Vale a pena votar nulo?

Fernando Sacchetto
6 min readSep 29, 2016

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Todo ano eleitoral é a mesma coisa. Insatisfeitas com os candidatos apresentados, muitas pessoas ressuscitam aquela velha história de que, se mais de 50% da população votar nulo, a eleição será cancelada e serão convocadas novas eleições com novos candidatos. Claro, isso é uma completa baboseira, como é muito bem explicado em diversos artigos que você encontra em uma busca rápida na internet.

Breve resumo: Votos brancos e nulos são contabilizados da mesma forma, ou seja, não são votos válidos e não afetam em nada o resultado da eleição (não, votos em branco não contam para o candidato mais votado). A eleição até pode ser anulada, convocando-se novas eleições, se mais da metade dos votos forem atingidos por problemas como fraude, abuso das regras de campanha, manobras para impedir eleitores de votar, e por aí vai. A confusão acontece porque, nessas situações, fala-se em nulidade dos votos, o que à primeira vista parece ser o mesmo que “votos nulos”. Mas são duas coisas completamente diferentes: votar nulo é uma escolha do eleitor; nulidade dos votos (ou “votos anulados”) acontece devido a irregularidades (por isso mesmo, não são votos individuais que são anulados, e sim urnas, seções ou zonas eleitorais). O primeiro não pode anular eleições; o segundo sim. (Ah, e até onde eu entendi, as novas eleições são com os mesmos candidatos. Fica difícil ter candidatos novos quando o Código Eleitoral proíbe candidaturas apresentadas fora do prazo, que atualmente é 15 de agosto.)

(E o caso de Bom Jesus do Itabapoana/RJ? Para quem tiver curiosidade, comento sobre isso depois do final desse artigo.)

Bem, na verdade, não estou aqui para desmentir essa história de “voto nulo anula eleição”. Os links que eu coloquei logo acima fazem esse trabalho muito melhor do que eu — e, para quem não acredita neles (ou nos inúmeros outros que você acha com um minuto de Google), não sou eu que vou fazer a diferença. O que eu gostaria mesmo é de refletir um pouco sobre o que está por trás dessa crença, defendida com tanta paixão por muitos eleitores. Não acho que se trate apenas de uma informação errada, ou má interpretação da lei… só isso não explica o alcance e persistência impressionantes desse boato. Para ele fazer tanto sucesso assim, é porque ele tem em si algo incrivelmente atraente, algo que faz com que as pessoas queiram que ele seja verdade.

Sinceramente, não acho nada difícil entender o atrativo dessa crença — como disse lá no começo, os eleitores estão insatisfeitos com seus candidatos. Um botão de “cancelar a eleição”, para quem se vê cercado de opções repugnantes (candidatos corruptos, mentirosos, que obviamente só estão lá para se beneficiar, sem a menor ligação com seu eleitorado) realmente parece uma ótima ideia. Mas eu acho que cabem aí alguns questionamentos. O primeiro e mais óbvio deles é: mesmo se você anular a eleição e convocar outra, que diferença isso vai fazer?

Pois é. Afinal, ao contrário de jogos de luta, as eleições não têm personagens “secretos”, que você só destrava em circunstâncias especiais. Quem tem condições políticas de se candidatar a determinado cargo, em geral, já está se candidatando. Não tem ninguém que fica esperando para ver se a eleição é anulada, para só aí se candidatar. Por isso que essa história de “trocar os candidatos por outros” não faz o menor sentido — que outros? De onde você vai tirar candidatos viáveis na última hora?

Além do que, mesmo que eventualmente haja outros rostos na nova eleição, (sei lá, talvez os partidos indiquem figurões de “segundo escalão” ou que ficaram para trás nas convenções partidárias), isso não resolveria o problema central, que é: a classe política brasileira, em geral, é ou incompetente, ou mal-intencionada, ou (mais comumente) as duas coisas. Ou seja, não tem pra onde correr. Mesmo que se force os partidos a indicar outros candidatos, eles viriam dos mesmos meios, com os mesmos vícios, e seriam tão abomináveis quanto os antigos. Essa é a realidade da qual a busca por soluções “mágicas” como a anulação das eleições tenta fugir.

Bem, sendo assim, o que é que nos resta enquanto eleitores e cidadãos preocupados com o bem-estar de nossas cidades (já que é ano de eleição municipal)? Na minha opinião, há duas maneiras de se abordar a questão: o que fazer agora, e o que fazer a longo prazo. Sob uma perspectiva mais imediata, um fato é irrefutável: alguém vai ganhar a eleição. Por mais que você não goste de nenhum dos candidatos, você não poderá escapar de ser governado por algum deles. Tire disso as conclusões que quiser. Talvez você considere que a escolha é realmente indiferente; nesse caso, faz sentido se abster do voto (votando em branco ou nulo). Talvez você ache uma das opções tão abominável que faz sentido votar em outra, meramente desprezível, para evitar um destino pior.

Você pode sentir um certo desgosto com a perspectiva de votar no candidato “menos mau”… e, em minha opinião, essa impressão é plenamente merecida. Afinal, ao aceitar o desagradável para manter afastado o catastrófico, o eleitorado está chancelando o padrão de conduta do político que escolhe, e passando aos candidatos futuros a mensagem de que é OK ser ruim até certo ponto. Isso até vir um candidato pior ainda, que empurre a barreira do “aceitável” mais para baixo, e assim por diante. Isso, aliás, talvez seja uma das explicações para a má qualidade dos políticos brasileiros — quando o público se contenta com maus governantes, a tendência é que os futuros sejam piores ainda.

Isso nos leva à segunda maneira de abordar o problema da política brasileira, que é o que fazer para mudar este quadro. Uma solução óbvia é incentivar novas pessoas a entrar na política. No entanto, a experiência pregressa mostra que a tendência geral para políticos novos é de rapidamente se deixar contaminar pelo seu meio, se corromper, deixar o nível de suas propostas e conduta ética decair, até não serem mais distinguíveis de seus colegas veteranos. Não, meramente renovar os rostos é só uma outra maneira de tentar fugir do problema.

Seja com políticos novos ou antigos, a única maneira de melhorar a política brasileira é exigir deles padrões mais altos de ética e competência — e, o mais importante, não apenas nas urnas, mas no dia-a-dia. Essa parte é crucial, pois a classe política brasileira se adaptou a assumir qualquer tipo de discurso que seja mais convincente na hora da campanha (moralismo, combate à corrupção, erradicação da pobreza, combate à criminalidade, o que funcionar melhor para cada público-alvo), sabendo que poderão ignorar tudo isso e focar só no benefício próprio uma vez que estiverem no cargo.

O engajamento político precisa ser um esforço constante e ininterrupto, monitorando as ações dos políticos o tempo todo e se manifestando em resposta, fazendo ouvir sua voz quando esta atuação não estiver satisfatória. Os protestos que têm tomado o país nos últimos anos têm sido generalizados e difusos demais, sem atenção a propostas específicas ou participação incisiva no diálogo político, mas já são um bom primeiro passo. Pelo menos, são algo mais efetivo do que simplesmente resmungar e se contentar com o “protesto” inócuo do voto nulo, que não exige absolutamente nenhum esforço (uma vez que comparecer à urna é obrigatório) e não passa nenhuma mensagem concreta além de “aceito quem quer que seja que os outros eleitores escolherem”.

“Ahá! Mas e quanto a Bom Jesus do Itabapoana? Ouvi dizer que o povo de lá votou nulo e tiveram que fazer novas eleições!” Esse caso às vezes é levantado por defensores do voto nulo, geralmente por causa de uma notinha de jornal (só uma imagem, sem data ou fonte) que circula por aí afirmando isso. Mas, se você pesquisar sobre o assunto, vai ver que esse caso, de 2008, foi um ótimo exemplo de como esse boato do voto nulo é falso.

Resumindo bastante a história, dois dos três candidatos tiveram suas candidaturas impugnadas por irregularidades na campanha, e seus votos (89% do total) foram considerados nulos. Portanto, nesse caso, os votos nulos não foram por escolha do eleitorado, e sim por irregularidades, e foi justamente isso que motivou o Tribunal Regional Eleitoral a anular a eleição. No final das contas, não deu em nada, pois uma das candidatas impugnadas (a “Branca”) conseguiu reverter a decisão e ter sua candidatura revalidada, ganhando a eleição com 86% dos votos válidos, que é o que conta, e assumindo como prefeita. (Ela teve apenas 40% dos votos se você incluir brancos e nulos, ou 35% do total do eleitorado.)

Vale lembrar que a decisão do TRE, na época, atingia duas cidades — a outra foi Santo Antônio de Pádua, onde 60% dos votos foram contabilizados como nulos, devido a uma situação idêntica de campanhas impugnadas. Mas, no caso de Santo Antônio de Pádua, a impugnação se manteve, não houveram novas eleições (o TSE entendeu que não vinha ao caso — afinal, eram votos nulos, não votos anulados), e a única candidata que “sobrou” foi eleita com 100% dos votos válidos (38% do total de votos, ou 32% do número de eleitores, um resultado ainda menos representativo do que a Branca de Bom Jesus).

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