Sempre a mais razoável, é ela que enfrenta Berlín seguidas vezes quando o líder passa dos limites. A construção de sua personagem concilia força e emotividade de forma memorável, mostrando que a força não reside em não possuir ou ignorar as próprias emoções, mas enfrentá-las e usá-las ao seu favor. Seu desenvolvimento seria perfeito se o enredo não caísse na mesma ladainha machista de invalidar sua capacidade de liderança para ressaltar a de Berlín, um clássico misógino. O único propósito da emblemática cena de Nairobi tomando a liderança de Berlín, aparentemente, foi preencher a cota de girl power que passou a ser item indispensável para o sucesso de filmes e séries nos últimos tempos; pois todos os infortúnios que se seguem são atribuídos erroneamente à liderança de Nairobi, ignorando acontecimentos anteriores essenciais e erros de outros assaltantes envolvidos.
Num clichê, ela desiste após um período extremamente curto, devolvendo a liderança para Berlín e deixando a impressão de que ela não “dá conta do recado” e, pior ainda, de que Berlín seria um líder melhor. Enquanto isso as extravagâncias de Berlín, a imbecilidade do Professor, a impulsividade de Tokio e a imaturidade de Río passam batido. Todas tem seu papel no encerramento do assalto cinco dias mais cedo e saldando mais de 1 bilhão a menos do que o planejado.
A construção da terceira personagem feminina de mais importância é tão contraditória e irreal que estraga boa parte da série. Raquel, a inspetora encarregada, sobrevivente de um relacionamento abusivo, possui um faro incrível para prever as jogadas do Professor, manobrando as investigações com maestria maior que a de qualquer outro policial ali presente, mas ignora todos os sinais de que o homem que acabara de conhecer não é confiável. Pelo contrário: em cinco dias, ela já se apaixonou de forma tão intensa que decide fugir com ele para outro país, levando a filha e a mãe doente. Raquel é genial como policial mas aparentemente muito ingênua no que diz respeito à vida pessoal: o Professor chega a aparecer em sua casa, sem ser convidado e sem nunca ter ido lá, e ela toma isso como um ato de amor. E ainda pior, depois de finalmente descobrir a verdade, não o entrega, se complica legalmente sobre a investigação e arrisca perder a filha para protegê-lo, sob a desculpa de que não sabe mais quem é o vilão e quem é o mocinho.
Toda essa incoerência narrativa é baseada na idealização do amor romântico de cinema, que é aparentemente incontrolável, desenvolve-se numa velocidade incrível e pelo qual vale a pena arriscar tudo. Essa idealização faz com que o público ache plausível que o idealizador do assalto, depois de mais de vinte anos planejando e sacrificando tudo por aquele preciso momento, vai deixar de vigiar as câmeras da Casa da Moeda para ir a um encontro ou para dormir na casa da namorada recém adquirida, e assim permitir que não apenas uma, mas duas tentativas de fuga aconteçam. O Professor é apresentado como um gênio, mas a partir do momento que conhece Raquel torna-se um completo imbecil.
É também essa idealização que faz com que o público torça para que Mónica fique com Denver, apesar de também conhecê-lo há apenas cinco dias e com o agravante da dinâmica de sequestrador e refém. A série até satiriza a Síndrome de Estocolmo em alguns momentos, mazela real que atinge vítimas de sequestro. Por último, é esse amor romântico irreal que justifica o comportamento de Ángel, companheiro de investigação de Raquel, que cultiva uma obsessão doentia sobre a inspetora, o que se expressa em inúmeros momentos da série como misoginia pura e declarada.
Ángel, Berlín e Arturo são fortes candidatos ao Prêmio de Personagem mais Misógino da série, e entre eles apenas Arturo é universalmente odiado — o que é facilmente explicado pelo fato de ele ser egoísta e manipulador não apenas com mulheres, mas também com outras personagens masculinas. Berlín, depois de mandar espancar Río, mandar matar uma refém, expulsar Tokio da Casa da Moeda, quase enforcar Nairobi, e como se não bastasse violentar uma refém repetidas vezes, aparentemente é redimido por sacrificar-se no final. Esse recurso narrativo de redenção de personagens é infalível — Berlín só se sacrifica porque já estava morrendo, e arrasta uma aterrorizada Ariadna para a linha de fogo, encerrando sua vida do jeito que agiu durante todo o assalto: com requintes de crueldade.
Assim, a série encerra com um final feliz de novela — não basta o assalto ter sido um sucesso, todos os improváveis casais formados a partir dele estão juntos e felizes. E a opinião pública — tanto dentro da série quanto fora dela — aclama os assaltantes e sua subversão do sistema, ignorando que o que o sequestro fez com Ariadna é o que há de mais conservador e opressivo nas relações de poder da sociedade: a boa e velha misoginia.
*Cliffhanger, na tradução literal para a língua portuguesa “à beira do precipício”, ou “à beira do abismo”, é um recurso de roteiro utilizado em ficção, que se caracteriza pela exposição do personagem a uma situação limite, precária, tal como um dilema ou o confronto com uma revelação surpreendente.