Conspiracionismo à direita: de onde vêm as teorias do politicamente correto? — Parte I

Francine Oliveira
14 min readMar 24, 2023

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[Artigo completo originalmente publicado na Revista O Sabiá. Esta é a primeira parte de uma versão revisada.]

Lyndon LaRouche foi um dos conspiracionistas a usar a Escola de Frankfurt como bode expiatório.

Em agosto de 2022, redigi uma crítica ao livro Tempestade ideológica (2021), de Michele Prado, em que questionei os métodos de seleção bibliográfica e condução da pesquisa que resultaram na obra. Chamou-me a atenção o fato de a autora subscrever à ideia de que grupos da esquerda, cujas pautas envolvem a exclusão social em função de suas identidades, são os responsáveis por cercear os debates, reforçando a suposta imposição do “politicamente correto”.

Ademais, apontar que o Partido dos Trabalhadores (PT) foi o responsável inicial por uma “polarização” — por mim colocada entre aspas por haver apenas um lado extremista, não se tratando de uma simetria — e pelo próprio antipetismo é um posicionamento simplista tomado pela autora logo na introdução do livro. Outra simplificação está na noção de que a articulação das direitas conservadoras e neoliberais teria sido impulsionada a partir de 2013, com as manifestações pelo passe livre.

Implícita nesses posicionamentos está uma relação de causalidade em que a esquerda — colocada como algo mais uniformizado e, portanto, distante das esquerdas como se apresentam — seria um elemento importante para a ascensão da extrema direita no Brasil. Em que pesem os problemas e a necessidade de crítica ao progressismo e a algumas estratégias de ativismo, um ponto central deixou de ser abordado por Prado: como as direitas conservadoras se apropriaram de questões dos movimentos identitários e se utilizaram disso para encampar uma batalha semântica nas trincheiras da guerra cultural.

Olavo de Carvalho não foi o precursor dessa estratégia e, a bem da verdade, grande parte daquilo que pregava vinha de teorias da conspiração já prontas. Seu papel foi o de torná-las populares com a ajuda da validação da grande mídia nacional.

Antes de tratar do cenário nacional, no entanto, é preciso fazer um resgate de acontecimentos nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XX.

Escola de Frankfurt como pode expiatório conspiracionista

A compreensão de como a memória coletiva das direitas — e de parte do público geral — está permeada por uma narrativa enviesada, pautada em uma teoria da conspiração que ganhou o nome de “politicamente correto”, passa por disputas políticas estadunidenses e uma articulação reacionária. Nesse sentido, alguns nomes que receberam pouca atenção por noticiários e análises no Brasil precisam ser destacados.

O primeiro nome é o de Lyndon LaRouche, um conspiracionista norte-americano que elegeu a Escola de Frankfurt como pode expiatório ainda na década de 1970. A seita liderada por LaRouche parece ter alimentado a paranoia que, posteriormente, será disseminada por um segundo nome que merece destaque: William S. Lind, provável responsável por cunhar o termo “marxismo cultural”.

Andrew Woods (2019), pesquisador e doutorando no Centre for the Study of Theory and Criticism da Universidade de Ontário Ocidental, publicou um histórico esclarecedor na página Commune, acerca do papel de LaRouche na teoria conspiratória que, atualmente, conhecemos por “marxismo cultural”.

Em 1974, a publicação Executive Intelligence Review (EIR), da qual LaRouche foi fundador e editor-chefe, trouxe um “relatório especial” intitulado “Angela Davis: The Offer the CPUSA Could Not Refuse”. O texto alega que Angela Davis seria uma infiltrada da CIA no Partido Comunista dos Estados Unidos, devidamente treinada por Herbert Marcuse e Theodor Adorno.

Como se dá nas narrativas conspiratórias e nas fake news que hoje se alastram, há uma base factual para transformar uma história absurda em algo plausível. No caso da alegação sobre Davis, está a atuação do FBI, entre os anos de 1956 e 1971, com um programa de contrainteligência que envolvia a infiltração e a tentativa de desbaratar organizações políticas consideradas radicais e subversivas.

À época, LaRouche e seus seguidores estavam associados às ideologias da esquerda, mas foram gradativamente se voltando para a extrema direita. Como aponta Woods (2019), em 1977, o conspiracionista publicou um artigo na EIR em que alegava que a New Left havia se degenerado, tornando-se um movimento fascista violento. Contudo, quem estava rumo ao fascismo era o próprio LaRouche.

As teorias conspiratórias da seita foram tomando aspectos fortemente antissemitas e a Escola de Frankfurt foi se tornando um elemento-chave de um complô satânico-sionista com o objetivo de destruir a cultura americana e a civilização ocidental.

Outro fato que serviu ao conspiracionismo envolvendo Theodor Adorno tem a ver com sua participação no Radio Research Project, da Universidade de Princeton, financiado pela Fundação Rockefeller, entre 1938 e 1941 (JAY, 2011). Em 1982, a editora convidada Christina Nelson Huth publicou um ensaio na EIR em que alegava que Adorno, como parte de sua pesquisa no referido projeto, estaria minando os valores e a moralidade do povo estadunidense, produzindo e promovendo novelas responsáveis por uma lavagem cerebral na audiência (WOODS, 2019).

Em 1989, quando foi condenado a 15 anos de prisão por conspiração e fraude, LaRouche declarou que era o último bastião entre a civilização ocidental e a “New Dark Age”, cujas forças acabariam por degradar o povo e permitir que a oligarquia europeia governasse o mundo. O filósofo marxista húngaro Georg Lukács teria sido o precursor dessa “Nova Era Obscura”, por ter conspirado para minar a cultura ocidental. Nessa esteira, Adorno teria trabalhado para desenvolver uma doutrina satânica a fim de mudar o paradigma cultural, culminando, a partir de 1964, na contracultura pautada por “sexo, drogas e rock’n’roll” (WOODS, 2019).

Posteriormente, outro conspiracionista, Daniel Estulin, em 2005 publicou um livro em que dizia que Adorno e a Escola de Frankfurt em parceria com os Rockefeller, colocaram em prática um plano de subverter a sociedade com a disseminação da cultura de massas, em especial o rock, um poderoso instrumento de alienação.

Talvez vocês se lembrem que uma versão dessa história foi mencionada por Olavo de Carvalho e por Dante Mantovani, maestro nomeado em 2019 como presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), que disseram ter sido Adorno o responsável por compor as músicas dos Beatles.

Curiosamente, Olavo de Carvalho considerava Lyndon LaRouche um conspirador nada confiável, apesar de reproduzir uma conspiração desenvolvida pelo próprio.

Antes de seu artigo mais conhecido, Michael Minnicino publicou, também na EIR, uma reportagem dividida em três partes, intitulada “The ‘Authoritarian Personality’: An Anti-Western Hoax”.

Minnicino se dedica a deslegitimar o estudo, conduzido por Adorno, a partir do conceito proposto por Max Horkheimer, de “personalidade autoritária”. Na primeira frase da reportagem, traduzida do inglês, lê-se: “A ideia de ‘personalidade autoritária’, como tantos conceitos na sociologia, é uma fraude construída para desacreditar o republicanismo, particularmente sua forma americana, e para proteger o marxismo” (MINNICINO, 1988, p. 28 — tradução minha).

Contudo, foi o texto “The New Dark Age: The Frankfurt School and ‘Political Correctness’”, publicado em 1992 na revista Fidelio, que se tornou uma espécie de marco definidor de um “movimento politicamente correto”. Nele, Minnicino traz um panorama da teoria de LaRouche, de quem era um seguidor.

A questão em torno do “politicamente correto”, no entanto, precisa ser encarada também por uma outra vertente de articulação das direitas, considerada mais racional. A partir da história de que estaria sendo implementada uma espécie de ditadura acerca do que se podia falar, opinar e pensar, a existência do “politicamente correto” acabou por ser legitimada por uma série de formadores de opinião e intelectuais com visibilidade nos veículos de comunicação — tanto estadunidenses como brasileiros.

Rede de financiamentos à direita

Para além de Lyndon LaRouche, um líder de seita que hoje tem pouca credibilidade, é preciso se atentar para como atores poderosos vêm se articulando há décadas com o objetivo de, efetivamente, influenciar a mentalidade coletiva e a educação.

As teorias da conspiração normalmente se ligam umas às outras, podem ser resgatadas e recicladas facilmente por sua própria natureza de servir a crenças e propósitos variados. Como são histórias pautadas em conceitos vagos ou acontecimentos contingentes (ou ambas as coisas), servem ao exercício de se ligar os pontos conforme a necessidade de explicação dos eventos.

Na guerra cultural contemporânea, algumas teorias em específico têm exercido um papel central para que sejam disseminados a desconfiança e o ódio aos ideais progressistas de forma geral. Assim, sob o guarda-chuva do “marxismo cultural” estão as narrativas envolvendo o “politicamente correto” e a “ideologia de gênero”, planos que estão sendo colocados em prática por “globalistas” para impor um governo que representaria a “Nova Ordem Mundial”.

Mais recentemente, a nova roupagem do “politicamente correto” ganhou o nome de “cultura do cancelamento”. Quem a defende estaria praticando o “ativismo woke”.

Antes de adentrar na disseminação dessas histórias, é necessário retornar à década de 1960 e às mudanças na sociedade ocidental — bem como às reações a tudo isso. A partir dos anos 1950 e, em especial, nos anos 60, os movimentos ativistas por direitos civis e pelas chamadas pautas identitárias foram se tornando cada vez mais visíveis. Nos Estados Unidos, o marco do Civil Rights Act, em 1964, os protestos contra a Guerra do Vietnã, bem como a contracultura e um sentimento de contestação das autoridades e do establishment representaram uma espécie de decadência do conservadorismo.

Na academia, ocorreu também uma influência crescente da Escola de Frankfurt, pelo menos desde a década de 1930, além da emergência dos Estudos Culturais nos anos 1950 e, posteriormente, do pós-estruturalismo (particularmente no contexto do pós-guerra e do Maio de 1968 na França). Sem adentrar nas especificidades das correntes teóricas, é importante saber que esses movimentos intelectuais serviram de base para o desenvolvimento de pesquisas sobre temas como identidade cultural e representação, dinâmicas das relações de poder, movimentos de resistência e questionamento dos saberes dominantes.

A base factual da teoria da conspiração que se tornará o “marxismo cultural”, portanto, são as mudanças na academia que passaram a refletir essas novas realidades sociais e a chegada de pessoas negras e latinas nos campi das universidades estadunidenses. Isso levou à mudança também nos currículos do ensino superior (WEIGEL, 2016).

Nos Estados Unidos, a ameaça de perda da hegemonia levou a direita conservadora a se organizar em busca de estratégias de reação para controlar o debate público. As ações de Roger Ailes no treinamento de Richard Nixon para as eleições presidenciais, a criação da Fox News e a atuação de organizações para retomar o controle das pautas midiáticas é bem retratada no documentário The Brainwashing of My Dad, de 2015, dirigido por Jen Senko.

Uma das organizações mencionadas por Senko é a Accuracy in Media (AIM), fundada em 1969. Apoiadora da Guerra do Vietnã, a AIM atribuía a culpa pela derrota dos EUA à mídia progressista, cujas críticas considerava enviesadas e antipatrióticas. Seu fundador, Reed Irvine, alegava que os jornalistas se mostravam excessivamente favoráveis aos protestantes e reclamava que os pontos de vista conservadores não tinham espaço na mídia (CHAPMAN, 2015).

As tentativas de barrar as mudanças e retomar o domínio na disputa pelo saber-poder ocorreram também no meio acadêmico. Expoentes do conservadorismo intensificaram sua campanha contra universitários, pesquisadores e catedráticos progressistas, atacando recorrentemente o que consideravam a “militância” de estudantes e professores nas universidades.

Em meados da década de 1970, redes de doadores se voltaram para o financiamento de instituições e institutos de treinamento, think tanks, bolsas de estudo, projetos de pesquisa e até mesmo cátedras. Segundo Moira Weigel (2016), o objetivo das doações era fomentar uma produção intelectual capaz de se contrapor ao que consideravam ser uma dominância da esquerda nos meios acadêmicos e entre formadores da opinião pública.

Sucessos de venda do conservadorismo

Em seu livro-manifesto, A Time for Truth (1979), William E. Simon, que fora Secretário do Tesouro durante a presidência de Richard Nixon, urge pela organização de uma “contrainteligência” capaz de “[…] lutar contra o ‘Novo Despotismo’ efetivamente” (SIMON, 1979, p. 244 — tradução minha). Para dar força e tornar essa contrainteligência influente, Simon defende que os pensadores sejam financiados por organizações como a John N. Olin Foundation, da qual o próprio Simon se tornou presidente após deixar o cargo de Secretário do Tesouro.

Livros produzidos por professores que criticavam o pensamento e a atuação daqueles que se dedicavam a linhas de pesquisa como estudos de gênero, teoria racial crítica, pós-estruturalismo e desconstrucionismo, entre outros, foram financiados por redes de doadores, incluindo as famílias Olin, Koch e Scaife (WEIGEL, 2016).

Algumas das obras que se tornaram best-sellers nos anos 1980 e 90 merecem atenção. Conforme explica Moira Weigel (2016), seus autores traziam reflexões e respostas às mudanças na academia, mas que com frequência eram desproporcionais e enganadoras.

Weigel exemplifica com a reclamação de Allan Bloom em relação à “militância” de estudantes na Universidade de Cornell, onde ele deu aula na década de 1960: o professor nunca mencionou que os alunos, que demandavam a criação de um departamento de estudos afro-americanos, estavam reagindo a um protesto por supremacistas brancos, em 1969, que culminou no aparecimento de uma cruz em chamas no campus (uma ameaça aberta pela Ku-Klux Klan). Quando o Africana Studies Center finalmente foi fundado, em 1970, um incendiário colocou fogo em sua sede.

Quando atuava como professor de filosofia na Universidade de Chicago, Allan Bloom publicou o livro The Closing of the American Mind, em 1987. Nele, sugere que as almas e mentes dos estudantes estariam se tornando empobrecidas devido a um excesso de relativismo e abertura do pensamento acadêmico que estaria se sobrepondo aos “direitos naturais” (BLOOM, 1987, p. 29 — tradução minha).

Para Bloom, a culpa seria, em partes, de uma nova forma de teoria crítica e também de uma “rebelião política contra as últimas restrições da natureza” (BLOOM, 1987, p. 29 — tradução minha).

Direcionando suas críticas aos estudantes negros, o autor os responsabiliza por se manterem segregados, transformando em vítimas os brancos que, supostamente, não seriam aceitos nas rodas de pessoas negras e ainda se sentiriam desconfortáveis para abordar o problema. Dessa forma, o professor ignora aspectos complexos da convivência em uma sociedade estruturalmente racista e violenta que apenas recentemente havia aprovado uma Lei contra a segregação institucional da população negra. Ele retorce a questão para tentar argumentar que são os excluídos que, aparentemente, rejeitam a inclusão. Ademais, Bloom descarta a manutenção de uma mentalidade racista entre alunos brancos, como se a Lei tivesse sido suficiente para dar fim à reprodução de violências simbólicas e manifestações racistas.

Nos EUA, o livro de Bloom vendeu mais de 500 mil cópias, servindo de inspiração para outras obras e artigos que se seguiram. Sua tradução para o português foi publicada no Brasil em 1989, com o título de O declínio da cultura ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade.

A título de “curiosidade”: Bloom era codiretor do Centro John M. Olin de Pesquisa sobre Teoria e Prática da Democracia.

Também William E. Simon criticou, em seu livro, aquilo que chama de “nível coercitivo de igualitarismo” (1979, p. 240 — tradução minha), uma reação às ações afirmativas para inclusão de estudantes negros e latinos nas universidades. Simon alega que a academia estaria sendo controlada pela New Left, cujos “instintos totalitários” resultam em “tendências destrutivas” (1979, p. 242 — tradução minha).

Em 1985, Reed Irvine fundou o Accuracy in Academia, com o objetivo de documentar e se contrapor ao viés político nas universidades. Em relação a essa organização, começaram a se espalhar boatos de que seus membros estariam se infiltrando em salas de aula com gravadores, a fim de registrar falas de alunos e professores que estivessem, por exemplo, defendendo questões como o “politicamente correto” (HUNTER, 1991).

Nessa esteira, Roger Kimball publicou, em 1990, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted our Higher Education, cuja tradução para o português também foi lançada no Brasil, com o título de Radicais nas universidades: Como a política corrompeu o ensino superior nos EUA (2009). Kimball é editor do jornal conservador The New Criterion; passou a atuar no conselho do Manhattan Institute e é presidente do William F. Buckley, Jr. Program, na Universidade de Yale.

Em seu livro, o autor também defende que progressistas estariam promovendo um ataque ao cânone ocidental nas universidades. Seguindo o pensamento de Bloom, Kimball responsabiliza movimentos como o feminismo e os estudos de gênero pela suposta tentativa de desmantelamento dos valores por ele considerados universais. Na introdução, com tom alarmista, aponta: “Proponentes da desconstrução, dos estudos feministas e de outras críticas aos pilares tradicionais do estudo humanístico já se tornaram a voz dominante nos Departamentos de Humanidades de muitas das nossas melhores faculdades e universidades. […] O objetivo deles é nada menos que a destruição dos valores, métodos e metas do tradicional estudo humanístico” (KIMBALL, 2009 [1990], p. 21).

Considerando estar em curso uma “guerra contra a cultura ocidental” (KIMBALL, 2009 [1990], p. 23), o autor demonstra preocupação com os ataques ao cânone literário tradicional e a culpa seria dos pensadores radicais que passaram a ocupar as cadeiras das universidades, promovendo aulas e pesquisas ideologicamente motivadas.

Mesmo não tendo usado especificamente a expressão “politicamente correto” em seus livros, Simon, Bloom e Kimball demonstram um pensamento alinhado ao discurso conspiratório que servirá para trazer legitimidade à ideia de que estaria sendo imposta uma verdadeira patrulha do pensamento e da linguagem a partir do ensino superior.

Entra em cena o “politicamente correto”

Um artigo influente, desta vez usando, de fato, o termo aotado para tratar do suposto policiamento, apareceu em 28 de outubro de 1990, no jornal The New York Times: “The Rising Hegemony of the Politically Correct”, escrito pelo jornalista e crítico cultural Richard Bernstein. Este teria sido o provável responsável pelo início da disseminação da expressão por meio da mídia.

No artigo, o repórter faz um relato — em tom devidamente alarmista — sobre como teria testemunhado, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, uma suposta ideologia não oficial sendo imposta nas universidades. Ele narra que movimentos radicalizados estariam, desde a década de 1960, forçando uma visão de que a sociedade ocidental tem sido dominada pela “estrutura de poder branca masculina” ou pela “hegemonia patriarcal”. Bernstein questiona o discurso em torno do silenciamento e as críticas acerca do estabelecimento do “Outro”, dando a entender que não haveria esse tipo de repressão.

Citando alguns títulos de trabalhos acadêmicos apresentados em eventos de História e Literatura, o jornalista afirma, então, que todos são politicamente corretos — previsivelmente, tratam-se de estudos de gênero, gays e lésbicos (à época não se falava em “estudos queer”), teoria crítica racial e assim por diante. Bernstein, no entanto, não traz uma delimitação apropriada do conceito de “politicamente correto”, nem uma explicação para sua constatação.

Nas palavras do jornalista, o politicamente correto poderia ser definido como “uma grande crença na academia e em outros lugares que um conjunto de opiniões sobre raça, ecologia, feminismo, cultura e política externa define um tipo de atitude ‘correta’ em relação aos problemas do mundo, uma espécie de ideologia não oficial da universidade” (BERNSTEIN, 1990, p. 1 — tradução minha).

A escolha de palavras de Bernstein ao longo do artigo dá a entender que esse conjunto de ideias tem bases altamente simplistas e exige posicionamentos inequívocos, sem nuances ou reflexões complexas. Citando a crítica de Kimball à politização dos estudos das humanidades, o jornalista coloca conservadores e liberais clássicos como os principais atingidos, reforçando a lógica vitimista.

O uso da expressão “politicamente correto”, de fato, foi apropriado por pessoas da direita, segundo Bernstein, “para descrever o que veem como uma intolerância crescente, um fechamento de debate, uma pressão para se conformar a um programa radical ou o risco de serem acusados de um trio de crimes de pensamento comumente reiterados: sexismo, racismo e homofobia” (1990, p. 1).

Quando o jornalista lança mão da denominação “crimes de pensamento” — uma referência ao livro 1984, de George Orwell –, minimiza os efeitos longevos e estruturais da normalização precisamente do machismo, do racismo e da homotransfobia no discurso e nas representações. Nesse sentido, Bernstein parece se preocupar muito mais com o modo como as lutas sociais têm buscado responsabilizar as instituições pela perpetuação de exclusões e violências simbólicas que passam a fazer parte do imaginário da população.

Os artigos que se seguiram na imprensa, em geral, utilizavam a mesma fórmula, partindo de uma ou mais anedotas envolvendo episódios que teriam acontecido em algum campus como evidência irrefutável desse “policiamento” de discursos, pensamentos e atitudes nas universidades estadunidenses (WEIGEL, 2016). Foram publicadas histórias versando sobre o suposto fenômeno em veículos como Newsweek, New York Magazine, Atlantic Monthly, New York Review of Books, entre vários outros (BERKOWITZ, 2003).

Outro artigo a citar o “politicamente correto” e que merece atenção foi publicado em 1991, na edição n. 84 da revista Foreign Policy, intitulado “Defending Western Culture”. Escrito por William S. Lind, em sua introdução, é possível ler que radicais do “politicamente correto” seriam responsáveis por um ataque à cultura ocidental e pela decadência de instituições como a família.

Quanto mais o termo “politicamente correto” era usado pela mídia e circulava, maior e mais real parecia ser essa ameaça imaginária que servia — e ainda serve — para transformar a direita conservadora em vítima daquilo que ela continua a retratar como um ativismo radical, enquanto nega as complexidades ideológicas da discussão.

Notadamente, as acusações direcionadas a progressistas desviam a atenção da necessidade de responsabilização por falas, representações e atitudes que sejam racistas ou homofóbicas, por exemplo. Como explica Moira Weigel (2016), uma pessoa nunca se autointitula “politicamente correta”, pois esta se tornou uma acusação com fins de expor certa hipocrisia, um distanciamento entre aquilo que se pensa e aquilo que se fala.

Ademais, é um modo de desmerecer determinadas discussões, vistas como tendo menor ou nenhuma importância pela pessoa que se coloca contra o “politicamente correto”. Ao fazer essa classificação de certas pautas, ela se isenta de ter que considerar mudanças em seu próprio discurso, na forma como fala e/ou age, ignorando demandas de grupos que historicamente são alvos de opressão e exclusão social.

[Clique aqui para ler a Parte II.]

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Francine Oliveira

Doutore em Estudos Literários e pesquisadore de Estudos Queer e extrema direita. Tradutore, revisore e escritore.