Graúna: Processos & Perrengues
Bastidores do lançamento da ‘1ª Fonte Séria’ da Typeóca™’
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Foi em uma tarde de procrastinação, abrindo abas no browser como se não houvesse job a ser entregue no dia seguinte, que me deparei com a Block Heavy pela primeira vez, em um specimen antigo ¹ no Flickr ² do Stephen Coles ³ . A Block é uma sem serifa geométrica produzida pela Berthold ⁴ no começo do século XX, e que até hoje ainda é bastante utilizada ⁵ . Mas, apesar de já ter alguma familiaridade com a família Block, a Block Heavy me chamou a atenção por algum motivo.
O heavy no nome não vem à toa, o tipo é muito mais bold do que o black da maioria das famílias tipográficas. É tanto peso que parece não fazer sentido, e ela ainda consegue carregar todo esse peso de uma forma que parece ‘natural’, enquanto a maioria das fontes que ousa ir tão longe acaba chegando em resultados meio duvidosos ⁶ . Para além do peso, tem ainda algumas peculiaridades no traço que dão um charme especial para ela, como a perna do /R/, a descendente minúscula do /g/ minúsculo e o bojo enorme do /P/ maiúsculo ⁷ .
Uma ‘fonte com texturinha no contorno’, entretanto, acaba trazendo conotações nem sempre desejadas ao layout. E aí, acaba que enquanto designer só conseguiria usar ela pra projetos que tivessem ‘natural’, ‘integral’, ‘manual’, ‘artesanal’, ‘boho’ ou ‘rústico’ no briefing.
Foi daí que veio a idéia de fazer o que viria a ser a Graúna ⁸ : fazer um revival da Block Heavy (Schwere Block, para os íntimos) dando um ‘polimento’ no contorno da fonte para que ela tivesse o mesmo peso, as mesmas peculiaridades, e nenhuma ‘textura’ no seu contorno.
Parecia simples. Mas, como logo aprendemos, nada é simples no mundo do type design.
O primeiro passo foi uma busca rápida para ver se a mesma ‘idéia brilhante’ que tinha surgido na minha cabeça já não tinha sido feita por outra foundry. Em uma pesquisa muito pouco rigorosa me deparei com alguns revivals da Block ⁹ ¹⁰ ¹¹ , mas quase todos os resultados desta fatídica googlada de 2014 eram famílias maiores que, para garantir uma consistência maior ao longo de todas as variações de peso + itálicos, acabavam deixando de lado toda a gordura e exuberância da Block Heavy.
Por ser uma família da época em que foundries de fato fundiam os tipos ¹² , cada peso de cada tamanho era cortado individualmente ¹³ , e era comum ter variações entre um corte e outro pra que a letra funcionasse melhor para o tamanho, peso e propósito específico que estava sendo produzida. Não vou me aprofundar na história do type design ¹⁴ aqui agora, a questão é que a Block Heavy era significantemente diferente do resto da Família Block, o que, ao meu ver, justificava um novo ‘corte digital’ focando especificamente nela.
(Só depois que a Graúna já estava quase pronta que encontrei a Hammer ¹⁵ , um revival da Block Heavy que, além de muito mais legal, acaba levando ela para um caminho completamente diferente do que foi trilhado pela Typeóca ¹⁶ )
Foi só começar a desenhar a fonte que os problemas foram surgindo. O desenho da Block Heavy é cheio de ‘inconsistências’ e ‘idiossincrasias’ (essa parte eu já sabia, embora houvesse subestimado), mas o que me pegou de surpresa foi que, ao tirar a ‘textura do contorno’, as ‘esquisitices’ do desenho original deixam de parecer ‘simpáticas’ e ‘interessantes’ e começam a parecer só ‘erradas’ mesmo.
No desenho original da fonte, a textura funciona como um ‘Filtro do Instagram™ de 2012’, que camufla muitas das ‘imperfeições’ da fonte e ainda bota uma camada de ‘estilo’. Além disso, a textura também atua como um ‘gerador de unidade’ entre o desenho de cada letra, permitindo uma variação maior em elementos estruturais do tipo sem comprometer a coesão do grupo. A variação de peso nos ‘traços’ ¹⁷ de uma letra pra outra; o ‘olho’ oval das ‘letras redondas’; a variação na ‘proporção’ das letras; e até mesmo o ‘desenho’ de algumas letras eram, de certa forma, atenuados pela presença da textura que eu tinha ingenuamente decidido retirar.
Foram muitas idas e vindas fazendo pequenos ajustes ao desenho original para que a fonte chegasse em um resultado que desse uma coesão maior entre cada letra sem sacrificar o ‘charme’ do original no meio do processo. Foram muitas as tentativas de fazer um /s/ que tivesse a distribuição certa de peso ao longo da espinha ¹⁸ . Foram muitas as vezes que olhei para a fonte, achei tudo horrível e deixei o projeto abandonado por meses. Mas, graças à falta de bom senso da minha parte, e ao apoio da Liga Mineira do Type Design ¹⁹ ²⁰ ²¹ , o projeto foi levado adiante.
Já havia feito grandes progressos, mas alguma coisa ainda parecia muito errada. Apesar de todos os ajustes, a sensação ainda era a de estar mirando na Block Heavy e acertando a Gill Kayo ²² . Uma ‘fonte esquisita’ pode até ser levada à sério quando vem de um Eric Gill ²³ da vida, mas quando vem de um type designer de primeira viagem a esquisitice tende a ser vista, com razão, como erro de principiante.
O pulo do gato veio com a idéia de arredondar as quinas da fonte. Embora pareça um detalhe pequeno, ele foi decisivo para dar à Graúna a agradável maciez da Block Heavy, afastando de vez o fantasma da Gill Kayo que assombrava o projeto.
(Eric Gill era uma pessoa horrível ²⁴ . Não queira ser assombrado pelo seu fantasma)
Depois de cuidadosamente arredondar as bordas prestando atenção na relação entre o raio do arredondamento e o ângulo da quina descobri que o Glyphs já faz automático, mas na época eu ainda estava usando o FontLab 5. Com as bordas arredondadas, o projeto ficou praticamente pronto, mas entre o ‘praticamente pronto’ e o ‘final final mesmo v2’ ainda teve alguns ajustes e também algumas firulas que fui adicionando à fonte enquanto não conseguia decidir o nome dela: números dentro de círculos, caracteres alternativos, sublinhados, e, obviamente ²⁵ , uma manícula.
Estruturalmente, Graúna Negra & Block Heavy ainda são muito parecidas: fontes sem serifa verticalmente compactas mas que, de tão bold, são até difíceis de se usar. Esteticamente, Graúna Negra & Block Heavy conversam no mesmo tom, mas cada uma com seu timbre.
Enquanto pessoa na condição de ~aspirante a type designer~ autodidata muito do meu aprendizado se deu por conta de textos aleatórios que fui encontrando pela internet. Esse texto, mais focado em processo do que auto-promoção, é minha tentativa de retribuir à causa, instigado por uma provocação da inigualável Bethany Heck ²⁶ ²⁷ ²⁸ , que não sei de onde tirei:
“Typefaces take years of time and experience to craft, but there is so rarely any thoughtful analysis around new releases, even from the type designers themselves. I’m always disappointed when I go to research the creation of a font and can’t find anything other than a single paragraph of text explaining its existence. There’s often a communication chasm between practicing designers and the type designers that craft the typefaces that are vital to their work.”
Para quem ficou interessado, a Graúna está disponível para licenciamento em reais através do próprio site da Typeóca, e em dólares pelo MyFonts e pelo YouWorkForthem.