Resenha: A Amiga Genial

Gabi Müller
4 min readJan 16, 2019

--

ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS!

Começamos 2019 oficialmente e, com ele, o desafio de 1 Ano de Livros. Inspirada pelo movimento Leia Mulheres coloquei este como o primeiro tema. Não preciso dizer que viveremos tempos sombrios a seguir, então, como bandeira do meu movimento literário particular, os primeiros meses darão voz às minorias. Curiosamente, o primeiro livro do ano tem uma minoria dentro da outra, escolhi bem. (O segundo também, fique ligado nos próximos capítulos.)

A primeira vez que ouvi falar em Elena Ferrante foi em uma entrevista de emprego. Eu era a entrevistadora. Nunca vou me esquecer do brilho no olho daquela menina ao descrever o fascínio por uma escritora que ninguém sequer sabe quem é — ainda que existam especulações e toda uma discussão acerca de respeitar a privacidade de quem escolheu o anonimato. Eu tenho uma coisa por pessoas com brilho no olho. Muitas pessoas me indicam muitas coisas. Você gosta de ler? Toma aqui essas 900 indicações de livros. Mas histórias mudam a minha vida. Se mudaram a sua também, provavelmente vou querer conhecer e são essas que escolherei.

O pano de fundo dessa é a amizade entre Elena Greco, a Lenu, e Rafaella Cerullo, a Lila, duas meninas pobres no subúrbio napolitano que, de maneiras inusitadas, começam uma amizade. A obra é dividida em duas partes, uma que acompanha a infância e a segunda, maior, sobre a adolescência. Esse é o primeiro volume da tetralogia escrita por Ferrante que, até onde sei, acompanha toda a vida das duas.
O livro começa quando Lila desaparece e Lenu decide contar como foi viver com essa garota tão peculiar. Contado em primeira pessoa, há uma clara parcialidade nos fatos, em como Lila é vista, em como a própria Lenu é construída. Confesso que estranhei um pouco ao começar a ler esse livro, demorei a pegar o ritmo. Ele é bem fácil, com uma linguagem bastante simples e o enredo é bem linear e sem rodeios. Acredito que a maior dificuldade tenha sido justamente por ter saído de um livro que me marcou muito e que tinham as exatas características opostas, eu sentia que parecia muito simplório perto de Anna Kariênina. A gente cresce ouvindo falar que clássicos são a alta literatura, que pra ser bom precisa ser difícil. Velhas concepções são difíceis de quebrar no nosso subconciente. No entanto, acho que o que mais me prendeu foram essas pequenas parcialidades que constroem e desconstroem cada personagem e é importante lembrar que prolixidade e rebuscamento não são sinônimos de qualidade.

Sentia uma agonia profunda ao ver Lenu, tão excepcional, sem se dar nenhum crédito, colocando todos seus méritos na relação de admiração e inveja dividida por uma linha finíssima. Por serem bem pobres e viverem numa Itália patriarcal dos anos 50, o esperado era que se casassem com homens ricos e estudo era um luxo. Lila, desde criança apontada como brilhante, a famosa pestinha que só dá problema, é respondona e mal-criada, mas que ninguém repreende muito por ter uma capacidade inacreditável, vai se distanciando cada vez mais dos estudos, indo para o caminho pré-definido para alguém em sua condição; enquanto Lenu, gradativamente, se torna a melhor aluna e trilha o sonho de ambas as amigas.

O que me indignava foi perceber a genialidade do título em ambas as personagens. Eu, pragmática e um pouquinho contra a ideia do gênio nato, me via em Lenu se desmerecendo por não ser como sua amiga, que todos viam como a verdadeira genial, e nem sequer percebia seus próprios avanços. Tema 2 para levar para análise detectado. Já levei, inclusive, e foi incrível como esse livro me fez refletir sobre como vemos os outros em detrimento de nós mesmos.

Mas em meia hora as dúvidas voltaram, e senti a necessidade de confirmações. A quem eu poderia mostrar meu texto para ter uma opinião? A minha mãe? Aos meus irmãos? A Antonio? Não, obviamente: a única era Lila. Mas recorrer a ela significava continuar lhe atribuindo uma autoridade, quando de fato, agora, era eu que sabia mais que ela. Assim, de início, resisti à ideia. Temi que liquidasse minha meia página com uma frasezinha depreciadora.

Mais do que isso: todos nós passamos por diversas batalhas e as nossas armas podem variar de acordo com a possibilidade. Crescer talvez seja, portanto, uma guerra propriamente dita. Assim, entendi esse livro como uma forma de aceitação da própria trajetória. Ainda que Lenu quase sempre se visse à sombra de Lila, alguns momentos de lucidez e empatia surgem ao longo da narrativa e é quando conseguimos desconstruir a imagem inalcançável da amiga. A própria Lila, no final, diz que Lenu é sua amiga genial. Fiquei me questionando como seria essa história se contada na visão da outra. Será que Lila se sentia tão especial assim?

Era essa a última novidade que inventara? Queria sair do bairro permanecendo no bairro? Queria arrastá-lo para fora de si, arrancar-lhe a antiga pele e impor-lhe uma nova, adequada à que ela aos poucos ia inventando?

De todas as histórias de coming of age que já tive contato, acredito que essa tenha sido a mais dura. Ela aborda temas que nunca vi, sentimentos “feios”, mas reais. Deixar a infância pra trás ressignifica tudo ao nosso redor e não falar sobre requenta e mantém a culpa sobre nossos pensamentos menos nobres, ainda assim não menos válidos.

NOTA: ⭐️ ⭐️ ⭐️ ⭐️ ½

Compre aqui e me dê uma comissão.

Coleção completa em promoção aqui.

--

--