Estudo de Caso: Pesquisa exploratória para Design Assistivo (Parte II)

Gabriel Bastos
9 min readApr 19, 2020

Esse artigo é a continuação de uma série de 3 posts. Para ler do início, acesse o link abaixo.

Pesquisa qualitativa

Escolhi iniciar minha investigação conversando com uma especialista, ou seja, uma pessoa que tem propriedade para dar opiniões sobre o assunto investigado. Neste caso, contei com a ajuda da Gildete Amorim, intérprete e professora de Libras que vive inserida no dia a dia das pessoas surdas, tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Através dela, consegui saber com mais certeza de que a música está sim presente na vida das pessoas surdas. Apesar de alguns não gostarem e de não fazer parte da vida deles, existem muitos surdos que realmente gostam de música.

Finalmente chegou o momento de falar com essas pessoas. Para isso, foi preciso fazer uma escolha.

Definindo o perfil dos usuários

Neste momento eu tinha algumas opções para seguir, e cada uma delas me traria um tipo de resposta. Poderia conversar apenas com pessoas surdas que não gostam de música, apenas com pessoas surdas que gostam de música, ou com ambas.

  1. Entrevistar surdos que não gostam de música me faria entender o porquê deles não gostarem; se é realmente apenas uma falta de interesse ou se a música não faz parte da cultura dessas pessoas etc.
  2. Entrevistar surdos que já gostam de música me faria entender como essas pessoas consomem música mesmo não podendo ouvir; se elas precisam fazer algum tipo de adaptação para isso e como é essa experiência atualmente.
  3. Se eu entrevistasse ambos os perfis, eu poderia fazer um contraponto para entender o que fez com que certas pessoas surdas gostassem de música e outras não, e também ter uma ideia se meu produto conseguiria atender aos dois perfis e de que forma poderia fazer isso.

Lembrando do meu objetivo de melhorar a experiência de consumo musical para pessoas surdas e somando isso com o tempo curto que havia para o desenvolvimento do projeto, foquei meus esforços no público que acreditava ser mais prioritário para o meu projeto, os surdos que já gostam de música.

Obs: No entanto, cabe ressaltar aqui que conversar com as pessoas surdas que não gostam de música poderia trazer insights muito interessantes, mais conhecimento para desenvolver meu projeto e quem sabe até servir para a criação de um projeto completamente diferente. O aprendizado que fica aqui é: você precisa tomar decisões de prioridade levando em conta seu tempo e o budget do projeto. Pesquisa é um trade-off entre o custo de falhar vs. custo de garantir mais confiança nos resultados futuros.

Definindo o tamanho da amostra

Após definir o perfil dos usuários, foi preciso definir também a quantidade de pessoas para a minha amostra.

Greg Guest, Arwen Bunce e Laura Johnson, em um estudo etnográfico realizado com 60 pessoas no ano de 2006, mostraram que 94% das informações relevantes de sua pesquisa apareceram nas primeiras 6 entrevistas e 97% nas primeiras 12 entrevistas.

Para realmente definir uma quantidade, calculei o trade-off entre minha necessidade por informações vs. meu contexto: trabalhando sozinho, sem outra pessoa para fazer anotações durante as entrevistas (o que aumentaria meu tempo de análise posterior) e pouquíssimo tempo disponível para pesquisa. Por fim, determinei 6 pessoas como uma boa meta (apesar de defender o número 12 como ideal em um projeto real de mercado).

Trade-off entre quantidade de entrevistas e saturação de novas informações, por Mitchel Seaman

Nota importante: Devido à dificuldade que tive de encontrar pessoas surdas para participar das entrevistas, o tempo planejado não foi suficiente e me permitiu fazer apenas 3 entrevistas, o que não é o adequado por não ser uma quantidade capaz de traçar um cenário completo do problema, apesar de garantir mais informações do que não fazer nenhuma entrevista.

Ainda assim, as 3 pessoas entrevistadas foram fundamentais para que eu conseguisse ter uma visão mais aprofundada sobre a vida das pessoas surdas e me permitiu descobrir aspectos que eu ainda não havia imaginado, que mostro em detalhes na próxima sessão.

Realizando as entrevistas

Para realizar as entrevistas, contei com a ajuda da intérprete Gildete Amorim para traduzir a conversa e permitir que eu me comunicasse com as pessoas surdas. As entrevistas tiveram 4 assuntos principais:

#1. Entendimento da surdez

Fiz perguntas para entender se a pessoa havia nascido surda ou se havia se tornado surda ao longo da vida, com quantos anos aconteceu, o que aconteceu e se ainda possui alguma memória musical caso tenha se tornado surdo ao longo da vida. Quis saber também sobre o contexto familiar da pessoa, se os pais eram surdos ou ouvintes e como era essa interação.

Além disso, conversamos sobre o nível de perda auditiva que a pessoa possuía, se ela conseguia ouvir algum tipo de som, que sons eram esses e se conseguia ouvir qualquer coisa de uma música que esteja tocando.

#2. Relação com a música

Nesse momento, quis entender um pouco sobre o que a música representa pra essa pessoa, o porquê dela gostar de música, os estilos musicais que ela mais gostava e porquê, os momentos em que ela consome música, a forma como ela consome música (sentidos do corpo), quais partes do corpo ela utiliza pra isso e o que utiliza (dispositivos, programas, utensílios) e por fim se havia alguma dificuldade nessa experiência.

#3. Importância da música na vida social

Perguntei sobre ter contato com a música desde pequeno e através de quem, se ela consome música junto com alguém e em que momentos, se a música é um assunto nas conversas com outras pessoas e se tem costume de frequentar eventos ou ambientes musicais, como shows, boates etc.

#4. Exploração sobre produtos

Por fim, pedi pra me contar se conhecia algum produto que ajudasse pessoas surdas a consumirem musica e se já havia experimentado. Também explorei a necessidade e o possível interesse da pessoa em um produto que fizesse isso.

Intérprete e participante surdo sendo entrevistado

Análise dos resultados

Vou trazer aqui um resumo dos relatos de cada um dos 3 participantes, que será suficiente pra percebermos diversos insights.

Participante 1: “A visão é a minha orelha”

Tem 22 anos, é estudante, surda oralizada e filha de pais ouvintes. Nasceu surda com perda de audição profunda em um dos ouvidos e perda mediana no outro, onde usa aparelho auditivo. Gosta muito de música, pra ela é uma forma de relaxar e mudar o humor. Prefere apreciar música sem fazer nada simultaneamente. Gosta de consumir música no Youtube para poder ver os videoclipes e acompanhar a legenda da música que está sendo cantada. Consegue ouvir um pouco da música, mas também usa a visão — para ver vídeos — e o tato — para sentir as vibrações da música. Pra ela, esses 2 sentidos são muito importantes na apreciação musical. Gosta de sentir as vibrações na região da barriga e do peitoral, preferindo estilos musicais com batida forte pra agitar — hip hop, eletrônica e funk — e com batida calma e voz para relaxar. Acredita que, de modo geral, as pessoas surdas gostam muito de música porque são festeiros. Contou que foi em uma festa de surdos que tinha violão e batuque.

Participante 2: “Não é só a música entrando dentro de mim, eu também estou vendo o que está acontecendo”

Tem 36 anos, é professor de libras, nasceu surdo com perda de audição profunda. Devido à intensidade de sua perda auditiva, não consegue ouvir nada que é cantado em uma música, mas sente a música através da vibração, então consegue perceber o ritmo dela desta forma. Prefere músicas com vibração forte como pagode e funk pois acha divertido. Gosta de usar fone de ouvido porque dá pra sentir a vibração da música dentro dos ouvidos, pra ele é como uma caixa acústica. Usa o fone principalmente quando está estudando ou quando está estressado, porque a música dá tranquilidade. Apesar disso, ele considera o fone de ouvido um pouco limitado por não ter uma intensidade forte: ‘não é a mesma sensação de ter uma caixa de som voltada para mim, seria melhor uma intensidade maior no corpo’. Usa Spotify e Youtube para ouvir música, ambos utilizando o fone de ouvido. Para ele, é muito interessante ter a parte visual do Youtube porque dá contextualização aos sentidos, ele consegue visualizar o que o corpo está sentindo: ‘é bem melhor ter a vibração junto com o visual’. Costuma ouvir música mais em casa: ‘quando tô com os surdos eu tiro os fones, porque ninguém entende isso, é outra cultura no meio dos surdos, é uma questão polêmica…’. Aprecia música com a esposa dele, que também é surda e gosta de música (possui perda de audição severa). Diferente dele, que ouve apenas a batida da música, ela consegue ouvir um pouco da letra cantada e gosta de acompanhá-la. Acredita que os surdos gostam mais de dança do que de música, a maioria dos amigos dele, por exemplo, não gosta muito. Contou que esteve no Rock in Rio e pôde experimentar a mochila ‘SubPac’: ‘foi uma experiência positiva e negativa. Positiva porque deu pra sentir de longe a vibração da música que estavam tocando no palco. Mas o Rock era muita informação, vibrava e não dava pra sentir a diferença, era tão intensa que deixou de vibrar exatamente o que estava acontecendo ali. Eu achei um pouco incômodo, foi um processo demorado pra sentir essa adaptação, e depois começou a dar uma coceira de tanta vibração, foi meio estranho. Parecia que ficava um formigamento no corpo depois de certa hora, quando tira continua sentindo o formigamento’.

Participante 3: “Eu sempre amei a vibração, e continuo fazendo uso disso”

Tem 35 anos, possui perda de audição severa desde os 10 meses de vida. Gosta muito de dança e de música e, para ele, a vibração e o visual são muito importantes para apreciá-la. Ainda assim, acredita que os surdos no Brasil não gostam muito de música, costumam gostar mais de dança. Acessa o Youtube para ouvir música, acompanha os vídeos e danças, gosta de mexer o corpo com ela. Disse ter um headphone muito potente que tem vibrações fortes e também o permite ouvir um pouco da melodia, mas fica com medo do volume incomodar os ouvintes. Às vezes a filha, que é ouvinte, se afasta dele fisicamente devido ao barulho. Por conta disso, gostaria que o som não escapasse do fone para não causar esse incômodo em outras pessoas. No dia a dia utiliza fone de ouvido pela praticidade, mas preferiria sentir a vibração no corpo, principalmente no antebraço, por ser mais sensível. Contou que em outro país vende uma camisa que transmite vibrações e gostaria de comprá-la pois o ajudaria a sentir as vibrações da música durante a prática da dança.

Aprendizados da pesquisa qualitativa

#1. Os sentidos da visão e do tato foram citados como os mais importantes para o consumo de música.

  • Estímulos visuais são importantes para ambientar a pessoa surda. Por esse aspecto, o Youtube parece atender bem essas pessoas, trazendo tanto videoclipes quanto as letras das músicas.
  • As 3 pessoas entrevistadas disseram gostar de sentir a música através das vibrações sonoras.
  • 2 pessoas surdas — um entrevistado e a esposa de outro entrevistado — , que tem perda de audição severa, conseguem ouvir um pouco da música e gostam de acompanhar desta forma.

#2. Vibrações sonoras em excesso podem deixar de transmitir uma experiência sensorial agradável.

  • Como o SubPac transforma a informação digital da música em vibrações, alguns ritmos e músicas que tenham muitos dados podem não ser bem compreendidas.
  • Hipótese: Utilizar a vibração natural da música terá um resultado melhor.

#3. Há preocupação em incomodar pessoas ouvintes ao redor devido ao som alto.

  • É desejado que o fone de ouvido potente não deixe o som escapar.

#4. O uso de fones de ouvido na presença de outras pessoas surdas pode ser desconfortável por questões culturais.

  • Hipótese: Em um possível futuro produto, o uso do fone de ouvido poderia ser uma função complementar e opcional, para que o produto também possa ser usado junto de outros surdos.

#5. A dança parece ser ainda mais atrativa do que a música para as pessoas surdas.

  • Há desejo em sentir as vibrações musicais durante a prática da dança.
  • Hipótese: Em um possível futuro produto, esse cenário pode ser atendido.

Como podemos ver, surgiram muitas informações preciosas em apenas 3 entrevistas. Todas elas foram essenciais para embasar o desenvolvimento da investigação quantitativa, importante para metrificar quais desses comportamentos e opiniões seriam representativos para a população surda do Brasil.

Para continuar lendo sobre o processo de pesquisa do projeto, acesse a parte final abaixo.

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Gabriel Bastos

UX Researcher na globo.com / Pós graduando em design de serviço. Fala comigo no Instagram! @ gab.insights