A internet está acabando com os videogames para gente como eu

Filipe Mendonça
9 min readApr 1, 2019

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Antes de tudo, quero deixar claro: ainda gosto de jogar videogame e não imagino a minha vida sem internet (no meu último teste, aguentei a crise de abstinência desta última por 2 noites e 1 dia). Também acho que a mistura dos dois tem algumas vantagens importantes, como a possibilidade de poder comprar qualquer jogo diretamente no console e baixá-lo de imediato (importantíssimo para quem vive em uma cidade que não tem tanta disponibilidade de jogos em lojas e para onde o frete beira o proibitivo).

Deixando isso claro, escrevo esse texto após uma quase crise de nervos que ia vitimar o controle do meu PS4. Liderando o meu Houston Rockets em uma virada impressionante contra o Milwaukee Bucks nos últimos segundos de jogo, ganhei o título virtual da temporada 18–19 do NBA 2k19. Mas, antes de eu conseguir comemorar… aliás, antes de o juiz sequer terminar o apito final, o jogo me avisa que a conexão com o servidor foi perdida e volta imediatamente ao meu principal, fazendo com o que eu perdesse aquele jogo histórico. Quedas no servidor acontecem, tudo bem, mas o principal problema aqui é que eu jogava no single player! A peleja era entre eu e a máquina! Não existia necessidade nenhuma de uma conexão com a internet, mas as desenvolvedoras hoje em dia forçam que você esteja no ambiente online mesmo que você só queira enfrentar a máquina. Que o digam os jogos que, mesmo no single player, requerem estar conectados.

Não gosto de jogar no multiplayer. Aliás, jogo principalmente por boas histórias. Às vezes, até cumpro algumas side quests, mas normalmente desisto delas ainda no primeiro terço de jogo para focar na história principal (a não ser elas sejam excelentes, como as de The Witcher 3, ou praticamente necessárias para terminar a história principal, como quando você precisa de dinheiro ou experiência). Assim, jogar no multiplayer, onde eu não vejo nenhum progresso aparente fora escalar rankings e melhorar o meu personagem, não me atrai nada.

Mesmo assim, nunca tive nenhum problema com a crescente integração da internet nos jogos que eu comprava, até que isso se tornou um problema.

O primeiro fator são as microtransações. Isso normalmente não me incomoda, já que na maioria dos casos, elas se limitam a itens cosméticos nos modos online. Então, eu raramente me deparo com elas. Exceto em casos como o do NBA 2k19, onde o modo carreira single player é atrelado ao online. Ou seja, o seu jogador é o mesmo no modo off e no modo on. O que traz alguns problemas bem grandes. Para jogar na internet, normalmente, o progresso é mais lento e algumas vezes dependente de uma moeda virtual. E, no NBA 2k, quem tem mais VC (Virtual Currency, ou moeda virtual) sai muito na frente.

O sistema do jogo é o seguinte: você tem que treinar e jogar partidas para conseguir experiência para ter espaços para melhorar os seus atributos (arremesso, rebote, roubadas de bola, etc.). Só que através do treino, você não melhora efetivamente o seu jogador, apenas consegue espaços para comprar as melhorias com a moeda virtual. Então, o que acontece é que você começa com um personagem bem fraco e com vários espaços para melhorias. O dinheiro que você ganha nos jogos é muito pouco para conseguir ter uma evolução constante e você acaba dependente de comprar mais moeda virtual para conseguir ter um jogador utilizável (com o que você começa, não dá para fazer muito mais do que errar arremessos fáceis e tomar um baile na defesa). Assim, para quem, como eu, sempre amou jogos de esporte, especialmente os modos carreira (quer dizer que eu posso fazer a minha história dentro de um jogo?), ser forçado a entrar em um ambiente online e jogar segundo as regras do multiplayer, sem ter um progresso normal (como ainda acontece no FIFA, por exemplo, onde você tem um jogador para o modo online e outro para o offline) é como comer chocolate com um quilo de sal.

Ainda dentro das microtransações, outro problema bem comum são as DLCs (DownLoadable Content, ou conteúdos descarregáveis). Para ser honesto, isso começou mesmo antes de a internet ser onipresente, onisciente e onipotente. Até onde a minha memória alcança, lembro que o conteúdo extra que você podia comprar virou moda com o primeiro The Sims e a sua infinidade de pacotes de expansão. Você tinha o jogo original e podia comprar CDs com conteúdo que iam desde pacotes de itens até novos modos de jogo. Daí, lembro que a EA (sempre ela), publisher do The Sims, já levou a mesma ideia para o Sim City e, então, várias outras empresas começaram a vender pacotes de expansão para os seus jogos, com novas missões, histórias, itens, armas e até mesmo transformando o jogo. Voltando ao FIFA, em anos de Copa do Mundo, a última edição do jogo era relançada em uma versão que recriava o torneio nas canchas virtuais. Ao menos, essas edições eram standalone, ou seja, você não precisava ter o jogo original.

Com a popularização da compra de jogos virtuais, os pacotes de expansão receberam o nome de DLC e cresceram em popularidade (nesse caso, levando em conta exclusivamente o sentido de se tornarem mais conhecidos e não bem aceitos). Hoje em dia, os conteúdos vão desde novas roupas e armas para os personagens até partes da história do jogo ou histórias paralelas. O que já cria uma polêmica: você paga o preço de um jogo completo mas tem que pagar a mais por outras partes da história. E nem dá para dizer que os criadores do jogo tiveram novas ideias depois do lançamento e quiseram lançar complementos porque vários jogos muitas vezes já têm uma edição na pré-venda que inclui futuras DLCs, como foi o caso de Final Fantasy XV e Marvel’s Spider-Man, só para me limitar a 2 de infinitos exemplos. Ou seja, a história é premeditadamente fatiada e você tem que pagar uns bons reais a mais para saber tudo o que aconteceu.

Outro fator bem bizarro que envolve corte de gastos (apesar do crescimento da arrecadação com a redução drástica da pirataria e a criação de novas fontes de renda) é a grande quantidade de bugs e a falta de conteúdo no lançamento em alguns jogos. Antes da internet, o jogo tinha que ser lançado perfeito já que uma correção de algum bug grave envolvia um enorme gasto com o recall. Então, as empresas tinham que investir bastante tempo no teste dos jogos para encontrar todos os bugs possíveis. Hoje, alguns games são praticamente injogáveis no lançamento, com casos famosos como Assassin’s Creed Unity e Anthem, que foram lançado cheios de bugs (e são obras de duas das maiores publishers da atualidade, Ubisoft e EA, respectivamente, com bala na agulha para fazer um bom trabalho).

Essa questão chega a ser tão absurda que vários jogos são lançados com um day-one patch, ou seja, uma correção que você baixa no dia do lançamento do jogo. O que significa que entre a finalização e o lançamento, alguns bugs já foram descobertos. Se por um lado, a facilidade da correção significa menos problemas no longo prazo, para quem joga algum game assim que ele é lançado, isso pode significar algumas dores de cabeça até saírem alguns patches para tornar a experiência melhor.

Também existe o caso de jogos lançados nas pressas, com quase nenhum conteúdo e que vão sendo atualizados aos poucos, enquanto a empresa já faz dinheiro com as vendas. Nesses casos, exemplos infames são Battlefield 5, Mafia 3 e No Man’s Sky. Tiveram várias críticas por falta de conteúdo e, com as várias atualizações, foram melhorando aos poucos.

As facilidades trazidas pela internet para as desenvolvedoras criaram um descaso com a qualidade inicial do produto, já que boa parte do jogo pode ser corrigida e mais conteúdo pode ser adicionado.

Agora, deixando de lado as dores de cabeça que os jogos atuais trazem pela dependência da internet e focando em um terreno um pouco mais subjetivo, como o legado.

O crescimento dos e-sports trouxe um foco gigantesco para os modos multiplayer, levando à criação de vários jogos exclusivamente online. Isso levou a algumas aberrações, como a situação atual da franquia Call of Duty.

Lançado em 2003, não é exagero dizer que o primeiro CoD revolucionou os jogos de tiro em primeira pessoa, causando até uma futura saturação dos jogos que abordavam o tema 2ª Guerra Mundial. Antes dele, os FPS lhe colocavam na pele de um protagonista que resolvia tudo praticamente sozinho. Com o primeiro Call of Duty, você era apenas mais um soldado em um pelotão seguindo ordens de um superior. Tudo isso com um ritmo mais lento que trazia um certo nível de estratégia (agora, você tinha que pensar não só em atirar, mas se esconder e flanquear inimigos) e uma produção cinematográfica (que chegou ao ápice em Call of Duty: Modern Warfare). CoD se tornou, de imediato, uma série aclamada por público e crítica devido ao seu nível de imersão, tomando o trono até então ocupado pela série Medal of Honor (que foi obrigada a se reinventar, sem sucesso, e foi sumindo aos poucos) e trazendo outras séries de FPS com foco maior em realismo e estratégia (talvez, o “filho” mais bem sucedido seja Brothers in Arms).

Pessoalmente, joguei uma dezena de jogos Call of Duty e era um grande fã da série. Mesmo assim, nunca joguei o multiplayer, pelo o qual ela foi se tornando mais e mais conhecida. Mas, depois do Modern Warfare 3, dei uma parada para descansar e voltei três edições depois, com Advanced Warfare. O que encontrei foi uma campanha single player mal desenvolvida, com uma história meia boca e curta (o que, nesse caso, não foi algo necessariamente ruim) e um estilo de jogo irreconhecível. Ficou de lado o realismo cruel da guerra, com os tiroteios estratégicos e chegaram pulos duplos, exoesqueletos com poderes especiais, armas futuristas e um ritmo frenético. Eu me sentia menos jogando um CoD e mais um Quake ou um Unreal (franquias justamente focadas no multiplayer). Foi aí que eu percebi que Call of Duty deixou de ser uma excelente série single player com um ótimo modo multiplayer para ser uma série multiplayer com um single player que estava lá só para constar. Depois de terminar o Advanced Warfare, desisti de vez da franquia.

O meu epílogo dessa história aconteceu recentemente, quando o Black Ops 3 foi disponibilizado de graça na PlayStation Network. Eu baixei, joguei uma missão e desisti antes de me decepcionar mais ainda. A última edição do jogo, Black Ops 4, sequer teve o modo single player. Antes não ter do que não ter o mínimo de qualidade.

Outras séries que cresceram no single player também estão caindo nesse buraco, só para citar algumas: Fifa (recentemente lançou um modo história bem meia boca para dar uma disfarçada, mas o foco é em torneios virtuais e no Ultimate Team), Warcraft (virou World of Warcraft anos atrás e continuou por aí), Fallout (essa se tornou um desastre tão grande com o Fallout 76 que é capaz de ela ir para a geladeira) e GTA (desde o GTA 5, a Rockstar faz tanto dinheiro com o modo online que estamos no maior intervalo entre um GTA e outro e sem nenhuma previsão para a sequência da série).

Só que, enquanto até hoje você pode jogar clássicos como Chrono Trigger, Super Mario World ou Resident Evil, poucos jogos multiplayer resistem ao teste do tempo. De cabeça, lembro do próprio World of Warcraft e Counter-Strike como jogos exclusivamente multiplayer que resistiram a mais de uma década e ainda são jogados hoje em dia. Games online viram febre e, quando já não dão mais lucro, os servidores são desativados e o jogo morre. Com cada vez mais jogos exclusivamente multiplayer, isso quer dizer que muitas obras atuais que se tornarão clássicos no futuro não poderão ser jogadas.

O legado da geração atual de games será composta pelos jogos single player e a memória de jogos multiplayer.

Desde problemas técnicos até a desfiguração de várias franquias clássicas, a internet está afetando o mundo dos games de uma maneira muito pior do que deveria. O que parecia uma integração óbvia e orgânica, está se tornando um problema com a ganância das produtoras.

Bem, quando eu digo problema, é para pessoas que amam um bom single player. As produtoras hoje em dia não ganham dinheiro apenas com a venda dos jogos, mas também com incontáveis microtransações dentro destes. O público em geral, fora uns poucos reclamões como eu, também está aceitando bem o que a indústria se tornou, visto a quantidade de gente interessada em e-sports (uma quantidade tão grande que até a imprensa esportiva dá espaço para o videogame).

Os bons single players podem estar sendo deixados de lado, mas enquanto existir gente como Shigeru Miyamoto, Hideo Kojima, Shinji Mikami ou Sid Meier, eles vão continuar a existir.

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