Afinal, o que é a amizade? Reflexões introdutórias a partir de Aelredo de Rivaulx

Ferro a Ferro
6 min readJan 27, 2019

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Por Reginaldo dos Santos *

A amizade é um amor que nunca morre.

Mário Quintana

Muitos de nós já estão familiarizados e familiarizadas com a frase do poeta supracitada. Ela carrega consigo uma compreensão de amizade incomum para nossa sociedade centrada em relacionamentos românticos, ou consanguíneos. O que interessa-me inicialmente ao trazer esse conceito de amizade é questionar você, leitor ou leitora: o que é a amizade para você?

Recentemente perguntei a alguns dos meus amigos e a algumas das minhas amigas: o que é amizade para você? As respostas que tive foram bem diversas, mas elas caminhavam todas para a mesma direção. Essa experiência se mostrou relevante, pois ao inquirir cada um dos meus amigos e cada uma das minhas amigas, eu pude ter uma ideia melhor do que eles e elas esperam da nossa amizade.

Desculpem essa longa introdução. O que queria deixar claro é que questionar o que acreditamos sobre amizade e diversos outros temas é uma boa maneira de aprimorar o que acreditamos.

No século 12, o abade Aelredo de Rivaulx se propôs a escrever um tratado sobre a amizade. No breve prólogo dessa obra, o autor relata que desde a juventude ele se entregou por inteiro às amizades, mas ele ignorava o que era a verdadeira amizade e se deixava guiar por aquelas relações que eram apenas aparências dela.

O que conhecemos hoje como o tratado Amizade Espiritual é o resultado de três pequenos livros em forma de diálogos. O primeiro livro preocupa-se com a natureza e a origem da amizade. O autor é questionado por um monge, Ivo, pelo qual tinha uma grande afeição. sobre o que viria a ser o fenômeno conhecido como amizade.

O primeiro conceito apresentado por Aelredo a Ivo sobre amizade é do escritor romano Cícero. Para esse escritor, a amizade é “o acordo cheio de benevolência e caridade, sobre as coisas humanas e divinas”. A princípio, tal conceito parece suficiente. No entanto, Ivo enxerga algumas dificuldades nele.

Ivo questiona o que as palavras benevolência e caridade podem significar para um pagão. Aelredo responde que a benevolência está para o afeto interior e a caridade para expressão desse afeto em obras. Ele ainda deixa claro que a sintonia entre as coisas divinas e terrenas deve ser cara, amável e preciosa a ambos. Ivo, apesar de gostar das explicações, demonstra inquietação com essas informações, porque para ele, essa definição de amizade é muito abrangente e parece agradável também a “pagãos, hebreus e para os maus cristãos”. E esse monge está convencido de que entre aqueles e aquelas que estão sem Cristo, a verdadeira amizade não pode ser conservada. (Os tipos de amizade será algo a ser explorado num outro momento, por ora, interessa-me apenas complementar com mais algumas considerações sobre o conceito de amizade.)

Ivo questiona Aelredo sobre o sentido primário da palavra amizade. Aelredo supõe que a palavra “amigo” deriva de “amor” e “amizade” de “amigo”. Para o autor:

o amor é um sentimento da alma racional, pelo qual, estimulada pelo desejo, procura algo e anseia por aproveitar isto, aprecia-o com certa doçura e suavidade interior, abraça, pois, o objeto desta busca e conserva aquilo que encontrou” (A. E. I, 19).

Esse conceito de amor é importante para compreender o que o abade de Rivaulx entende sobre a função do amigo ou da amiga. Para ele, o amigo ou a amiga é uma espécie de guardião ou guardiã do amor recíproco e da alma daquele ou daquela de quem se propõe a amar. Esse amigo ou essa amiga é alguém que conserva em silêncio os segredos do outro ou da outra; cuida e tolera, de acordo com suas forças, tudo aquilo que ainda se encontra imperfeito no amigo ou na amiga; além disso, se alegra quando o amigo ou a amiga se alegra e sofre quando ele ou ela sofre (Rm. 12.15). Sobretudo, O amigo ou a amiga sente como seu tudo o que é do amigo ou da amiga.

O autor resume:

a amizade é aquela virtude que une as almas num pacto tão forte de amor e de doçura que aqueles que antes eram muitos agora são um. Por isso, os próprios filósofos deste mundo colocaram a amizade não entre as realidades casuais e passageiras, mas entre as virtudes eternas. É quanto o próprio Salomão parece dizer nos Provérbios, quando escreve: QUEM É AMIGO AMA SEMPRE (Pr. 17, 17), afirmando assim com clareza que a amizade é eterna se é verdadeira; se, ao contrário, cessa de existir, quer dizer que não é verdadeira, embora parecesse” A. E. I, 21.

Esse conceito deixa Ivo perturbado, porque está além de suas expectativas. Ele questiona: se a amizade é algo assim tão belo e perene, por que ouve-se sobre o rompimento de pessoas que eram grandes amigas? Aelredo responde com uma citação de São Jerônimo que está em consonância com a epígrafe deste texto, para o santo “uma amizade que pode se apagar nunca foi uma verdadeira amizade”. O monge fica estupefato com mais essa citação e afirma que deseja tanto essa virtude que quase se desespera em poder alcançá-la. Ele é acalmado pelo abade que diz a ele que só a tentativas de chegar a coisas grandes já é algo grande. Complementa dizendo que aquele ou aquela que reconhece o quão longe está da virtude, já deu um passo não muito pequeno.

“Uma amizade que pode se apagar nunca foi uma verdadeira amizade.” São Jerônimo

Aelredo ainda assevera que um cristão ou uma cristã não deve se desanimar diante de uma virtude da qual se encontra distante, porque diariamente se ouve no Evangelho a voz divina que diz: “PEDI E RECEBEREIS” (Mt. 7.7; Jo 16. 24).

Outra queixa de Ivo é a de que não há muitos exemplos de amizades famosas na história como a de Pílades e Orestes, até mesmo no livro de Cícero sobre amizade, esse autor cita apenas três ou quatro pares que se encaixam em sua definição. Aelredo para lidar com esse problema traz o exemplo de não somente uma dupla, mas mil duplas que estavam dispostas a “morrer um pelo outro”: “A MULTIDÃO DOS FIÉIS ERA UM SÓ CORAÇÃO E UMA SÓ ALMA; NINGUÉM DIZIA COMO SUA PROPRIEDADE AQUILO QUE LHE PERTENCIA, MAS TUDO ERA COMUM ENTRE ELES” (At. 4, 32).

Esse exemplo dado da igreja primitiva está completamente de acordo com o conceito de Cícero sobre amizade “consenso entre as coisas divinas e humanas, unidos à caridade e benevolência”. Tais pessoas são amigas não apenas com base no conceito ciceroniano, mas também segundo as próprias palavras Cristo Jesus que disse: “NINGUÉM TEM MAIOR AMOR DO QUE AQUELE QUE DÁ A VIDA POR SEUS AMIGOS” (Jo. 15. 13)

Essa aproximação com a igreja primitiva fez com que o monge questionasse: há diferença entre amizade e caridade? A resposta do abade é:

“pelo contrário, existe e é grande. A autoridade de Deus, de fato, estabeleceu que sejam muito mais aqueles que acolhemos no ventre da caridade do que aqueles que admitimos ao abraço da amizade. A lei da caridade obriga-nos a acolher no seio do amor não só os amigos, mas também os inimigos (cf. Mt. 5.44; Lc. 6. 27–35). Nós, porém, chamamos amigos apenas aqueles a quem não tememos em confiar nosso coração com tudo aquilo que tem dentro, e assim fazem também eles, unindo-se a nós num laço que tem a sua lei e a sua segurança na confiança recíproca” (A. E. I, 32).

Isso não é tudo o que Aelredo pensa sobre amizade. É só um começo. Noutro momento exploraremos os tipos de amizade, quem está e quem não está apto para uma relação como essa, entre outros aspectos. O que eu queria deixar claro era que a amizade está além do que o imaginário popular passou a conceber de uns tempos para cá e que precisamos recuperar conceitos mais substanciosos sobre amizade. Isso se torna mais urgente quando se tem um considerável número de cristãos e cristãs optando pelo celibato, dentre elas pessoas que fazem parte de minorias sexuais e/ou de gêneros, como eu faço, mas que abraçaram o cristianismo e sua ética sexual tradicional. Portanto, igreja precisa não somente reafirmar sua ética sexual clássica, mas também enfatizar uma teologia da amizade que mostre às pessoas a possibilidade de relacionamentos significativos não românticos e/ou sexuais. É preciso evidenciar que há espaço no corpo de Cristo para que tais pessoas amem e sejam amadas de maneira casta, intensa, profunda e verdadeira. É lógico que não somente cristãos celibatários e cristãs celibatárias serão beneficiados e beneficiadas, mas toda a igreja. Isso é algo que pretendo detalhar em textos adiante.

*Cristão ordinário. Amigo. Celibatário. Estudante e amante de Letras (IFG). Tem uma queda por cultura pop. (@reginaldostg)

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Ferro a Ferro

Reflexões sobre cristianismo, amizade, gênero, sexualidade, raça e tretas fraternas.