Nossos Rapazes — por André Falavigna

Futebolística
4 min readJul 5, 2018

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[Aviso: texto destinado para veteranos, não para categorias de base!]

Eu sei que o blog está fazendo uma série chamada Memórias de Estádio, e que o objetivo central da ideia é proporcionar um espaço para compartilharmos — ora vejam só — memórias de estádio. Mas acontece que estamos em plena Copa do Mundo, que o Brasil enfrenta um adversário perigoso amanhã, e que se batê-lo estará, de novo, entre as quatro melhores seleções em um Mundial. Para piorar — ou melhorar —, esta Copa do Mundo tem uma nota meio angustiante, meio marcial: há uma sensação difusa e velada de que do sucesso desta seleção depende o sucesso do futebol brasileiro. Então, perdoem-me: não há como falar de memórias quando o futuro de nossas memórias, pretéritas e vindouras, nos parece ameaçado. Não agora. Isso ficará para o futuro, se o criador do blog assim o desejar.

Há muita coisa em jogo. Para uma geração inteira, ou quase, de criaturas crescidas sob os mais estreitos antolhos ideológicos, e à qual se negaram os mais mínimos rudimentos de uma educação mais ou menos séria, pode passar despercebido ou até parecer mentiroso, mas para o brasileiro que está interessado em trabalhar e pagar contas e viver seus amores, para o brasileiro cuja vida é a vida dele e não a dos outros ou das ideias perfeitas, o futebol frequentemente ainda é um meio de expressão dramática, de catarse, uma fonte de referências mitológicas, um lugar de reunião, de convívio, de expressão da identidade.

Há muitos ambientes orgulhosos da própria inteligência onde se tornou muito simples, confortável, quase um cacoete, tomar por simplório o cidadão que revela, em público, seu apreço pelo futebol. O menoscabo pelo esporte preferido do povo, por um componente fundamental do eixo em torno do qual gira qualquer coisa que se possa chamar de brasilidade é, hoje, o sinal mais sofisticado da superioridade intelectual. Isso acontece regularmente na academia, na imprensa, até mesmo na imprensa que vive de futebol. Na noite da Vila Madalena. No ambiente artístico. No universo iniciático do radicalismo político. O futebol é vítima do mesmo preconceito que atinge recorrentemente o meio evangélico — pelo qual, aliás, não tenho nenhum apreço. É coisa de gente alienada. E, a Copa do Mundo, o momento maior da alienação. E, a Seleção Brasileira, o Arauto mesmo da Alienação.

Ora, francamente: vão cagar no mato.

Estou de saco cheio de gente que não faz a menor ideia acerca da importância dos grandes clubes brasileiros nem como pólos de coesão social, nem como formadores da cultura popular, nem como fatores de expressão das cidades brasileiras mesmas. Estou de saco cheio de gente que só vê problemas em salários altos quando eles são destinados a jogadores de futebol. Jogadores que, aliás, trabalharam como animais de carga para estar onde estão, que invariavelmente são os membros mais típicos das camadas sociais mais privadas de tudo — Estado, lei, sorte, misericórdia. Filhos da miséria, vencem trabalhando, graças ao talento e à dedicação, e têm de aturar a inveja e a ignorância de gente que não vê problemas em ir ao cinema, a shows, em comprar livros de autoajuda, em assistir aos Jogos Olímpicos e à F-1 e, com tudo isso e muito mais, contribuir para a fortuna imensurável de tantas outras pessoas — o que, diga-se, é bastante justo e natural. De saco cheio de gente que não percebe que se pode produzir milhares de engenheiros mais do que razoáveis por ano, bem como professores, médicos e atores pornô, mas que para se formar um atleta do nível de Neymar são necessários anos conjurados a milagres, numa sincronia que por si só é incompreensível, irrepetível, maravilhosa.

Não compreendo que tipo de doença espiritual leva o camarada a comemorar ou mesmo torcer pela derrota de um grupo de moleques cuja vitória traria — como sempre trouxe — alegria e auto-estima para um povo que, graças a Deus, tem outras preocupações que não as obsessões políticas de uma casta de tarados semiletrados e pretensiosos. A facilidade com que essa gente encontra desculpas manicomiais para torcer contra o selecionado nacional é, para além de qualquer dúvida, proporcional à mesquinhez revelada por essas mesmas desculpas. Clubismo, corrupção da CBF, antipatia a este ou àquela personagem, teorias sociológicas menos consistentes do que minhas mais pastosas caganeiras, teorias da conspiração tão plausíveis quanto a hipótese de Camila Pitanga perseguir-me pelo Cambuci, nua em pêlo e gritando “Eu quero Anal, eu quero Anal!”: tudo isso, isolada ou articuladamente, não vale meio pedaço de merda. Criem vergonha na cara.

Aproveitem a festa. A carga que esses rapazes — que são nossos, nossos — está carregando é imensa, não importa o quão ricos eles tenham se tornado — coisa com a qual, inclusive, ninguém tem porcaria nenhuma a ver. Nem tudo na vida pode ser medido pela régua da abundância e da escassez material. Se eles perderem, o fracasso será só deles; caso vençam, o sucesso é da Nação Orgulhosa. Nunca uma glória esportiva foi motivo de degradação do estado de coisas de qualquer país; o contrário já não pode ser afirmado. Larguem a mão de ilações que nunca, nenhuma vez, foram confirmadas pelos fatos. O futebol não interfere em eleições ou melhora ou piora a política, o futebol é, como a música, muito mais do que essas questões mundanas.

É o Brasil, cacete. É tudo o que a gente tem. Aqueles moleques de amarelo lá estão lá por muitas coisas, e não é porque dentre os motivos esteja também a grana que eles não tenham outras razões para lutar: a honra profissional deles, as famílias deles, a alegria deles e, por último mas não somente, o país deles, a alegria do país deles.

Que, não sei se vocês se lembram, é o nosso também.

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