A misoginia no Massacre de Suzano

Fernanda Leite
5 min readMar 16, 2019

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The Vision of the Valley of Dry Bones — Gustave Dore (1866)

Desde o Massacre em Suzano não se fala em outra coisa: O que poderia levar dois jovens a cometer um crime tão perverso quanto esse? Bullying? Jogos violentos? O discurso político de Bolsonaro? Talvez a resposta seja algo bem mais complexo que isso.

Em 2014, na Califórnia, Elliot Rodger matou seis pessoas a tiros e facadas e, em seguida, cometeu suicídio. Algum tempo antes, o próprio Elliot gravou vídeos em seu canal pessoal do Youtube falando que era frustrado, virgem aos 22 anos, solitário, que sentia ódio pelas mulheres por não cumprirem sua obrigação de amá-lo, e que, por este motivo, elas deviam morrer. Mais recentemente, em 2018, Alek Minassian atropelou um grupo de pessoas no Canadá, sob os mesmos pretextos de Elliot. Ambos os jovens faziam parte dos auto-intitulados “incel”, “involuntary celibates” ou, em português, “celibatários involuntários”, um grupo de homens que acreditam que as mulheres são culpadas por suas virgindades intocadas e rejeições em geral por parte do sexo oposto.

Esses homens encontram apoio e incentivo aos seus discursos de ódio no Reddit, Chans e Fóruns Online, nos quais se reúnem para espalhar misoginia, desejar estupros e planejar seus eventos criminosos, intitulados como “Dia da Retribuição”. Entretanto, o Incel deriva de algo muito maior, é apenas um dos desdobramentos dos Ativistas dos direitos dos Homens ¹, PUAs ² e da Alt-Right ³. Movimentos de extrema-direita que disseminam o ódio a mulher e a crença lunática de que são elas que dominam o mundo, sendo os homens brancos e heterossexuais os oprimidos.

No Brasil, o primeiro caso evidentemente ligado a esses grupos misóginos foi o Massacre de Realengo, no Rio de Janeiro. Em 2011, Wellington Menezes de Oliveira entrou em uma escola pública e matou 10 meninas, além de matar dois garotos. Para as meninas os tiros eram na testa, já para os meninos os tiros eram em braços e pernas, numa carnificina claramente motivada pela misoginia. No ano seguinte ao massacre, a Polícia descobriu que Wellington participava de um desses fóruns, num grupo conhecido como Homini Sanctus, também propagador do mesmo discurso dos Incel’s. Lá, Marcelo Valle Silveira Mello era um dos principais incentivadores para que Wellington executasse seu crime, tendo sido condenado por 7 anos em regime semi-aberto após o Massacre de Realengo, mas liberto em pouco mais de um ano.

Desta mesma comunidade de fóruns participou o sequestrador de Eloá, além de ser a origem de grande parte das ameaças direcionadas à Lola Aronovich, professora universitária e blogueira feminista conhecida por denunciar as atividades terroristas desses grupos. O Dogolachan, fórum do qual participavam Luiz Henrique e Guilherme Taucci, autores do massacre em Suzano, foi criado por Marcelo Valle em 2013, logo após sua soltura da prisão. Desde o ano passado Marcelo se encontra preso, por diversos outros crimes cometidos por ele, mas as atividades do Dogolachan continuaram e resultaram no recrutamento de outros jovens para essa trajetória sórdida, como foi o caso de Guilherme e Luiz Henrique.

The vision of Death on a pale horse — Gustave Doré (1865)

Precisamos falar sobre misoginia, discurso de ódio e masculinidade tóxica. O massacre de Suzano, assim como seus antecessores, manifestam uma violência negligenciada pelo pouco debate. O crescente conservadorismo, aliado a um mundo individualista, patriarcal e celebrador da violência, cultivam uma onda de isolamento social e indiferença. Tais circunstâncias culminam em pessoas devoradas pela frustração, cujo apoio emocional é tão desesperadamente necessitado, que ao menor sinal de compreensão alheia, mesmo que dominado pelo ódio, tem suas mentes fisgadas.

Entretanto, suas desafeições não são motivos que justifiquem seus crimes. Se assim fosse, haveriam diversos casos de LGBT’s, negros, mulheres e demais minorias cometendo massacres. Esses casos são frutos de pessoas de fato mentalmente desequilibradas e socialmente disfuncionais, que, com os fóruns acabam por ampliar e retroalimentar o sentimento de exclusão e injustiça.

Quanto a misoginia, ela é um dos pontos fundamentais nesse complexo quebra-cabeças. Há um extremo conservadorismo que se apoia no ideal do homem másculo e “comedor de mulheres”, enquanto imagina que a mulher deve se submeter aos seus caprichos e, consequentemente, a culpabiliza por seus fracassos amorosos e rejeições, descarregando, assim, na figura feminina todas as insatisfações consigo próprio. Afinal, qual seria o papel da mulher na sociedade se não for o de servir os homens, não é mesmo?

Nos últimos dias também foram levantadas discussões sobre a influência de jogos violentos e de músicas (em especial Pumped Up Kicks, da banda Foster the People) na formação dessas pessoas e, mesmo que estudos comprovem que jogos realmente não tenham influência em comportamentos violentos, os próprios ambientes nos quais os videogames giram em torno são repletos de masculinizações e trolls. Porém, ainda que possam realmente existir influências, as músicas e a cultura pop não podem ser uma motivação absoluta de um problema tão complexo quanto esse. São, no máximo, uma pequena faísca durante um incêndio.

Enquanto culparmos a cultura pop ou o bode expiatório mais próximo e não nos dedicarmos ao problema real que estamos enfrentando, permaneceremos, infelizmente, lamentando vítimas de massacres. Este é um problema perpetuado por uma sociedade que acredita que a violência e ódio pode ser a solução, mas que é incapaz de refletir sobre sua condição.

¹ Ativistas dos direitos dos homens: Movimento que acredita que as mulheres dominam o planeta por meio da opressão ao homem branco heterossexual. Eles “lutam pelos direitos dos homens” e são radicalmente contra o feminismo.

² PUA’s é uma abreviação de pick-up artists (PUAs), uma espécie de filosofia manipulativa baseada no livro O Jogo, de Neil Strauss. O objetivo desse método é ensinar técnicas para manipular mulheres e levá-las para cama.

³Alt-right é um grupo de ultranacionalistas conservadores ou extra-conservadores que rejeitam o conservadorismo dominante. Se aproximam dos ideais anti-semitas, neonazistas, homofóbicos, antifeministas e de supremacia branca. Tem raízes diretas no 4chan e muitas vezes está diretamente ligado aos ativistas dos direitos dos homens.

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