Histórias assombrosas: Anatomia do desgaste

ffení
3 min readAug 17, 2021

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Vivenciar a ansiedade é algo complexo. No momento em que escrevo este texto para explicar porque apago tantas postagens no Facebook ou porque não tenho mais um diário, também sinto uma leve perda de folego devido ao uso constante de uma máscara de tecido grosso que não tenho certeza se me protege do vírus ou se acumula respingos de qualquer coisa que eu não sei o nome e depois guardo num saco plástico que eu deveria já ter parado de usar. Eu também deveria estar planejando um bimestre inteiro em seis escolas diferentes, para quarenta turmas de faixas etárias que variam entre infantil, infanto-juvenil e adulto. Além de gravar seis vídeos de cinco minutos cada, que acumularam de um plantão de férias caótico, isso me causa uma sensação no braço direito que se assemelha a dor, mas é só uma leve pressão que só vira dor quando penso nela. No peito, eu sinto a mesma pressão quando sinto saudade das pessoas que não vejo desde que a pandemia começou, e ás vezes, aperta também quando lembro das pessoas com quem cortei relação, mesmo tendo sido necessário. Tenho três desenhos atrasados para entregar ao professor do curso de ilustraçaõ vetorial e perdi a data da prova do curso de pedagogia que estou fazendo sem ler quase todos os textos postados — um eu não aproveito porque não consigo, o outro porque não quero, aí me pesam os ombros. A noite tem sido bem curta, num terço dela eu penso que o primeiro episódio do podcast, que eu inventei de criar, pode estar datando a cada segundo que eu deixo a bagunça do meu quarto crescer tanto até eu não saber o que tem alí no meio e precisar procurar, bagunçando um pouco mais. Noutro terço, eu tento inventar um lazer assistindo reality shows de toda espécie, enquanto tento fazer minha filha de dois anos e quatro meses dormir, sugando e sugando meus dois mamilos até que eles adormeçam, depois eu desisto do lazer, ela só dorme mesmo com canções de ninar e escuridão total, dormir amamentando me causa uma dor no pescoço que vai se curando ao longo da semana, deixa de ser dor e vira uma tensão muscular que eu ignoro e só penso nela quando visto a mochila pesada. No terço final, eu quase choro por acabar despertando entre as três da manhã e as quatro, quando a criança de doze quilos acorda querendo brincar e é difícil fazê-la dormir de novo… Nessa hora, eu acredito que xingar palavrões ao vento e chutar os móveis podem aliviar a raiva que eu sinto, o sono e a frustração de não poder dormir bem, então me lembro que passei a adolescencia dormindo apenas quatro horas por dia, pois não podia perder nenhum episódio de Smallville, nem podia deixar de responder no messenger os amigos que acabara de ver no período noturno do Ensino Médio, os mesmos com quem passei a tarde inteira no cursinho pré vestibular, então me vem uma culpa de nunca ter aproveitado a noite, de já ter dormindo bêbada inúmeras vezes no concreto da praça Roosevelt, ou no sofá da casa de alguém e ter voltado pra casa com a maquiagem borrada de manhã bem cedo, querendo ver nada mais que a minha cama. Eu nunca dormi bem, mas não poder escolher dormir mal, dói mais. De vez em quando, me surgem a mente cenas aleatórias dos abusos sofridos num relacionamento de três anos, então meu útero comprime e qualquer relação sexual me causa dor, como se eu tivesse uma pedra enfiada no reto, o que dificulta qualquer movimento.

Eu escrevo e apago tantas coisas, eu não quero dizer que não quero atrapalhar ninguém, mas sinto algo perto disso, nem quero ser o centro das atenções por alguns minutos por conta de algo que não é exclusivamente meu, então eu vim escrever para mim. Era bom poder conversar com a psicóloga, mas já que não posso mais pagar, escrever pode também me livrar de ser ouvida por alguém do cômodo ao lado, de ser interrompida pelo mal funcionamento da fibra ótica ou da sensação de repugnar precisar de um computador até para me consultar. As telas estão me obrigando a usar esses óculos que ficam sujando o tempo todo ao longo do dia.

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ffení

Mulher, mãe, professora e artista. Quando esqueço que sou uma PESSOA, eu escrevo! ••• Woman, mother, teacher and artist. When I forget I am PERSON, I write