Revisitando Lionel Shriver #1: Dupla Falta

Gabi Müller
8 min readJul 3, 2020

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“Quando homens ganham, eles se gabam; quando mulheres ganham, elas se desculpam.”

Quando escrevi sobre A História Secreta aqui, da Donna Tartt, falei sobre meus autores preferidos. Eu sou leitora de mesmos autores. Minhas amigas culpam os astros e esse meu aconchego na zona de conforto — sou taurina com lua em virgem. Já que não acredito em astrologia, eu culpo a Lionel Shriver.

Em julho de 2008, presa na cama da casa de praia por ter chutado uma pedra, terminei de ler Precisamos Falar Sobre o Kevin, romance que deu fama internacional à autora norte-americana. A leitura foi compulsória, de fato. Eu comprara aquele livro pela capa — eu também sou essa leitora — numa feira alguns meses antes e não conseguia avançar pelas páginas. O motivo é bastante óbvio: eu tinha 15 anos; meu repertório consistia em JK Rowling, Stephanie Meyer e Meg Cabot, as musas da leitura para adolescentes na época; e começava ainda a me aventurar por Jane Austen. Lionel Shriver não escrevia para mim e seus temas não falavam comigo. Mas, no alto daquela cama em Cabo Frio, ao fim de Kevin, alguma coisa dentro de mim mudou.
Não vou entrar nos pormenores de como a trama me pegou, mas o fato é que, desde então, passei a comprar todos os livros dela traduzidos no Brasil. Por aqui, a Lionel é publicada pela Intrínseca e, desde Grande Irmão, lançado quase simultaneamente com os EUA, nenhum outro foi traduzido — em um outro momento quero puxar por que isso acontece. Atualmente, são dezesseis livros publicados, sendo seis traduzidos para o português.

No mês passado, minha amiga me pediu umas dicas de livros para ler e me peguei folheando os da Lionel. No meio dessa pandemia, venho variando entre momentos de muito engajamento na leitura, seguidos por total ausência de vontade de sequer olhar para palavras. A vontade de reler essas obras que me fisgaram por tantos anos e que me fizeram evangelizar a palavra dessa jornalista para todos os meus amigos já estava aqui dentro, cozinhando em banho-maria. Eu repito pra mim mesma que não vou entrar na lógica utilitarista da leitura, mas reler livros sempre me parece perda de tempo com tantas coisas inéditas ainda por ler. Mas não dessa vez.
Eu queria entender por que continuo por tantos anos sustentando essa posição irrevogável da Lionel como minha autora preferida; entender por que não gostei dos livros que não gostei; por que alguns permanecem meus livros preferidos; e, se essa mulher me marcou tanto, por que 74% das pessoas que votaram no meu Instagram não leram nem Precisamos Falaram Sobre o Kevin e 88% não leram nada além deste. A melhor forma de fazer tudo isso é revisitar cada uma de suas histórias.

Escolhi fazer isso na ordem cronológica, para entender um pouco mais a evolução do pensamento dela. Especialmente porque o livro mais antigo traduzido, Dupla Falta (1997, tradução de Débora Landsberg em 2011), é também o único dos seis que eu odiava. Veja bem, não é que eu achava um livro fraco dentre os outros: eu achava esse livro um porre.

Dupla Falta conta a história de Willy, uma tenista profissional em plena ascensão em seus 23 anos. Ela conhece um homem que acaba de ingressar na profissão e, em meio às dicas para melhorar o jogo dele, os dois se apaixonam. Logo, a relação amorosa entre os dois fica comprometida conforme a capacidade esportiva de Eric melhora e a própria posição de Willy no ranking internacional fica ameaçada pela subida astronômica do parceiro. Ela não consegue saber se fica feliz pela melhora do homem que ama ou se luta contra o adversário.

Pois bem, senhoras e senhores, essa releitura me deixou muito abalada. Antes de chegar à página 100, eu já me sentia emocionalmente drenada pelo enredo. Não por ser um livro ruim, pelo contrário. A Lionel Shriver tem uma capacidade de enfiar o dedo em feridas que você não sabia que existia ou sabia, mas que acreditava estarem seguras entre você e seu analista.
Logo no início, entendemos que Willy é uma mulher extremamente competitiva e apaixonada pelo trabalho. Mais do que isso: seu trabalho é sua vida. Ela é uma mulher orgulhosa de sua trajetória e de tudo que conquistou até ali.

Este é meu treinador: a excelência dele é a minha excelência. Considere a derrota contra ele uma prova do meu valor frente ao seu.

Quando ela conhece Eric, seu próprio treinador alerta que isso pode vir a ser uma fraqueza para ela, uma vez que não consegue separar a vida pessoal da profissional. Se relacionando com um tenista, esses limites ficariam ainda mais borrados. É curioso que, logo que pensamos nisso, imaginamos o próprio destino a que quase todas as mulheres tradicionais estão fadadas: deixarão o emprego para cuidar do marido. Esse livro usa justamente esse mote para mostrar como a ideia da esposa submissa pode entrar na cabeça de uma mulher poderosa e destruí-la até o osso.
A autora toca em pontos muito delicados para o feminino, como por exemplo a relação com o corpo. Willy é atleta, deve, portanto, ter um corpo de atleta. No primeiro encontro com Eric, ele repete algumas vezes algo como Você não é bulímica, você não é gorda. Qual o seu problema?. A fala, que, claro, me gerou estranheza, se reflete diretamente na primeira vez em que o casal faz sexo. Ela fica extremamente consciente de seu corpo, sente vergonha de suas curvas em comparação à imagem reta e longilínea do homem. O corpo da mulher como objeto a ser analisado, escrutinado e discutido como causa e efeito imediato de suas ações no mundo.

Willy havia crescido entre inimigos e, de início, via sua generosidade com desconfiança. Se Eric estava tentando lhe arrancar alguma coisa, sentia-se obrigada a evitar que ele conseguisse. E Willy havia desenvolvido o desprezo instintivo que muitas mulheres nutrem em relação à gentileza. Homens que a tratavam com excesso de bondade eram otários. (…) Qual era o problema? Ela preferia um grosso, um parasita, um homem detestável que não lhe desse a mínima atenção? Enfim Willy ponderou que não havia nada de errado com a gentileza, mas sim algo de errado nela.

Claro que pontos como comentários maldosos disfarçados de elogios que entram na nossa cabeça como vermes e corroem nossa autoestima já são, para muitas de nós, pontos de alerta. No entanto, trechos como o destacado acima revelam que que toda a construção do mundo feminino versus masculino é posta como mais uma coisa para culpar a mulher por muitas de suas falhas. Outra das sutilezas na escrita de Shriver.
Enquanto lia, percebi que Willy é exatamente a mulher detestável: amarga, invejosa, competitiva, ambiciosa, implacável… Ela foi construída exatamente para que sentíssemos compaixão por seu marido perfeito e ódio pela megera que não se contenta com nada. Eric é o homem perfeito, que nunca se altera, que nunca perde a compostura, vai em todos os jogos da mulher, sorri nas festas de comemoração. Não ela. Quando está com raiva porque perdeu e o marido continua vencendo, arruma briga em casa, se recusa a sair, não quer torcer por ele.

Se ela marcava algum evento social, ele se irritava: Eric era possessivo com a esposa e parcimonioso com as noites dos dois. Era um absolutista e valorizava a eficiência. Resolvera suas necessidades emocionais como se fosse uma de suas equações.

Os problemas de Eric estão nas miudezas do dia a dia, nas pequenas condescendências, nos comentários mordazes e, mais profundamente, na falta de sensibilidade em conseguir perceber a história e bagagem de sua mulher enquanto, efetivamente, mulher.
Por vezes, Willy diz que preferia ter nascido homem, que queria ter a potência masculina e que se sente menos por ser mulher. De fato, o feminismo radical prevê que esse é um movimento natural para muitas mulheres, uma vez que somos continuamente menosprezadas pelo sexo que nascemos. Assim, apesar das constantes acusações de transfobia — que podemos nos aprofundar em um outro momento — as feministas radicais abraçam as fêmeas que almejam o gênero masculino justamente porque, ao se transformar em um homem, você perde todo o estigma criado pela sociedade que te tornou mulher.

Touché — disse com um sorriso indulgente, como se ela tivesse acabado de fazer alguma coisa fofa.

Minha pré-adolescência foi permeada pelos homens perfeitos e mulheres desfuncionais de Meg Cabot, os homens que vão te amar com cabelo de triângulo, no além-vida, mesmo sendo filhos do presidente… Meg raramente — ou nunca? — nos mostrava que a raiz do problema estava em nos ver como o problema, as não merecedoras dos homens maravilhosos, aqueles que tínhamos a sorte de sequer saber da nossa existência. Esquecemos que éramos Princesas de Genovia e lutávamos contra a colega que clonava mosca de fruta. E os dramas — ah, os dramas! — , quem os suporta?
Passei a pré-adolescência acreditando que aquelas meninas deslocadas e, talvez, um pouco menos merecedoras, que um dia foram notadas por homens extraordinários, fossem um reflexo da minha própria história.

— Willy, são só tenistas. Você às vezes dá a impressão de ser esperta, mas ainda acredita nessa porcaria de aura. Um arrivista carcamano chega ao topo do ranking e você é tomada por uma admiração messiânica.

Precisei lutar algumas vezes contra o ímpeto de arremessar esse livro na parede durante as semanas em que me acompanhou. Ele me lembrou muito dessa eu adolescente, da adulta em formação e de hoje ainda quando me anulo constantemente em meus “sentimentos femininos e desprezíveis”, “superstições tolas” e “manias inúteis” em detrimento da razão e validação masculina.
A crença na aura da personalidade dos tenistas de maior prestígio como algo a ser cortado pela raiz por sinal de fraqueza, mas o reforço da superstição de não haver sexo antes de uma partida importante para não liberar a “virilidade” necessária no jogo. Força versus fraqueza sempre pontuando essa partida do homem contra a mulher enquanto indivíduos percebidos na sociedade.

Ao longo de toda a história, vemos o psicológico de Willy constantemente bombardeado por todas as questões que as mulheres sofrem diariamente desde que o mundo é mundo até chegar ao seu colapso. Eu acredito que, lá em 2011, quando li tudo isso pela primeira vez, a única imagem que consegui reter foi realmente a da mulher histérica. Não acho que esse seja o livro mais fácil do mundo de ler: além de todos os jargões de tênis e descrições de partidas, ele pede uma preparação mental que duvido muito que eu tivesse naquela época.
Não sei se recomendo que esse seja seu primeiro livro para ter contato com Lionel Shriver, porque ele não traz coisas que virão em próximas obras e que fazem a leitura valer muito a pena, como as narrativas fragmentadas. Mas, se você chegou até aqui e de alguma forma esses temas te tocam, por que não?

Devo ressaltar que acho que o livro tem falhas como todo bom livro dos anos 90, nos nossos velhos pontos de representatividade e até em comentários que envelheceram mal, mas ele cumpre um papel de tocar em outros que me faz pensar que é mesmo impossível abraçar o mundo com as pernas. E será que, se fosse um livro escrito por um homem, diante de uma obra com tamanha profundidade, cobraríamos dele com tanta ênfase sobre esses erros? (Espero que sim.)

Nota: ⭐️ ⭐️ ⭐️ ⭐️

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