A desonestidade intelectual de Djamila Ribeiro

Francine Oliveira
4 min readDec 2, 2022

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Seja por desconhecimento ou por exclusão consciente das mulheres trans da categoria das mulheres, Djamila Ribeiro publicou um texto repleto de equívocos em sua coluna da Folha de S. Paulo na última quinta-feira, 1º de dezembro.

No primeiro parágrafo, ela introduz a questão: “Recentemente tenho visto publicações e posts em redes sociais que utilizam a expressão ‘pessoas que menstruam’ para se referir a mulheres e homens trans. Também já vi coisas como ‘pessoa gestante’, ‘pessoas com mamas’ com o mesmo objetivo. Confesso que me senti profundamente incomodada, tanto como mulher quanto como teórica feminista. Como mulher, me perturba o fato de sermos restringidas às nossas funções biológicas, como se não fôssemos seres humanos completos, seres sociais e sujeitos políticos”.

Ora, o uso de “pessoa” em lugar de “mulher” visa precisamente a não restringir mulheres às suas funções biológicas, as quais são compartilhadas também com homens trans e pessoas intersexo. A expressão “pessoas que menstruam” não restringe nem nega que mulheres sejam sujeitos políticos, pelo contrário, evidencia que não é um aspecto biológico que será determinante para a categoria “mulher”.

A linha argumentativa segue: “Uma mulher não é uma pessoa que gesta, até porque existem mulheres que não podem ou não querem engravidar”. De fato, e é por esse motivo que, ao nos referirmos a “pessoas que gestam”, estamos demarcando que isso não é uma essência da mulher e que a gestação não se restringe a ela.

Porém, quando a autora aponta que essa expressão linguística “remete ao sexismo biológico tão bem explicado por Simone de Beauvoir em ‘O Segundo Sexo’”, ela evidencia como não compreende que falar em “pessoas” no lugar de “mulheres” é justamente a estratégia linguística a se afastar do sexismo implícito na noção de que apenas mulheres menstruam ou apenas mulheres gestam.

Os apontamentos feitos em seguida não têm relação com sua rejeição ao uso de “pessoas que menstruam”.

Afinal, se ela considera que a expressão “apaga a realidade concreta de mulheres”, é ela quem está sugerindo que a menstruação seja parte dessa realidade concreta.

Para se pensar o “locus social” a partir das interseccionalidades de opressões, faz-se necessário colocar aspectos biológicos que não são definidores do “sexo” nem do “gênero” de fora da determinação de quem seriam mulheres e homens.

Sendo assim, a menstruação não é definidora da mulher, logo, o termo “pessoas que menstruam” se faz mais adequado na medida que, ao se falar desse fenômeno que ocorre em certos corpos, não o estamos atrelando a um único sexo-gênero. Parece-me uma questão óbvia, mas que Ribeiro não enxerga ou se recusa a enxergar, na esteira de outras feministas que têm assumido posturas excludentes da “realidade concreta” de mulheres trans — visto que elas não foram mencionadas na coluna, muito embora a autora se esforce para negar uma universalidade biologizante.

Novamente utilizando um trecho do texto de Ribeiro: “Por exemplo, para se compreender qual é a realidade das mulheres negras como grupo, é necessário entender quais são as experiências que essas mulheres compartilham. No Brasil, compartilham alta taxa de feminicídio, grande parte do trabalho doméstico e funções precarizadas, falta de acesso à moradia digna, entre outras”.

Seguindo a linha de raciocínio, para se compreender qual a realidade de homens trans como grupo, é preciso entender a realidade que compartilham — a qual inclui menstruar e poder gestar. Do mesmo modo, ao abordarmos intersecções, é necessário observar como certos grupos de mulheres compartilham experiências: mulheres negras e mulheres trans são vítimas de taxas de feminicídio mais altas, têm falta de acesso à moradia digna e exercem trabalhos precarizados. No âmbito da representação e do imaginário social, um outro ponto em comum é o da hipersexualização.

Ao finalizar sugerindo que a expressão “pessoas que menstruam” seria um “backlash e de violência porque, mais uma vez, decidem invisibilizar a realidade material de mulheres no quinto país do mundo em número de feminicídios, de alta taxa de violência física e sexual e onde a pobreza menstrual é uma realidade que as atinge majoritariamente”, a autora se contradiz mais uma vez, ao lançar mão da categoria “mulheres” de forma universalizante — mesmo criticando o universal ao longo de seu texto.

Em se tratando de realidade material de mulheres, se o Brasil é o quinto país do mundo em número de feminicídios, faz-se necessário apontar que é o primeiro país do mundo em número de assassinato de mulheres trans. Ademais, a alta taxa de violência física e sexual atinge não apenas a mulheres cis (a quem a autora coloca como “mulheres”, negando a realidade material de mulheres trans), mas também a mulheres trans e a homens trans.

A pobreza menstrual é uma questão que atinge homens trans, os quais sofrem, ainda, pelo não reconhecimento de sua identidade, para além das altas taxas de evasão escolar e falta de atendimento adequado à saúde sexual e reprodutiva — este, um ponto em comum com mulheres cis atingidas pela pobreza menstrual.

A finalização é ainda mais infeliz: “É necessário estudar as teóricas e ativistas que se dedicaram a refletir de maneira honesta sobre a condição feminina”. Aqui, ela sugere que as teóricas e ativistas que defendem o uso de expressões como “pessoas que menstruam” tenham se dedicado a refletir de maneira desonesta sobre aquilo que considera “a condição feminina”, embora em momento algum tenha definido que condição seja essa. Falar em “condição feminina” como se fosse um conceito dado é outro uso de universalização, na medida em que não existe uma “condição feminina” unívoca. Além disso, cabe a pergunta: teóricas e ativistas transfeministas não se dedicaram a refletir de maneira honesta sobre a condição feminina?

Sua última frase, “Sim, eu sou uma mulher”, é também desnecessária, na medida em que o termo “pessoas que menstruam” não nega que nenhuma mulher seja mulher — apenas dá a dimensão de que não são apenas as mulheres que menstruam.

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Francine Oliveira

Doutore em Estudos Literários e pesquisadore de Estudos Queer e extrema direita. Tradutore, revisore e escritore.