A anatomia de um coração partido: uma análise das composições do álbum “Electra Heart”, de Marina

Gabriel Matos Monteiro Vieira
13 min readJul 6, 2023

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“Com remédios para dormir”, foi a resposta dada por Marina Diamandis ao ser questionada sobre como havia matado Electra Heart. “Eu tive de matá-la, era o fim. Foi muito divertido enquanto durou, mas essas coisas são feitas para durar somente por um tempo”, acrescentou. A confissão foi feita em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, em janeiro de 2015.

Ao contrário do que o relato acima leva a crer, não se trata de um crime real. Electra Heart nunca existiu; ela foi uma personagem construída para a narrativa do segundo álbum de estúdio da cantora e compositora galesa, lançado em 27 de abril de 2012.

Electra Heart” é um álbum conceitual que figura na lista da aclamada revista Rolling Stone dos 50 melhores de todos os tempos dessa categoria. Seu tema central é o amor; não se trata, porém, do tipo romântico, idealizado. Sobre a inspiração por trás da obra, Marina explicou que, após um difícil término de relacionamento, passou por oito meses de pura depressão em que se sentia morta por dentro.

O assunto “coração partido” não é, nem de longe, novidade no meio musical. Qual o diferencial de “Electra Heart”, então? Vários. O mais expressivo deles, contudo, talvez seja a forma ímpar como sua narrativa é construída.

Em entrevista para o Daily Mail, Marina explicou que não queria, em suas composições, soar como uma vítima. Sua intenção era abordar o lado dos relacionamentos sobre o qual normalmente não se quer falar: os jogos de poder. Brincando ser a “anti-Adele”, descreveu seu álbum como “uma ode ao amor disfuncional” e, para isso, criou Electra Heart, que seria “uma personagem fria, implacável e que não era vulnerável”.

Para Marina, “Electra Heart” seria uma espécie de álbum “antiamor ou anti-término”. Com seu conceito, pretendia personificar a desilusão amorosa e a devoção a esse sentimento. Querendo não somente fugir do clichê das canções de amor pop, mas também tirar sarro delas, concebeu alguém frio e calculista, com vícios e virtudes próprios.

Essa personagem, contudo, não se trataria de um alter ego; ela seria a antítese de tudo em que a artista acredita, sendo apenas um veículo para retratar o lado corrupto do sonho americano, com elementos da tragédia grega. Para a sua construção, a cantora se utilizou de arquétipos tipicamente associados ao feminino: a dona de casa (housewife), a rainha da beleza (beauty queen), a destruidora de lares (homewrecker) e a ídolo adolescente (teen idle). Dentre suas referências, citou ícones como Marilyn Monroe, Madonna e Maria Antonieta, acrescentando que planejava fazer um álbum pop chiclete sombrio, como se fosse uma “Britney [Spears] gótica”.

Ao se distanciar da fórmula “tradicional” que preconiza que álbuns inspirados por términos de relacionamentos devem ser repletos de baladas e letras sobre a dor de um amor perdido, Marina Diamandis conseguiu dar novos ares a uma fábula antiga. Suas composições dessa era demonstram um amadurecimento do talento antevisto em “The Family Jewels” e sua narrativa ganha profundidade em face da discussão de temas como angústia existencial, complexos de superioridade e inferioridade, fuga da realidade e busca por identidade própria.

WELCOME TO THE LIFE OF ELECTRA HEART”: os temas abordados no álbum

Acerca da composição, Marina afirmou querer retratar o sentimento de ser um “coração quebrado ambulante” e seu ponto de partida foi o desejo de não se colocar novamente em uma posição de vulnerabilidade. Embora seu pano de fundo seja o “lado real do amor”, outros temas são abordados de forma recorrente nas letras, o que será analisado a seguir.

Narcisismo & autocentrismo

Renegando sua vulnerabilidade e tentando assumir uma postura “durona”, Electra Heart se embebeda de um amor próprio deturpado, que beira — se não ultrapassa — os limites do narcisismo. Tal qual uma beauty queen posta num pedestal, quer ser venerada e aplaudida. Mais: ela quer o mundo para si e não consegue evitar. “Primadonna”, o primeiro single oficial do álbum, é, por excelência, o retrato disso:

Get what I want ’cause I ask for it
Not because I’m really that deserving of it

Living life like I’m in a play
In the limelight I want to stay

(“Me dê o que quero porque eu pedi / E não porque eu mereço / Vivendo como se estivesse numa peça / Sob os holofotes quero ficar”)

A personagem não assume qualquer responsabilidade por seus comportamentos. Na letra, seu par romântico imaginário a chama de “kinda difficult” (“meio difícil”), mas ela atribui a culpa a outra pessoa. Chega até a reconhecer que tem um ego grande, contudo, diz não entender qual o problema disso. Esse autocentrismo, manifestado no desejo de ter suas necessidades atendidas em detrimento das do outro, reaparece em “Bubblegum Bitch”, faixa de abertura do álbum:

Don’t care if you think I’m dumb, I don’t care at all
Candy bear, sweetie pie, wanna be adored
I’m the girl you’d die for

I’ll chew you up and I’ll spit you out
’Cause that’s what young love is all about

(“Não me importo se você me acha burra, não me importo nem um pouco / Candy bear, sweetie pie (marcas de doces), quero ser adorada / Eu sou a garota pela qual você morreria / Eu vou mastigar você e vou cuspir / Porque é disso que se trata o amor jovem”)

Há uma obsessão recorrente com a própria imagem — na faixa “Teen Idle” há inclusive uma referência sobre beijar o próprio reflexo no espelho — e uma falsa sensação de autossuficiência. Falsa porque, embora trate seu interesse amoroso com descaso, como se somente ela importasse no relacionamento, é evidente que Electra não somente valoriza, como depende da validação externa.

Ninguém faz nada sozinho. Até para ocupar o primeiro lugar você precisa de alguém — mesmo que esse alguém esteja atrás de você.

Poder & controle

A necessidade de estar no topo — um espaço imaginário que descreveria a posição de quem dá as cartas em contraposição a quem só segue ordens — leva a outro tema explorado no álbum: jogos de poder. O amor seria uma moeda de troca e, em um relacionamento, haveria um constante desequilíbrio, no qual uma das partes estaria em desvantagem perante a outra, como se depreende em “Power & Control”:

Women and men, we are the same
But love will always be a game

We give and take a little more
Eternal game of tug and war

(“Mulheres e homens, nós somos iguais / Mas o amor sempre será um jogo / Nós damos e tomamos mais um pouco / Eterno cabo-de-guerra”)

Na mentalidade de Electra, os papéis a serem assumidos são de comando ou de submissão. Vulnerabilidade significaria fraqueza e, por isso, deveria ser evitada. “How to be a Heartbreaker”, um dos singles mais bem-sucedidos do álbum, é, por excelência, um manual de instruções: quebre corações em vez de ter o seu quebrado. Faça os garotos se apaixonarem e deixe-os com um gostinho de quero mais, ela ensina. A mensagem também está presente em “Homewrecker” (que é um dos arquétipos escolhidos por Marina para a criação de sua personagem):

I’m only happy when I’m on the run
I break a million hearts just for fun
I don’t belong to anyone

(“Eu somente estou feliz quando estou fugindo / Eu quebro um milhão de corações por diversão / Eu não pertenço a ninguém”)

Escapismo

A premissa de contar a história de um término pelas lentes de uma figura fictícia denota um desejo de se distanciar do fato retratado, possivelmente como forma de evitar ou minimizar o sofrimento de retratar artisticamente algo doloroso. Marina descreveu como libertadora a experiência de escrever o álbum, especialmente por abordar o amor de forma mais incisiva do que havia feito em “The Family Jewels”.

Ainda como reflexo da tentativa de bloquear qualquer indício de vulnerabilidade, Electra apresenta ao longo da obra uma forte tendência ao escapismo, isto é, a fuga da realidade. Isso é perceptível em “Primadonna”, em que compara sua vida a uma peça e refere-se a si mesmo como uma “rainha da beleza em uma tela de cinema”, e em “Living Dead”, na qual relata somente se sentir viva quando se finge de morta.

Esse olhar fantasioso sobre a vida, como que à busca de uma existência paralela mais feliz do que o mundo real à sua volta, atinge seu ápice em “The State of Dreaming”, faixa que teve Marilyn Monroe por inspiração:

I live my life inside a dream, only waking when I sleep
I would sell my sorry soul if I could have it all
(…)
Yeah, I’ve been living in the state of dreaming
Living in a make-believe land

(“Eu vivo minha vida dentro de um sonho, acordando somente quando durmo / Eu venderia minha alma arrependida se pudesse ter tudo (…) / Sim, eu tenho vivido em um estado de sonho / Vivendo em uma terra de faz-de-conta”)

Desilusão amorosa

Electra Heart” não é um álbum de uma nota só. Ao conceber sua personagem central, Marina Diamandis foi exitosa em lhe dar a complexidade de alguém não-fictício. Dessa forma, ainda que se revista de uma pesada armadura, a blindagem emocional de Electra cede em alguns momentos que talvez sejam — a depender do gosto pessoal do ouvinte, claro — os pontos altos da obra, permitindo entrever as rachaduras de seu confuso coração.

Em “Lies”, a sua atitude defensiva e marcada por cinismo e deboche dá lugar, pela primeira vez, a um lado mais exposto. Electra vive um romance fadado ao fim: seu amado só a toca quando está bêbado e ela sabe não fazer o tipo dele.

You’re never gonna love me, so what’s the use?
What’s the point in playing a game you’re gonna lose?
What’s the point in saying you love me like a friend?
What’s the point in saying it’s never gonna end?

(“Você nunca vai me amar, então de que adianta? / Qual o objetivo de jogar um jogo que você vai perder? / Qual o objetivo de dizer que você me ama como uma amiga? / Qual o objetivo de dizer que isso nunca vai terminar?”)

Seguindo com suas defesas abaixadas, Electra volta a abordar a indiferença da pessoa amada em “Starring Role”. Diferentemente de “Lies”, em que ela se recusa a abrir mão de seu parceiro — a despeito do término iminente –, ela reconhece a sabedoria do dito popular de que é melhor estar sozinha do que mal acompanhada.

It almost feels like a joke to play out a part
When you are not the starring role in someone else’s heart

You know I’d rather walk alone (I’d rather walk alone)
Than play a supporting role
If I can’t get the starring role

(“Quase parece uma piada interpretar um papel / Quando você não é a protagonista no coração de alguém / Você sabe que eu prefiro andar sozinha / Do que ser uma coadjuvante / Se eu não posso ter o papel principal”)

A falta de reciprocidade e intimidade no relacionamento a deixa deprimida e ela admite que prefere seguir por conta própria do que permanecer com alguém que não a trata como prioridade. A percepção sobre o quão nocivo é esse “amor unilateral” é tema também de “Hypocrates”, que fala sobre as contradições de alguém que prega uma coisa, mas faz outra. Nela, a personagem aponta o interesse de seu parceiro em simplesmente possuí-la e questiona qual o direito que ele tem de dizer quem ela deve ser.

Depressão & angústia existencial

Em entrevistas, Marina relatou que, durante o processo de gravação do álbum, sobretudo nos estágios iniciais, encontrava-se em um quadro grave de depressão. “Living Dead” foi a primeira faixa composta para o projeto e, por isso, definiu o tom do restante do trabalho. A sua produção eletrônica “disfarça” o conteúdo obscuro: a letra fala sobre sentimentos profundos de letargia, insatisfação e amargura perante a vida. Electra diz possuir plástico-bolha ao redor do coração e se sente viva somente quando finge ter morrido.

Teen Idle” — um dos arquétipos trabalhados na obra — é uma das faixas de maior destaque. Prova disso é que, ainda que não tenha sido trabalhada como single, é uma das canções de maior popularidade do catálogo de Marina, acumulando mais de 115 milhões de reproduções somente no Spotify, além de ser uma das favoritas dos fãs.

A letra é a epítome do estado depressivo vivido pela artista à época. Há um trocadilho aqui. “Ídolo”, na língua inglesa, é “idol”. No entanto, Marina utilizou a grafia “idle”, que tem a mesma sonoridade, mas que pode ser traduzida como “preguiçosa, desocupada, inútil”. Nela, Electra relembra seus anos de adolescência e evidencia a discrepância entre seu eu-idealizado — uma rainha do baile sendo ovacionada por uma multidão — versus seu eu-real — uma jovem com problemas de autoimagem que quer permanecer trancada no quarto o dia inteiro. Sufocada por sua própria amargura, a personagem reflete sobre a juventude desperdiçada, enquanto apresenta tendências para o abuso de álcool, distúrbios alimentares e pensamentos suicidas.

I wish I wasn’t such a narcissist
I wish I didn’t really kiss the mirror when I’m on my own

Oh God, I’m gonna die alone
Adolescence didn’t make sense
A little loss of innocence

The ugly years of being a fool
Ain’t youth meant to be beautiful?

(“Eu queria não ser tão narcisista / Eu queria não beijar o espelho quando estou sozinha / Ai, meu Deus, eu vou morrer sozinha / A adolescência não fez sentido / Uma perda pequena de inocência / Os feios anos sendo uma tola / A juventude não deveria ser linda?”)

Busca por identidade

Alternando entre momentos de cinismo, humor satírico, vulnerabilidade e angústia existencial, “Electra Heart” apresenta um fio condutor que une todos os temas em uma única narrativa coesa: a busca por identidade. Refletindo sobre o assunto, Marina disse que “quanto mais você se torna o que não é, mais percebe o que você é”. Ela canta em “Fear & Loathing”:

I lived a lot of different lives
Been different people many times

I lived my life in bitterness
And filled my heart with emptiness

(…)

Got different people inside my head
I wonder which one that they like best

(“Eu vivi muitas vidas diferentes / Fui várias pessoas, várias vezes / Eu vivi minha vida em amargura / E preenchi meu coração com o vazio (…) / Tenho diversas pessoas na minha cabeça / Eu me pergunto de quem eles gostam mais”)

Electra, em sua ânsia por ser admirada, tem uma personalidade plástica, maleável conforme as expectativas e os desejos do outro. A dependência de validação externa, no entanto, levou-a a uma vida vazia e amarga, tema que volta a aparecer em “Valley of the Dolls”, música inspirada pelo livro de mesmo nome, lançado em 1966, de autoria de Jacqueline Susann:

In the valley of the dolls, we sleep
Got a hole inside of me

Living with identities
That do not belong to me

(“No vale das bonecas nós dormimos / Tenho um vazio dentro de mim / Vivendo com identidades / Que não pertencem a mim”)

Em meio a uma multiplicidade de identidades, Electra Heart perdeu as referências iniciais de quem veio a ser um dia. Na faixa homônima, presente na edição Platinum Blonde lançada em comemoração aos 10 anos do projeto, a personagem pergunta se é possível voltar para o início e diz que as luzes a deixam cega. No videoclipe, Marina canta em meio ao que parece ser uma floresta, enquanto aparecem flashes de todos os outros vídeos lançados durante a divulgação do álbum, à maneira de recapitulação da trajetória de vida da personagem. Ao final, a artista apaga o coração preto desenhado em sua bochecha esquerda, simbolizando não somente o fim da era, como também a morte simbólica da personagem criada por ela.

É um fechamento de ciclo. Antes, tudo que ela queria era viver sob os holofotes; agora, percebendo que isso a levou a uma vida incompleta e sem sentido, quer se afastar das luzes para buscar — e reencontrar — a si mesma.

Electra Heart” apresenta as marcas distintivas de um álbum pop de qualidade: conceito engendrado, batidas viciantes, visuais icônicos e letras irreverentes. Marina Diamandis muniu-se de um tema universal — desilusão amorosa — e conseguiu apresentá-lo de forma inovadora, não se apoiando em clichês ou fórmulas pré-fabricadas.

A obra foi um passo arriscado em sua carreira, sobretudo por ser o segundo álbum, que costuma ser acompanhado de muita expectativa em se tratando de artistas apontados como novas promessas da indústria musical. Trilhar a rota do alternativo para o mainstream apresenta, em geral, duas possibilidades bem opostas: aclamação ou ostracismo. Embora a opinião da crítica especializada tenha sido dividida à época, o público acolheu a loira platinada com coração pintado na bochecha. O risco valeu a pena: a era “Electra Heart” foi ainda mais bem-sucedida que sua predecessora e permitiu que Marina consolidasse seu potencial não somente como cantora, mas também como contadora de histórias.

O projeto trouxe renovação na sonoridade e na imagem da artista, sem deixar de lado, contudo, o humor ácido, o deboche e a contemplação existencialista da vida já demonstrados em “The Family Jewels”. Ao cantar sobre suas inseguranças e dores pela perspectiva de uma personagem que seria sua antítese, Marina se viu numa situação paradoxal: quanto mais tentava ser outra pessoa, mais se tornava ela mesma.

Electra Heart” consegue a proeza de abordar diversos temas sem que suas faixas soem desconexas ou desarmônicas, bem como a de apresentar um conceito bem elaborado sem parecer pedante ou complexo demais para o ouvinte, fazendo jus, portanto, ao seu título (não-oficial) de clássico cult. Vaidade, orgulho, desilusão, angústia: todos podem se identificar com o “lado feio” do amor retratado por Marina. Por isso, seja uma beauty queen, seja uma teen idle, há sempre um pouco de Electra em nossos corações.

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