A Escrava Isaura no cinema

Francisco Ramon
7 min readDec 30, 2021

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Quando se pensa em A Escrava Isaura, além do livro, vem-se a mente de muitos a adaptação para a televisão realizada em 1976 pela TV Globo. Nessa versão, que permanece um sucesso mundial, os personagens centrais foram vividos por Lucélia Santos, Rubens de Falco, Edwin Luisi, Norma Blum, Léa Garcia, dentre outros, e coube a Gilberto Braga a adaptação da obra. A TV Record também fizera uma adaptação em 2004, desta vez estrelada por Bianca e Rinaldi e com Rubens del Falco. Ambas versões foram dirigidas por Herval Rossano.

Bernardo Guimarães lançara o romance em 1875 e é pouco provável que imaginara que um século depois uma adaptação captada numa caixa de metais e plástico pudesse ser realizada, sequer exibida em diversos países.

Este pequeno texto não pretende adentrar em minúcias acerca das polêmicas que envolve o romance. Não se pretende nenhum anacronismo. Aqui, comenta-se acerca das versões filmadas ou quase.

Muito antes da primeira versão televisa de A Escrava Isaura, Tarquino Garbini pretendera levar às telonas uma versão muda da obra. O ano era 1917 e a produção de filmes nacionais ainda nascia de forma lenta. Essa produção iniciada em São Paulo, no fim do primeiro semestre, não fora concluída. Tem-se apenas menção a Odete Fanklin e Laura Simões no elenco.

Em 1922, a Rossi Filme, iniciara uma nova produção cinematográfica do romance. Todavia, os planos para realização do filme restaram inacabados. A direção incumbida a um certo Medina não lograra êxito. Pouco se sabe sobre esse projeto, mas permanece, at least, que se tentara produzi-la.

Francisco Madrigano (1899–1978), diretor pioneiro, começara em 1928 uma nova tentativa de adaptar A Escrava Isaura para o cinema. A princípio a direção ficara incumbida a Francisco de Simone, quando a Vitória Filme tornou-se a produtora. No entanto, Francisco desistiria pouco tempo depois do projeto, após o acontecimento, coubera a Francisco Madrigano realizar a condução do filme.

Nesta versão coube a Norka Rouskaya intepretar a personagem título, já Leôncio ficara a encargo de Guilherme Bocchialini.

Fotografia do início de 1929.

O projeto que chegara a ser gravado, não fora concluído. A interrupção deu-se em meados de 1929. Mais uma vez frustrava-se a tentativa de transformar o romance em filme. Foram três tentativas em 12 anos marcadas por falta de equipamentos e verbas que pudessem tornar real os malfadados filmes.

Muito embora todos os obstáculos e contratempos na execução da adaptação de A Escrava Isaura para o cinema entre 1917 e 1929, ainda em 1929, Antônio Marques Filho encabeçara uma nova tentativa de adaptar o romance para o cinema. Era sua primeira investida como diretor. Também coube a ele o argumento e roteiro do filme, com produção de Isaac Saindenberg da Metropole Filme.

Cena da versão de Marques Filho. a 1ª mulher a esquerda é a atriz Ruth Gentil, ao centro estão Celso Montengro e Ronaldo Alencar.

As gravações foram finalizadas em poucos meses e custaram 180 contos. Para a realização desse filme, o empenho do diretor Marques Filho fora essencial, pois sem a sua exímia dedicação ao desenvolvimento não haveria sido concluído. A produção de Isaac Saindenberg também fora extremamente necessária.

A esquerda sentada vê-se a atriz Ruth Gentil, em pé, Ronaldo de Alencar, tocando piano está a atriz Elisa Betty.

Essa versão muda de sucesso contou com Elisa Betty (Isaura), Ruth Gentil (Malvina), Ronaldo de Alencar (Álvaro) e Celso Montenegro (Leôncio), nos papeis centrais. Ainda no elenco estavam Emílio Dumas (Miguel), Iris Thomas (Henrique), Felício Agnelo (Martinho), Amadeu Bellucci (Belchior), Maria Lúcia (Rosa), Jaci Torres (Juliana) e Carlos de Avelar (Dr. Geraldo), além de Rodolfo Mayer.

A produção de A Escrava Isaura era ansiada tanto pelo público, quanto pela crítica, conforme extrai-se de jornais da época e da Revista Cinearte. A crítica do jornal Folha da Manhã do Estado de São Paulo enalteceu o filme, afirmando que “A Escrava Isaura irá encher júbilo aos que ainda não descreram no futuro do cinema brasileira”, como bem citou João Miguel Valencise.

Pelos arquivos fotográficos que resistiram ao tempo, nota-se claramente os deslumbrantes figurinos. O filme tentara com afinco caprichar em seu desenvolvimento. Não se pode constatar a qualidade da película, uma vez que só sobraram fotos e notícias sobre, mas é perceptível a tentativa de produzir um bom filme.

Elisa Betty e Celso Montenegro, a mocinha e o vilão.
Ruth Gentil e Elisa Betty, as protagonistas.
Ronaldo de Alencar como Álvaro.

A Escrava Isaura estreou em 21 de outubro de 1929, no Cine Odeon. Tinha-se, finalmente, concretizado o desejo de levar o romance as telonas. O filme tinha tema musical próprio de autoria de Marcello Guaycurus. Isaac Saindenberg cuidara da distribuição do filme. Após a exibição em São Paulo, fora para o Rio de Janeiro, depois enviadas cópias para a região sul e nordeste. Por fim, Argentina e Portugal. As notícias da época fizeram claro que adaptação tratava-se de um importante filme brasileiro. Apenas como destaque, Luiz de Barros lançara no mesmo ano o primeiro filme falado brasileiro, “Acabaram-se os otários”.

Registro da estreia do filme. Vê-se membros do elenco e equipe, além de jornalistas da Revista Cinearte.

Vinte anos após o tremendo sucesso da primeira versão de A Escrava Isaura para o cinema, o iniciante Eurides Ramos (também creditado como Eurípides Ramos, seu nome verdadeiro), que já havia sido produtor de outro filme, decidira fazer uma nova adaptação do famoso romance. Dessa vez seria um filme falado, a era muda do cinema já era um capítulo passado da história da sétima arte.

Diferentemente da versão de 1929, onde basicamente todos os atores eram estreantes no Cinema, Eurides decidira convidar dois dos astros que tornar-se-iam os mais famosos da décadas de 1950 do cinema brasileiro: Cyll Farney e Fada Santoro. Era estreia de Cyll no cinema, enquanto Fada já possuía no currículo 7 filmes.

Complementaram o time de estrelas do filme a veterana Déa Selva, os veteranos Darcy Cazarré, Sadi Cabral, Graça Melo, Fregolente, Manoel Vieira e Roberto Duval dando seu primeiro passo no cinema.

Graça Melo e Fada Santoro na versão de 1949.

Fada Santoro interpretara a mocinha Isaura, graça Melo o vilão Leôncio, Déa Selva dera vida a Malvina e Cyll Farney o mocinho Álvaro.

As críticas ao filme foram ácidas, mas nem todas foram negativas. Houve crítica que dissera que o filme não revolucionaria o cinema brasileiro, mas o iniciante Eurides Ramos talvez não almejasse tal proeza. Tem-se que o filme fora cativante, mas não se exaltava pela parte técnica. Não revolucionara o cinema brasileiro. Era apenas um drama contando uma história romântica sob uma nova perspectiva. Apesar do excesso de negatividade depositado no filme, A Scena Muda (famosa revista sobre cinema), destacou que em termos de qualidade sonora A Escrava Isaura destacava-se de produções anteriores. Já Afrânio Zuccollotto do Diário de São Paulo elogiou os diálogos e a montagem do filme, enfatizando sua “sobriedade”.

A Escrava Isaura fora considerado o terceiro melhor filme brasileiro de 1949, ficando atrás apenas de Caminhos do Sul, estrelado por Maria Della Costa e Tônia Carrero, e Pinquinho de Gente (dirigido por Gilda de Abreu e estrelado por Vera Nunes). Graça Melo,Fada Santoro e Eurides Ramos ficaram em quarto lugar nas categorias de melhor ator, melhor atriz e melhor diretor, respectivamente.

Cyll Farney e Fada Santoro n’O Pecado de Nina (1951)

Cyll Farney e Fada Santoro fizeram sucesso como par romântico em A Escrava Isaura, motivo pelo qual foram novamente escalados para repetir a parceria. Dessa vez n’O Pecado de Nina (1951), também dirigido por Eurides Ramos.

Apesar de não ter conseguido o sucesso que tiveram a versão muda de 1929, a Escrava Isaura de Eurides Ramos destacou-se por seu avanço técnico, marcou outra geração. Não foi um filme revolucionário, mas deixou sua marca na cinematografia brasileira. Felizmente, o filme fora preservado e existe cópia na Cinemateca do MAM.

A memória do cinema brasileiro fora quase completamente perdida, muitos filmes não foram preservados. Restou pouco, mas isso não cabe aqui falar, mas para a alegria dos cinéfilos esse registro sobreviveu ao tempo.

Fada Santoro é a última atriz ainda entre nós do elenco do filme. Atriz de um cinema brasileiro que já não mais existe, conta hoje com 98 anos. Deixou a carreira no auge de seu sucesso. Abraços a Fada Santoro!

Fada Santoro como Isaura.

Que o cinema brasileiro seja valorizado, há muita coisa boa. O que falta é incentivo. A arte está ai para lembrar-nos de uma época em que não vivemos, é ajudar a compreender o passado. O cinema registra os nossos avanços e retrocessos e mostra como a mente humana é criativa.

Texto feito sob a influência dos amigos Pedro Dantas, Diego Nunes, Rodrigo Venino e Carla Marinho, cujo resgate constante do Cinema em seus blogs sempre me cativaram. Fazem um ótimo trabalho!

FONTES CONSULTADAS:

Revista Cinearte: edições de 1929 e 1930; Revista A Scena Muda: edições de 1949, 1950 e 1951; Revista Frou-Frou, Diário de São Paulo; Correio Braziliense; Cinemateca Brasileira; Correio da Manhã; Revista Hollywood; Folha da Manhã do Estado de São Paulo; Jornal O Paiz; Jornal do Brasil; Gazeta de Notícias; Jornal do Commercio, A Chegada do Som nos cinemas de São Paulo de João Miguel Valencise, etc.

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Francisco Ramon

Entusiasta de Filosofia & Cinema. Sempre estudando o Direito.