Por que somos contra à Reforma da Previdência?

Filipe Possa Ferreira
7 min readMar 23, 2017

--

No Brasil de 2017, sob tutela do governo Temer e de sua guinada conservadora social e econômica, temos em curso uma sistemática e intermitente destruição dos rasos direitos sociais conquistados a partir da Constituição de 1988.

A proposta de Reforma da Previdência do governo Temer, ou seja, mudanças das regras que regem o formato atual das aposentadorias por contribuição, é baseada num discurso falacioso e ideologicamente fracassado. A atual proposta prevê mudanças profundas na forma da aposentadoria dos trabalhadores do país, sendo as mudanças principais relacionadas a idade mínima para a aposentadoria; a regra do valor recebido; e a negligência das estruturais e históricas desigualdades do Brasil.

Em linhas gerais essa Reforma está sendo veiculada como a mais nova etapa para a retomada do crescimento e geração de empregos no país, baseada na análise errônea que as despesas da atual forma de pagamento dos benefícios previdenciários não se sustentam. A análise do “rombo” da previdência é errada pois parte de duas práticas inconstitucionais: 1) Pois não considera, como a Constituição de 1988 prevê no artigo 195, a parte que o Estado deve pagar à previdência através de outros tipos de arrecadações como a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas), e o CONFINS (Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social); e 2) O governo, repetidamente, retira do orçamento da União a sua obrigação com os gastos da Seguridade Social (Previdência, Saúde, Assistência Social e Seguro Desemprego), gerando artificialmente o tal “rombo” da previdência. Dessa forma, se apresenta nas contas orçamentais do governo apenas as receitas direta da previdência, ou seja, as contribuições dos trabalhadores e das empresas na forma percentual retirada direta da folha de pagamento (através do INSS). Essa prática vem sendo recorrente desde da própria Constituição Federal de 1988, o que sempre se veiculou como um déficit da Previdência. O que isso tudo quer dizer? Basicamente é que a Previdência nunca apresentou um rombo na forma como está colocada na Constituição, tanto que nunca houve um atraso ou uma dificuldade em se obter a aposentadoria de qualquer forma; o que se veicula agora é que ela passou a ser um gasto pesado demais para o Estado pagar, sendo justificada a dura Reforma.

Essa Reforma baseada em preceitos orçamentários errados passa então a onerar, principalmente, os mais vulneráveis trabalhadores do país. O atual governo, através de seu discurso falacioso de insustentabilidade dos gastos da previdência, quer reformar uma estrutura social conquistada em 1988 contra os trabalhadores. Ao propor a mudança da idade mínima exigida como um dos fatores para a obrigatoriedade, o governo impõe a duras penas a obrigação de trabalho para certas gerações de até 49 anos. A regra atual conta com regras mais flexíveis para aposentadoria, no caso: idade mínima de 60 anos para mulheres e 65 anos para homens OU 30 anos de contribuição para mulheres e 35 anos para homens — sendo 5 anos a menos para os trabalhadores rurais, devida suas condições mais duras; e para o valor da aposentadoria: 80% da média salarial dos últimos 10 anos de contribuição para quem se aposentar por contribuição, sendo que quem se aposentar por idade, parte de 70% + 1% a cada 12 anos de contribuição. Sendo que para se aposentar por idade mínima (60/65) é necessário o mínimo de 15 anos de contribuição. Essas regras atuais, conforme estipuladas acima, levam em conta a diferença entre as jornadas de trabalho da mulher e do homem, trabalhadores urbanos e rurais, e as desigualdades sociais regionais, ao estabelecer a aposentadoria por contribuição. Em resumo, trabalhadores do campo, mulheres ou em regiões sociais mais precárias possuem, mesmo que ainda não suficiente, suas desigualdades históricas e estruturais atenuadas.

O atual projeto de Reforma da Previdência acaba com as regras acima criando uma idade mínima obrigatória de 65 anos para todos, independente do gênero, local de trabalho ou condição socio-regional. Não haverá mais a tentativa de atenuar as diferenças quando se estipula os 65 anos obrigatório para todos, e ainda prevendo o aumento para 25 anos de contribuição mínima. Quanto ao valor da aposentadoria a Reforma quer estabelecer que ao atingir os 65 anos de idade, o valor pago seja de 51% da média salarial + 1% por ano de contribuição, como existe a regra obrigatória de 25 anos de contribuição, o valor partirá de 76%, e ganhará 1% caso seja da escolha do contribuinte continuar trabalhando e contribuindo até atingir 100% da média (com o teto de R$ 5.578,00). No caso, para atingir os 100% deve-se trabalhar até atingir a soma da idade e da contribuição de 114, ou seja, se um trabalhador ou trabalhadora chegar com 65 anos e 25 de contribuição, atingindo 76% da média, para atingir os 100% deve-se trabalhar mais 24 anos e se aposentar com 89, sendo que para se atingir 100% aos 65 anos, deve-se chegar com 49 anos de contribuição, no caso trabalhar ininterruptamente desde os 16 anos. Resumindo, a Reforma não apenas negligencia as diferenças de gênero, sociais e trabalhistas do país, bem como dificulta a possibilidade para obtenção de um valor maior da aposentadoria. A troca que essa Reforma quer fazer é clara: o Estado não quer contribuir para a aposentadoria, e o trabalhador deve se esforçar cada vez mais para conseguir uma aposentadoria melhor (independente de sua trajetória de vida) e da dificuldade de se trabalhar com idade avançada.

Vamos às comparações e fatos que deflagram a péssima Reforma proposta:

  1. Os gastos com previdência no Brasil foram da ordem de 7,5% do PIB em 2015, sendo que em países desenvolvidos esse valor gira em torno de 14%, sem contar que esse valor é extremamente sensível ao PIB (que caiu na casa de 7,3% nos últimos 2 anos).
  2. Os gastos com previdência em percentual do PIB giram em torno de 35–40% desde 1998. Sendo maior em tempos de crise, e menor em tempos de crescimento; o que reforça seu caráter social (mais proteção quando se precisa, menos quando não se precisa).
  3. Para quem acredita que os valores de 7,5% do PIB são altos, as despesas financeiras do Estado (pagamento de juros sobre a dívida), passam de 8% do PIB.
  4. O povo brasileiro tem uma expectativa de vida média de aproximadamente 75 anos, no entanto isso é uma média, ou seja, em regiões mais precárias essa idade não chega a 65 anos, o que leva a clara conclusão que sob a nova Reforma alguns terão que literalmente trabalhar até morrer.
  5. Há também o indicador de expectativa de vida com saúde, que no Brasil é mais baixa que diversos outros países desenvolvidos. Esse valor está por volta de 65 anos, ou seja, a partir dessa idade, mesmo que a média da expectativa de vida do brasileiro seja de 75 anos, a partir dos 65 sua qualidade de vida, devida a sua saúde, vulnerabilidade social e trabalhista, cai vertiginosamente; principalmente entre os mais vulneráveis.
  6. A atual Reforma exclui a aposentadoria dos políticos e militares, sendo que estes terão uma regra diferenciada a ver posteriormente. E não revê as aberrações das aposentadorias do setor público (principalmente do judiciário) que passa, em alguns casos, 10x o valor do teto do trabalhador comum.
  7. No último dia 20 de março de 2017, o presidente Michel Temer, de maneira surpresa, retirou do projeto de Reforma os trabalhadores do setor público estadual e municipal, alegando respeito às instituições federativas. No entanto, sabe-se que foi uma forma de atenuar as barreiras no congresso nacional contra a Reforma, e passar o bastão político da negociação aos estados e municípios.
  8. A Reforma tenta solucionar, de forma unilateral, apenas o problema das despesas. Ao passo que as receitas do Estado não são, em momento algum, pauta da discussão. Seja uma reforma tributária que busque uma melhor equalização entre os pagamentos relativos a impostos entre os mais ricos e os mais pobres, ou mesmo a criação de impostos diretos sobre grandes fortunas ou herança que atenuariam o então “rombo” da previdência.

O que se esconde por detrás dessa Reforma é mais uma dura e pesada perda de direitos e do poder do Estado como ferramenta de ação contra as desigualdades históricas do Brasil, além da marcha em curso de uma agenda de privatização ideologicamente fracassada e derrotada nas urnas em 2014. Em pouco tempo o país passou por uma dura batalha que culminou no impeachment ilegítimo de uma presidenta eleita legitimamente; por uma emenda constitucional que congela os gastos da União com Saúde e Educação, mostrando seu caráter privatizador; por uma flexibilização na relação trabalhista já muito precarizada, em prol dos benefícios dos já beneficiados de classe; e, agora, temos em pauta uma Reforma que visa diminuir o tamanho do Estado, impor barreiras para a manutenção de um mínimo tecido social e ao direito da aposentadoria digna, e que vai onerar a classe trabalhadora pessimamente representada no congresso nacional.

Por fim, somos contra a Reforma da Previdência do atual governo Temer pois ela não contempla as diferenças e desigualdades estruturais e históricas do nosso país; pois ela está baseada numa errônea e proposital análise do orçamento público do Estado; pois não resolverá de imediato o imbróglio político e econômico que envolve o nosso país há mais de 2 anos; e, finalmente, pois é ilegítima ao evitar o debate amplo e franco junto da população em geral, parte mais interessada.

Fontes:

RTN — (http://www.tesouro.fazenda.gov.br/web/stn/resultado-do-tesouro-nacional)

Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira — Brasília: DIEESE/ANFIP 2017.

--

--

Filipe Possa Ferreira

Administrador, Mestre, Doutorando em Economia e Professor. Escrevo e publico sobre finanças, capitalismo, mercado, política e ciclismo (bem menos que gostaria).