Às quartas usamos rosa: uma análise do discurso de Meninas Malvadas
Por Érica Cristina, Jade Rezende, Júlia Mayumi, Mariangela Castro, Nathalia Giannetti, Rebecca Gompertz e Vanessa Marcondes
Meninas Malvadas (Mean Girls) é um filme de comédia adolescente escrito por Tina Fey e lançado em 2004. A história gira em torno de Cady Heron, uma adolescente de 16 anos, filha de dois zoólogos que passaram a última década realizando uma pesquisa na África. Dessa forma, quando a família retorna aos Estados Unidos no início do filme, Cady, que havia sido educada em casa até aquele momento, precisa aprender a etiqueta social das escolas públicas estadunidenses, particularmente a das “panelinhas”.
Na North Shore High School, Cady rapidamente se torna amiga de Janis e Damian, que se encarregam de explicar como funciona aquele novo ambiente. Uma das mais importantes informações é a de quem são as Plastics (Poderosas), grupo composto pelas meninas mais populares do colégio: Karen, Gretchen e sua líder, Regina George.
Regina é bela, rica e cruel. Apesar de influenciar toda a escola com suas opiniões e gostos, ela humilha e exclui grande parte dos alunos, que a veneram. Janis revela ter sido vítima de um boato espalhado por Regina e, ao perceber que as Plastics haviam demonstrado interesse em Cady, a convence a se aproximar do grupo para sabotar Regina. O plano consiste em abalar os três pilares da popularidade da líder das Plastics: seu (ex) namorado popular, Aaron; seu “corpo gostoso”, e seu “exército de vadias”, Karen e Gretchen. Assim, Cady se infiltra no grupo e começa a disputar a atenção de Aaron (por quem se interessou antes mesmo do início do plano de sabotagem), alimentar Regina com barras nutricionais para ganho de peso dizendo que servem para dietas e fazer com que suas amigas se voltem contra ela. Entretanto, Cady se perde nesse caminho e se torna extremamente parecida com Regina, chegando a disputar o posto de líder das Plastics, e abandonando Janis e Damian.
Em certo momento, Regina, já irritada com as atitudes de Cady no sentido de substituir e excluí-la, descobre que as barras nutricionais são para ganho e não perda de peso e decide se vingar. Ela espalha o conteúdo do Burn book (Livro do Arraso), uma espécie de diário das Plastics com rumores, segredos e xingamentos sobre todas as meninas da escola, e inclui uma página sobre si mesma, causando o caos no colégio e fazendo com que Cady, Karen e Gretchen sejam as únicas que não estão no livro e, portanto, apontadas como autoras do material. A escola promove um exercício de desculpas entre as meninas e Janis confessa o plano que arquitetou com Cady para a escola inteira. Regina sai da escola e é atingida por um ônibus, quebrando a coluna.
Cady perde o namorado, Aaron, fica de castigo e é excluída socialmente por todos na escola ao assumir a culpa sozinha pelo Burn book. No baile de primavera, arrependida de suas atitudes, ela se reconcilia com Janis, Damian e Aaron. Durante as férias, as Plastics deixam de ser amigas e cada uma delas passa a fazer parte de uma nova “panelinha”.
O filme toca em diversos aspectos interessantes que serão explorados mais a fundo neste trabalho, como a rivalidade feminina e o slut shaming.
A rivalidade feminina foi construída e reforçada em todas as histórias que, desde muito novas, escutamos. Seja a madrasta que vai mandar um caçador cortar seu coração porque você é mais bela do que ela, seja a colega de escola que vai infernizar sua vida porque você quer roubar o namorado dela.
É claro que, como diz Marcia Tiburi no prefácio do livro “Vamos juntas?”, não devemos ceder ao mito da mulher naturalmente compadecida para criticar o mito da rivalidade feminina. As mulheres são seres humanos iguais a quaisquer outros e podem ser igualmente “boas” ou “más”, segundo o moralismo dessas histórias. No entanto, assim como os homens não estão a beira de um ataque de nervos e não passam 100% do seu tempo falando sobre o gênero oposto, tampouco passam elas.
Meninas Malvadas toma o pressuposto da rivalidade feminina como tema principal. Ninguém questiona a força e inteligência das mulheres deste filme, porém toda a vida delas se resume a odiar e sabotar umas as outras com o intuito de ser mais desejada ou ter melhor fama entre os personagens masculinos.
No fim, todas as brigas e conflitos existentes se resumem aos homens, ou a ser mais bonita para os homens, mais interessante, mais poderosa.
Para construir a ideia de rivalidade feminina, Meninas Malvadas se apoia no pretexto de “quero ser ela, odeio ela e, ao mesmo tempo, quero que ela goste de mim”. Todas as brigas do universo feminino, no filme, são por “debaixo dos panos”, as garotas colocam umas contra as outras, em cenas como as ligações de telefone, e se auto sabotam.
A ideia de existir uma “abelha rainha” do grupo, que a princípio seria Regina George e, depois, se torna a Cady, colabora com esse ambiente competitivo e tóxico que, teoricamente, seria o mundo das mulheres.
Em meio aos conflitos, existe o Burn book, que funciona como a objetificação da rivalidade feminina. Nele, o grupo principal de amigas (as Plastics) escrevem o que pensam de todas as mulheres da escola (e do único personagem gay). A partir do momento em que o livro é divulgado, a briga deixa de ser por baixo dos panos. É como se houvesse uma ruptura e a rivalidade feminina explodisse, tornando claros e visíveis todos os desentendimentos.
Observa-se nessa cena a escola se transformando em um zoológico, com mulheres se agredindo fisicamente e assumindo o papel de histéricas e descontroladas.
Após isso, já no final do filme, a Cady é escolhida rainha do baile de verão e, no palco, olha para a coroa e diz “isso é só plástico” (fazendo uma referência às Plastics e sua fragilidade) e então quebra a coram em vários pedaços. Neste momento, o mundo das garotas fica em paz e os desentendimentos que elas tinham são esquecidos e perdoados.
A temática da rivalidade feminina presente em Meninas Malvadas aparece também em outros diversos filmes de comédia dos anos 2000. Um deles é “Legalmente Loira”, comédia de 2001, em que temos mais uma vez a questão da competição pela atenção do homem gerando rivalidade.
Depois de ser dispensada pelo namorado por ser superficial demais, Elle decide entrar no mesmo curso de Direito que ele, para provar sua inteligência. Vivian, nova namorada de seu ex, acaba se tornando sua rival dentro do curso. Aqui, até mesmo a questão da superficialidade se assemelha à Meninas Malvadas, onde as protagonistas são até mesmo chamadas de “plásticas”.
Como citado, esta temática se encontra muito presente nos anos 2000, mas como estão as coisas agora? Embora não se possa dizer que o tema parou de ser abordado desta maneira por completo, o advento das redes sociais trouxe uma nova perspectiva que vem ganhando cada vez mais força. Trata-se do oposto da rivalidade, a chamada sororidade, caracterizada por sentimentos e atitudes de solidariedade entre as mulheres.
O termo já existia antes, mas foi com a tecnologia que passou a ser disseminado. Um exemplo deste movimento é o livro “Vamos juntas?”, já citado anteriormente. A proposta veio de uma página do Facebook, criada por Babi Souza, com o intuito de estimular a sororidade. Hoje, um terço das seguidoras não passa dos 18 anos, e as mais engajadas estão entre os 13 e 14 anos. Esta é uma faixa etária semelhante ao público alvo de Meninas Malvadas em 2004, ficando perceptível que, embora não se possa generalizar, os jovens estão se interessando mais e mais pela temática oposta à rivalidade.
Como já analisado, a questão da rivalidade feminina é pautada em dois pontos principais: a competição pela atenção masculina e também aspectos relacionados à estética. Estes dois pontos são estereótipos comumente utilizados na representação feminina cujo o propósito é o humor, tal como acontece em Meninas Malvadas e em tantos outros filmes citados.
Conseguimos, então, fazer uma relação pertinente do estudo de Sírio Possenti em “Uma representação humorística do feminino” com o filme em questão. Neste estudo, ele analisa a obra de Maitena, autora que fala sobre cotidiano das mulheres desenhos e frases que levam ao riso e que trazem o questionamento de que talvez as coisas não tenham mudado tanto assim na vida da mulher moderna.
Para traçar esse paralelo, podemos usar como base o quadrinho “Seis coisas que fazem as mulheres se sentirem mal”, onde listada temos se sentir gorda, estar mal vestida , não ter um centavo, estar sem telefone, e que o ex se envolva com um mulherão. Aqui, temos a presença do “estar gorda e mal vestida”, aspectos estéticos usados com frequência pelas Plastics para rebaixar uma outra menina, bem como a competição por um homem, quando se fala de ver o ex com um mulherão. Além do que se mostra mais explícito, quando se fala da necessidade de um telefone, temos a ideia de que as mulheres possuem a necessidade de fofocar, o que incluir falar mal uma das outras.
A semelhança apontada entre os discursos não é uma mera coincidência. Possenti aponta que, em princípio, pode-se partir de qualquer corpus para encarar uma questão como a aqui proposta, porque, a rigor, em qualquer campo em que a mulher seja o tema, a repetição dos mesmos enunciados é facilmente constatável.
Sendo assim, a rivalidade feminina tratada no humor é explorada com base em um estereótipo sobre a mulher e suas prioridades, estando presente em diversas obras de maneiras similares.
Seguindo a Teoria Crítica de Mauro Wolf, devemos assumir uma atitude crítica para reorganizar racionalmente a sociedade. No caso de Meninas Malvadas, o filme é um objeto da cultura de massa, foi produzido com o intuito de ser um entretenimento “de massas” largamente difundido.
Como muitas das produções de massa contemporâneas, ele se apropria de estereótipos e preconceitos (como é o caso da rivalidade feminina), exagerando-os e ridicularizando-os. Depois, mais adiante, rompe com estes padrões a fim de transmitir valores para o público. Meninas Malvadas transmite que “ridicularizar outra pessoa não te torna melhor”. Para seguir este caminho, são utilizados recursos identitários que possibilitam que público se identifique com as personagens. Afinal, praticamente todas as garotas de 15 e 16 anos já passaram por problemas na escola, inseguranças e conflitos com seu grupo de amigas. No entanto eles exageram ao máximo essas características identitárias até atingir o ridículo.
Somado a isso, utilizam uma série de referências de cultura pop, filmes, celebridades e mesmo organização do ensino médio. O humor só existe graças ao conhecimento prévio do público sobre essas questões.
As contradições ideológicas também são presentes na obra. Por exemplo, no início do filme, uma das personagens diz que não se pode sair com o namorado da outra porque isso é “regra do feminismo”. Entretanto, todo o comportamento que elas assumem ao longo da história diverge completamente do que diz o feminismo. E graças ao conhecimento prévio dessas questões, o humor surge e o público é capaz de achar o filme engraçado e, até, aprender com ele.
A sexualidade é retratada em Meninas Malvadas sob dois aspectos principais: o slut-shaming e o preconceito com pessoas LGBT. O slut-shaming, termo muito difundido com a expansão do feminismo no século XXI, em tradução livre significa “tachar de prostituta”. De forma prática, trata-se de um estigma social aplicado às mulheres como forma de repreensão, para que elas não tenham comportamentos que transgridem as expectativas tradicionais machistas. Isto é, as mulheres podem ter condutas sexuais, mas não mais do que a sociedade considera aceitável.
Como afirma Possenti, “as principais mudanças ocorreram, pois, nos espaços profissionais e no campo da sexualidade (…) quase tudo mudou. No entanto, discursos antigos permanecem.” Assim, pode-se dizer que, embora atualmente as mulheres tenham maior liberdade sexual, com a conquista do contraceptivo e da mudança de valores, até hoje é feito uso de termos ligados diretamente à sexualidade como forma de xingamento às mulheres, diminuindo suas conquistas em função de sua vida privada.
Logo no início do filme, uma cena retrata um professor de educação física proferindo as palavras “não façam sexo, pois vocês vão ficar grávidas e morrer”. Em um primeiro momento, é direcionado a todos os presentes na sala de aula. Porém, em um segundo momento de sua fala, ao mencionar a gravidez, fica claro que é uma repreensão às mulheres ali presentes.
O discurso do professor carrega um teor machista ao delimitar que as mulheres não devem fazer sexo, e traz implícito que, se ficarem grávidas, a culpa é inteiramente delas mesmas por terem feito. O homem fica, então, isento de culpa nessa situação — visão essa que está institucionalizada na sociedade até os dias atuais.
A ideologia machista, assim como todas as ideologias, segundo Marilena Chauí: “ fábrica histórias imaginárias que nada mais são do que uma forma de legitimar a dominação da classe dominante”. O que significa que o conjunto de ideias que colocam o sexo masculino como superior (ou dominante em relação) ao sexo feminino vem sendo disseminado e reforçado com estereótipos há anos. Sendo assim, não há problema se os homens fizerem sexo, o único problema realmente é se as mulheres, grupo “inferior”, fizerem. Em nenhum momento da história houve um motivo racional, embasado com explicações científicas, do porquê a sexualidade deve ser tratada de forma diferente entre homens e mulheres.
No entanto, esse conjunto de ideias que envolve a diferenciação entre sexos biológicos vêm sendo disseminada há tantos anos, que tornou-se uma espécie de dogma — ou seja, uma verdade inquestionável, em que os homens podem ter liberdade sexual e serem vistos como “heróis” perante à sociedade, enquanto que as mulheres não podem — e se tiverem, serão vistas como “vadias”.
Além da questão machista, a fala do professor retrata o discurso de sexualidade abordado em grande parte das escolas. O assunto é, na maioria das vezes, evitado — uma vez que sexo tornou-se um tabu há muitos séculos. Nas poucas vezes em que é discutido, é de forma superficial, não dando aos alunos um conhecimento necessário sobre uma parte natural de suas vidas. Essa falta de abordagem culmina em diversas problemáticas na vida sexual dos adolescentes, como desinformação sobre métodos contraceptivos e doenças sexualmente transmissíveis.
Em “A História da Sexualidade”, Michel Foucault fala sobre essa abordagem da temática sexual. Segundo ele, os discursos estão presentes em todas as épocas; a ideia do sexo como “insulto ou zombaria aos novos pudores”, colocando o ato como indecente, teria provocado efeito contrário ao desejado, isto é, intensificando esse discurso.
Em Meninas Malvadas, o filme vai além e retrata um professor, personagem de posição superior à posição dos alunos, acusado de pedofilia, repassando ensinamentos relacionados à sexualidade. Da mesma forma que a fala inicial do professor é tratada como piada, a pedofilia também é tratada como piada, embora o professor acabe sendo afastado de sua posição ao final do filme. É utilizada a ironia em muitos momentos como forma de satirizar certas situações recorrentes, apontando a hipocrisia presente na sociedade.
Assim, o machismo retratado está tão autonomizado, que passa despercebido em situações cotidianas, e é reproduzido até mesmo pelas próprias mulheres. O slut-shaming aparece novamente muito forte em outras cenas relevantes do filme, como as cenas do Burn book, que é o maior símbolo de slut-shaming de Meninas Malvadas, onde Regina George e as Plastics fazem uma série de críticas à aparência de outras mulheres da escola. Na cena em que Cady Heron descobre a existência do Burn book, o livro mostra fotos de cada uma das meninas com descrições como bitch (vadia), fat virgin (virgem gorda) e made out with a hot dog(transou com um cachorro quente).
Outra fala contendo slut-shaming aparece na narração de Cady Heron quando a personagem vai a uma festa de Halloween pela primeira vez. Na festa, Cady diz que as fantasias de Halloween são uma “desculpa” para que as meninas possam se vestir como totais vadias (dress like a total slut) sem que as outras garotas possam dizer alguma coisa a respeito.
Isso continua sendo abordado em uma cena que uma professora da escola está conversando com as garotas sobre o Burn book e ela diz que elas precisam parar de se chamar de vadias, porque isso daria validação pros garotos fazerem o mesmo. Essa fala também envolve um discurso machista, uma vez que limita as atitudes e falas de mulheres pensando em uma represália dos homens.
Embora o filme seja de 2004, trata-se de um pensamento recorrente e que aparece em outros muitos filmes, como “Para Todos os Garotos que Já Amei” e “Sierra Burgess É uma Loser”, ambos da Netflix, lançados nesse ano.
Já a questão LGBT é muito retratada com a personagem de Janis. Em uma cena que Regina vê Cady conversando com ela, a plastic questiona a nova amiga do porquê ela estar falando a “garota patética”. Com isso, Regina discorre sobre a história de Janis. Ela conta que elas eram muito amigas no primário, mas que a outra passou a ser muito ciumenta quando Regina começou a namorar um garoto. Com isso, a líder das Plastics assumiu que Janis estava obcecada por ela por ser lésbica.
O boato sobre sua orientação sexual fez com que ela começasse a ser ridicularizada pelos colegas e saísse da escola por um tempo. O preconceito com pessoas LGBT é mostrado no filme a partir dessas reações sobre o boato da aluna, que passa a ser tratada como inferior por sua suposta sexualidade.
Esse preconceito vem de um discurso heteronormativo que permeia a vida das pessoas desde muito cedo, mostrando como únicas relações afetivas e/ou sexuais possíveis aquelas entre pessoas de sexos biológicos diferentes. Essa ideia ignora questões de gênero e exclui todas as relações de pessoas LGBT. Dessa forma, uma sociedade heteronormativa, como a que vivemos, naturaliza e privilegia relações heterosexuais e coloca as expectativas quanto a vida afetiva e/ou sexual de todas as pessoas em torno disso.
O discurso heteronormativo e, em consequência, o preconceito com pessoas LGBT pode ser observado de forma explícita ou não no dia a dia de jovens — como é mostrado no filme. Outra cena que retrata isso é quando Cady, após ouvir reclamações de Janis por não ter sido convidada para sua festa, diz a amiga: “Não é culpa minha que você está apaixonada por mim”.
Reduzir pessoas LGBT a sua orientação sexual é uma ação que acompanha o discurso heteronormativo. Todas as suas atitudes passam a ser justificadas, na visão de outras pessoas, pela sua sexualidade. Foi isso que Cady quis dizer na fala citada acima, justificando toda a insatisfação de Janis — que, na verdade, vinha de um comportamento egoísta da amiga — com o fato de ela ser supostamente lésbica.
Tratar a orientação sexual de LGBTs com ironia também é algo comum que parte da naturalização da heterossexualidade. No filme, quando as meninas realizam um exercício para confessar algumas coisas, elas devem se jogar de um palco e esperar as outras garotas as segurarem. Na vez de Janis ir ao palco, Regina diz: “É o sonho dela se tornando realidade: mergulhar no meio de um monte de garotas”, e em seguida todas as meninas dão gargalhadas.
O slut-shaming e o preconceito com pessoas LGBT foram abordados no filme em 2004, mas continuam sendo uma realidade da vida de jovens 14 anos depois, em 2018. Os discursos machista e heteronormativos continuam permeando a vida das pessoas desde muito novas, naturalizando ações repressivas. Apesar de mulheres e grupos LGBTs terem fortalecido sua luta há alguns anos, eles ainda sofrem muitas repressões e precisam de maior visibilidade.
No início do filme, Cady vai, pela primeira vez, ao refeitório da escola. Para se localizar, ela recebe um mapa do salão, que apresenta suas mesas divididas conforme as tribos da escola. Todas elas são a representação de algum estereótipo. Conforme Possenti, o humor se alimenta dos estereótipos e, portanto, um filme do gênero de comédia adolescente também precisará utilizá-los. No entanto, ao fazer humor com clichês exagerados e pouco correspondentes à realidade, o longa acaba os reforçando, pois, apesar de os ridicularizar, em nenhum momento faz esforço para desconstruí-los.
Na cena do refeitório, é mostrada uma das principais características da vida estudantil: os alunos se unindo em pequenos grupos. Fazer parte de algo coletivo é muito importante para a construção da identidade dos jovens, e elementos como roupas e comportamento são modos de exercer e demonstrar esse pertencimento.
Todavia, tão importante quanto se reconhecer em seus pares, é fundamental conviver com a diversidade, aspecto que ao longo de todo o filme é completamente desprezado ao serem apresentadas as tribos vivendo isoladamente, sem que haja qualquer integração entre elas.
Ainda há a brincadeira com “garotas que comem seus sentimentos” que além de cair no fat-shaming (inferiorização de pessoas acima do peso) ignora um perigoso transtorno alimentar. Outro situação problemática sobre o assunto é quando, mais tarde, após mais uma armação de Cady, Regina George engorda alguns quilos e passa a ser ridicularizada, principalmente por estar usando as únicas roupas que lhe serviriam: moletons.
As representações de Meninas Malvadas também reforçam preconceitos contra minorias. Os personagens negros e asiáticos são colocados, além de isolados como todos os outros grupos, como uma única identidade (“os negros”, “os asiáticos”), reiterando a ideia de que pessoas não-brancas teriam a etnia como única definidora de suas identidades.
O modo como o longa retrata pessoas vindas do continente africano e, até mesmo, afro-americanos, também carrega seus problemas. Historicamente, a ideia de África enquanto unidade é um dos resultados da Conferência de Berlim, na qual os líderes europeus do século 19 dividiram o continente entre si, ignorando as diferenças entre as populações nativas. Além disso, como uma das técnicas de dominação, houve um esforço por parte dos colonizadores em apagar a história desses povos.
Dessa forma, a imagem que é exportada do continente africano é a de uma terra de pessoas negras e ignorantes. Com a escravidão, que durou quase duzentos anos nos EUA, a população negra passou a ser desprezada e inferiorizada, em um racismo institucionalizado. Dessa forma, os grupos negros são colocados como à parte da sociedade, uma vez que não são reconhecidos pelos brancos como semelhantes.
Na palestra “O perigo de uma história única”, Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, comenta que foi somente ao migrar para os EUA que passou a se reconhecer como africana. “Sempre que o tema África surgia, as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não soubesse nada sobre lugares como a Namíbia”. Para ela, a visão de África que é transmitida aos países americanos e europeus é reduzida a um ponto de vista, e isso é ruim porque invisibiliza todas as outras histórias que compõem uma realidade.
Em Meninas Malvadas, essa noção de África como se fosse uma coisa só aparece em várias cenas. Logo no começo, ao saber que uma aluna acabara de chegar da África, a professora cumprimenta uma aluna negra, que responde que é americana, algo que demonstra como o racismo institucionalizado faz com que os brancos não reconheçam pessoas negras como parte daquela sociedade.
Em outro momento, quando Cady está no refeitório, ela passa por uma mesa com várias garotas negras e as cumprimenta utilizando um idioma de alguma tribo africana com a qual teve contato. Nessa cena, existem duas posturas problemáticas: a ideia de que o grupo negro necessariamente não é americano e que, mesmo que fossem, entenderia aquele idioma específico dentre as centenas existentes no continente.
Pouco depois, a protagonista se senta com as Plastics para almoçar e recebe de Karen a seguinte pergunta: “Se você é da África, porque você é branca?”. Nota-se o desconhecimento a respeito da presença branca no continente — cerca de 200 mil pessoas, principalmente na África do Sul.
Em um episódio que acontece durante uma festa de Halloween, Regina conta para Aaron que Cady está interessada nele. Tentando afastá-lo da outra, a líder das Plastics diz ao garoto que Cady “vai fazer algum tipo de vodu africano para fazer você gostar dela”, em uma manifestação claramente preconceituosa contra as religiões africanas.
Outro estereótipo perpetuado pelo filme é da “patricinha”, que começou a ser popularizado durante os anos de 1980 e 1990. Originado da expressão Valley Girl, referente às jovens de classe média alta da região de Los Angeles, Califórnia dos Estados Unidos, consideradas fúteis pela sociedade, o estereótipo foi demonstrado no filme “As Patricinhas de Beverly Hills” e, desde então, se tornou um clichê aos filmes adolescentes. Nele, é apresentada a ideia de que é impossível para meninas serem bonitas, populares e não terem personalidade fútil, se importando com estudos, família e amizades verdadeiras.
O grupo das Plastics é a perfeita representação do ideal de “patricinha”. Seguindo o modelo Valley Girl, as integrantes da panelinha tem um total desprezo por tudo que é relacionado ao estudo. A personagem de Amanda Seyfried, Karen, representa o padrão chamado “loira burra”, que se utiliza mais de sua aparência do que de seu intelecto e no qual meninas de cabelo mais claro são retratadas como pouco inteligentes e avoadas.
Ao mencionar o seu “sexto sentido”, a adolescente diz “It’s like a have ESPN (canal esportivo) or something/É como se eu tivesse ESPN ou algo do tipo”, quando o correto seria ESP (percepção extrassensorial). A cena exagera ao máximo o estereótipo, que é motivo de piada recorrente ao longo do filme.
A questão de as “patricinhas” não serem academicamente bem sucedidas também aparece no desempenho escolar de Cady. No início, a nova aluna era uma das melhores da classe de matemática avançada, já mais tarde, para conseguir a atenção de Aaron Samuels, ela passa a ter resultados insatisfatórios, que persistem até o final do longa. Após mudar o seu comportamento para integrar o grupo das Plastics, a personagem deixa de se dedicar aos seus estudos, que antes eram mais importantes do que sua aparência e status social.
As Valley Girls ainda são comumente representadas tendo laços frágeis e relacionamentos repletos de falsidade. Em Meninas Malvadas não poderia ser diferente, de modo que as garotas populares são superficiais e tratam suas amizades com descaso, fazendo fofocas umas sobre as outras. Perto do clímax do longa, por exemplo, Cady passa a negligenciar Janis e Damian para focar em sua popularidade.
Na segunda metade do filme, quando o Burn book é descoberto, as alunas começam a brigar entre si — em alguns casos por estarem saindo com o mesmo homem, outros por serem ridicularizadas por suas atividades sexuais. É também revelado que o professor de Educação Física teve casos com duas alunas e, ao invés dele ser condenado, o filme prefere focar na briga entre as estudantes. Nessa mesma cena, os meninos da escola aparecem apenas observando e dando risadas das atitudes de suas colegas, um deles até diz estar “assustado” por causa da situação descontrolada.
O filme, então, acaba por representar suas personagens femininas “histéricas” seguindo o estereótipos de serem emotivas, enquanto os homens seriam mais racionais. Há também o fato de um dos personagens masculinos gritar “Tira a blusa!” ao presenciar a briga entre duas estudantes, fala que denota a concepção de homens serem obcecados por sexo, único tópico que os faria perder a “racionalidade” e tratar as mulheres como objetos sexuais.
De maneira a pôr um fim no conflito, uma das professoras organiza suas alunas para refletirem sobre o conteúdo do livro e tentarem resolver os problemas em suas tribos. Em nenhum momento é considerada a hipótese dos garotos terem participado da disseminação de boatos e confecção do livro. Dessa forma, o filme reitera a ideia de que apenas meninas estão envolvidas em fofocas.
O único membro do sexo masculino que aparece entre as estudantes é Damian, o personagem gay, algo que reforça a associação entre homens homossexuais e o feminino presente na sociedade. Ele, diferente de seus colegas héteros, se envolveu com as fofocas do Burn book e estava presente no momento de “histeria feminina”.
No final, após a separação das Plastics, Regina George demonstra ter um relacionamento próximo com outra colega, além de deixar de se vestir com os acessórios característicos de “patricinhas”. Cady, por sua vez, volta ao seu grupo original de amigos, vence o campeonato de matemática e não apresenta o comportamento “fútil” de antes.
Os estereótipos trazidos pelo filme acabam por reverberar na vida real, pois o público, composto principalmente de pré-adolescentes, que estão em fase de construir suas personalidades, transporta os conceitos apresentados para o seu dia-a-dia. Isso se torna preocupante na medida em que a mensagem de Meninas Malvadas é repleta de preconceitos e exclusão.
Meninas Malvadas alcançou sucesso além das bilheterias e se consagrou como referência até os dias de hoje. O humor marcante do filme faz com que seja o candidato perfeito para a criação de memes na internet, como demonstra este infográfico produzido pelo Flux Design Labs:
Através da análise do infográfico podemos perceber que grande parte do humor do filme é construído em cima de piadas classificadas como “verbais” e que a maior parte dos memes do filme provém de cenas que aliam esse tipo de humor a outras estratégias.
Na maioria dos casos, os memes são produzidos por jovens nas redes sociais e direcionados a outros jovens que também tenham noção do contexto do filme. Essas imagens e dizeres podem ser tornar tão populares que até mesmo órgãos oficiais chegam a utilizá-los em situações descontraídas.
No exemplo abaixo é escolhida uma cena muito conhecida do filme, em que Gretchen se desculpa por ser alvo da inveja das outras meninas da escola, e traz-se para o contexto que toca ao grupo que está produzindo e consumindo o meme: a rixa na internet entre brasileiros e portugueses.
A imagem foi produzida em 2016 durante o evento conhecido na internet como “Primeira guerra memeal”, em que brasileiros e portugueses trocaram alfinetadas online através de memes. Tenta-se criar uma identificação dos brasileiros com Gretchen e insinuar que os portugueses sentem inveja da atenção que o Brasil obtém.
Outro meme muito popular entre brasileiros é o referente a cena em que Cady afirma estar obcecada e passar 80% de seu tempo falando de Regina e 20% torcendo pra que alguém falasse. Suas muitas versões incluem desde o interesse por séries até questões políticas.
De forma similar a do meme de Gretchen, nos dois exemplos acima observa-se um padrão de uso: uma pessoa pertencente a um certo grupo (o de fãs da série “Game of Thrones” ou o de eleitores de Ciro Gomes, nos casos ilustrados) produz o conteúdo com a intenção de que seus seguidores, que também pertencem àquele grupo ou pelo menos tem conhecimento sobre ele, riam e se identifiquem.
Em outros casos, os memes são tão amplamente difundidos que passam a ser utilizados até mesmo por instituições tradicionais em plataformas informais. Foi o que aconteceu quando a embaixada de Israel nos EUA respondeu a um tweet do líder do Irã criticando o Estado judeu, com um gif de uma cena clássica do filme em que Regina pergunta a outra menina por que ela está tão obcecada com ela, insinuando que o país árabe estaria “obcecado” com Israel.
É interessante notar que o humor dos memes, apesar de se inspirar majoritariamente no humor verbal do filme, deve ser classificado como de “referência cultural”, de acordo com a metodologia de Erik Voss adotada no infográfico Meme Girls. Esses conteúdos só são considerados engraçados porque aludem a algo fora das redes sociais (o filme Meninas Malvadas) e provavelmente não terão efeitos humorísticos para alguém que não conheça o longa metragem.
Quer saber mais sobre este trabalho? Confira aqui como foi nossa experiência!