Condenada injustamente, Babiy Querino fala de vida no cárcere e dificuldades de reinserção social

Fundadora do Vidas Carcerárias Importam, dançarina foi acusada de dois roubos e passou um ano e oito meses presa

Gabriela Ghiraldelli
5 min readAug 31, 2021

Gabriela Ghiraldelli

OBrasil tem hoje uma população carcerária de 811.707 mil pessoas, sendo cerca de 41 mil mulheres, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional. Entre elas há gente que não cometeu qualquer crime, mas acabou vítima de falhas no processo de reconhecimento. Como a dançarina Bárbara Querino, idealizadora do Projeto Vidas Carcerárias Importam.

No dia 26 de agosto, Babiy, como é conhecida, conversou com o LabJor FAAP sobre a realidade do sistema prisional feminino no País e as dificuldades de ser uma egressa dele. “Antes de ser presa, eu não mergulhava tão a fundo, mas já entendia (dessa realidade) porque vivo na quebrada e na quebrada você vê todo dia pessoas sendo presas, sendo mortas. Você vê a polícia abusando de seu poder”, contou.

Aos 23 anos, a jovem de Cidade Ademar, bairro da zona sul de São Paulo, conta que sua saga começou em novembro de 2017, quando ela, o irmão mais velho e um grupo de pessoas foram abordados pela Polícia Militar e levados a uma delegacia. À época recém-saída de um emprego fixo, ela sonhava em ser artista e viver do que mais gosta: dançar. Mas não imaginava o que estava por vir.

Publicação que circulou nas redes sociais acusando Bárbara e outras seis pessoas de integrarem uma quadrilha/ Foto: Reprodução Facebook Ponte Jornalismo

Babiy, a ex-cunhada e uma amiga foram liberadas no mesmo dia, mas antes policiais tiraram fotos dela afirmando ser um procedimento padrão. Sem qualquer autorização, as imagens foram publicadas em páginas de redes sociais nas quais ela e outras pessoas eram apontadas como responsáveis por roubos. Logo o conteúdo viralizou e as fotos foram parar no programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena na TV Bandeirantes, onde Babiy foi apresentada como foragida.

Dois meses depois, em 15 de janeiro de 2018, a polícia foi até sua casa dizer que ela precisava assinar alguns papéis. Levada no camburão, a dançarina pressentiu que não voltaria tão cedo. Transferida para o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Franco da Rocha, Babiy soube só quase um mês depois que estava sendo acusada de dois assaltos. “Em 2 de fevereiro de 2018, um dia antes do meu aniversário, meu primeiro advogado foi até a penitenciária. Foi nesse dia que eu soube do que eu estava sendo acusada”, lembrou.

As acusações incluíam dois assaltos ocorridos na região do Jardim Marajoara, zona sul de São Paulo. De um deles, Babiy foi absolvida ainda na prisão por falta de provas. Pelo outro, um assalto ocorrido em 10 de setembro de 2017, foi sentenciada em agosto de 2018 a 5 anos e 4 meses de detenção.

O suposto reconhecimento da jovem pela vítima foi todo fotográfico, apesar de imagens de redes sociais e testemunhos comprovarem que, no dia do roubo, Babiy estava trabalhando no Guarujá, cidade do litoral paulista a 98 quilômetros da capital. “Se você é preto, se você está do outro lado algemado, você pode ter qualquer tipo de prova. Isso não vai valer porque a fala da vítima vai ser maior do que as suas provas. Provas que foram passadas por perícia”, disse Babiy.

“Nesse processo todo, o que mais me pegou desde o início foi o que estava na cara das pessoas, na cara do juiz, que a vítima foi totalmente injusta, totalmente racista. O argumento que ela usou para poder fazer meu reconhecimento foi: ‘O cabelo dela é parecido, a cor da pele dela é parecida’.”

Além do CDP de Franco da Rocha, Babiy passou pela Penitenciária Feminina da Capital e pelo Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Feminina do Butantã. Segundo ela, uma de suas sensações na prisão foi de que a vida tinha parado e estava vivendo uma realidade paralela, onde a rotina é marcada pela contagem das celas, de dormir e acordar cedo, de tomar banho rápidos e gelados, de trabalhar ou estudar para passar o tempo. Por outro lado, a jovem dançarina encontrou suporte e se identificou com pessoas ali dentro: “Para além de terem cometido ou não crime, são pessoas periféricas iguais a mim”.

Após um ano e oito meses encarcerada, Babiy conseguiu a liberdade condicional em setembro de 2019. O alívio completo, porém, só ocorreria em 13 de maio de 2020, quando recebeu notícia de sua absolvição. Para ela, o mais significativo foi a data, dia da assinatura da Lei Áurea, que acabou com a escravidão no Brasil. “Não acreditava (que estava de novo) na rua”, contou. “Só fui acreditar no dia seguinte. E saí querendo falar. Até hoje eu falo”.

A dançarina Bárbara Querino. Foto: Bárbara Querino

Idealizado por ela e uma amiga, o projeto Vidas Carcerárias Importam começou a virar realidade em março de 2020. Desde então, arrecada doações para garantir que homens e mulheres presos, de São Paulo e outros Estados, tenham ao menos o mínimo de acesso a cobertores e produtos de higiene, alimentação e limpeza. Também procura promover uma maior conscientização e mostrar a quem está privado de liberdade que há pessoas do lado de fora que realmente se importam, que consideram que eles são alguém. “Nosso maior trabalho é com a população aqui de fora. São vários discursos de ódio que a gente recebe, são várias pessoas com argumentos toscos, prepotentes e ignorantes sobre as pessoas em situação de cárcere.”

Em sua opinião, muitos inflamam seus discursos com a retórica “bandido bom é bandido morto” desconsiderando que são pessoas, são vidas que estão encarceradas. Na hora de enviar os produtos, acolher e conscientizar, ela não pergunta a familiares por qual artigo a pessoa foi presa, ou seja, que crime cometeu. Para Babiy, o importante é apenas ajudar.

E como recomeçar a vida depois da prisão?

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), 47,33% dos presos tem de 18 a 29 anos, 65,55% são pardos ou negros, 58%, solteiros e 59,9% foram enquadrados na lei antidrogas. Apenas 1,46% tem ensino superior completo.

Para as mulheres, pesam ainda preconceitos de gênero e orientação sexual, além de maternidade, racismo e estigma de estar presa. “É muito mais complicado, é muito mais dificultoso (para a mulher). Primeiro porque nós vivemos num mundo machista e na cadeia não é diferente. Até a cadeia feminina é masculinizada, o tratamento é masculinizado”, contou.

“Na hora (em que fui presa) foi desesperador. Na hora eu lembro que eu achava que tudo tinha acabado, que não ia sair, que eu não ia conseguir ter nada, que não ia conseguir chegar aonde eu queria.”

Quando a mulher sai, a falta de oportunidades e de um bom emprego pode incentivá-la a reincidir no crime. Com suporte da família e dos amigos, Babiy diz que teve mais sorte do que outras egressas. Hoje dançarina do grupo Turmalinas Negras, formado apenas por mulheres negras, ela consegue se sustentar sozinha. Mas muitas não conseguem espaço no mercado de trabalho e acabam voltando ao mundo do crime para se sustentar. “Para o homem, as oportunidades e a facilidade de conseguir alguma coisa fora é muito mais rápida e maior”, resumiu. “Para a mulher, vista já como a recatada, a do lar, é sempre mais difícil.”

Gabriela Ghiraldelli é aluna do oitavo semestre do curso de Jornalismo da FAAP

--

--

Gabriela Ghiraldelli

Jornalista em formação na Faculdade Armando Alvares Penteado em São Paulo.