Jorge Ben Jor e a independência da mulher negra

Gabriel Proiete de Souza
10 min readJul 1, 2017

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O empoderamento feminino e negro atualmente pode encontrar canais de enorme amplitude. O mundo que consome Beyoncé, Karol Conka, Viola Davis, Lupita Nyong’o, MC Carol e Serena Willians, entre outros ícones, encontra uma voz poderosa, e há muito suprimida, que ribomba por um caminho trilhado tortuosamente — o que pode engrandecer mais ainda o trabalho de figuras como Elza Soares, Nina Simone e Angela Davis.

A objetificação da mulher negra como corpo destinado a poucas ações que fugissem de submissão e sexo/sensualidade sempre encontrou muito espaço no campo artístico, em específico na música, praticamente sempre entoada por homens. Podemos passar isso por um filtro histórico, de quando ainda não se falava tanto sobre feminismo, sobre herança racial histórica, sobre o sofrimento da mulher negra, mas apesar de serem muito úteis para explicar as coisas, os fatores históricos não poupam os oprimidos de suas consequências.

Obviamente, os canais e ouvidos nem sempre estiveram abertos assim. E por ironia — que no momento pode até soar como incoerência — , eu estou aqui para falar de um homem. Jorge Duílio Lima Meneses pode despertar a atenção e a curiosidade por diversos motivos: ser um dos maiores hitmakers da história da música brasileira; um dos poucos representantes autênticos da periferia que atingiram o mainstream em um período nebuloso; ou até questionar como um homem que saiu dos morros cariocas foi adentrar o mundo da “alquimia e da agricultura celeste”. A história de Jorge Ben é bem louca. Mas na sua obra, o músico também falou, e muito, de mulheres negras.

Certa vez um amigo me disse que a canção Bebete Vão’bora (do álbum “Jorge Ben”, de 1969, sexto na carreira dele) era um retrato muito mais fidedigno da mulher brasileira do que outras músicas que tinham isso como propósito — como Ela é Carioca, de Tom Jobim, ou até a Tigresa de Caetano. Desde lá, me ponho a pensar nisso. Na letra, Jorge fala sobre sua esposa, Bebete, que se põe a sambar até o sol raiar e não dá sinais de querer parar. Para tentar convencer a moça, o músico argumenta com muito jeito.

Olha que o galo cantou
O sol vai raiar
E você não parou de sambar
Eu sei que você me é fiel
Mas é que os vizinhos já estão a olhar e falar
Eu sou o seu homem e você minha mulher
Mas quem não chora não mama
E o nosso neném já tá chorando
Querendo mamar
E você sabe muito bem
Que logo mais eu tenho que ir trabalhar
Já não posso mais chegar atrasado
E nem pensar em faltar
Pois o novo gerente não é lá muito meu amigo
E depois, como é que posso comprar
Estando a perigos
Novas sandálias pra você sambar, Bebete

Como saber que Bebete é uma mulher negra? Ele não cita isso na letra, é certo, mas Jorge Ben nunca deixou de pontuar as características predominantes das mulheres em suas músicas, e raramente elas não eram a que estamos abordando (o que pode ser irônico, afinal, veio a casar com a branca Domingas). Fora o ambiente altamente sugestivo para uma canção lançada em 1969 — quando o samba, assim podemos dizer, não era tão ‘multicolor’ (sorry, Mallu).

O que pula dos versos muito se falava na época, mas pouco era empregado nesse contexto e com esse tipo de personagem: liberdade. Em Bebete Vão’Bora, Jorge Ben Jor não só aponta a liberdade de ser, existir e se divertir no ato de sambar, mas indica a independência da mulher negra, que faz o que quer, como quer e quando quer, e para o contrário, tem que ser muito bem convencida, como qualquer outra pessoa precisa para interromper algo que ama. Não se puxa e nem se ordena nada a Bebete.

Mesmo não sendo o primeiro sucesso do músico que, de certa forma, empodera a mulher negra, Bebete Vão’Bora pode ser encara como um marco. A música, além do ritmo que equilibra perfeitamente características do samba e do jazz nacional, ele categoriza um novo tipo de mulher, que ao seu ver, dada tamanha veneração, soa a ele como a ideal — fugindo do arquétipo caduco das Amélias.

O inventor do samba-rock mantém a coerência do tratamento à mulher negra a partir de diversos pontos, muitas vezes até do melodramático, como se pode observar em canções como Por Causa de Você e Quero Esquecer Você, de seu primeiro álbum, cujo narrador, apaixonado e desiludido, versa sobre o desejo de estar com sua paixão, cercado pelas frustrações da vida. O mesmo acontece no clássico Oba, Lá Vem Ela, quando o tom abnegado retorna ainda mais forte com o trecho “Não me importo que ela não me olhe / Não diga nada e nem saiba que eu existo / Quem eu sou, pois eu sei muito bem quem é ela / E fico contente só em ver ela passar”.

Em Onde Anda o Meu Amor, o traço da independência volta sugestivo.

Onde anda o meu amor… sambando
Onde anda o meu amor… sambando

Continuo a perguntar
onde anda o meu amor
pois não sei se foi sambar
ou arranjar um outro alguém

Onde anda o meu amor… sambando
Onde anda o meu amor… sambando

Volta pra mim, meu bem
volta, eu peço por favor
pois eu quero sambar também
mas só sambo com você

Apesar da problemática desconfiança na amada, a letra mostra algo curioso: o que começa com um ligeiro tom de ordem — “onde anda o meu amor?” — acaba com uma sentença simples e final: “sambando”. Evidentemente sem permissões, sem avisos, sem satisfações. O autor só traz a sugestão de que seu amor foi sambar porque, aparentemente, é isso que ela gosta de fazer, o que torna a conclusão fácil.

O mesmo acontece em outro clássico do samba-rock e da obra do músico: Cadê Tereza?. Na canção, ele novalmente se desespera com a ausência sem aviso, dessa vez, de Tereza, e assume de novo o papel de quem deve correr atrás e procurá-la.

Cadê Tereza?
Onde anda
A minha Tereza?

Tereza foi ao samba lá no morro
E não me avisou
Será que arrumou outro crioulo?
Pois ainda não voltou

Mas
Cadê Tereza?
Onde anda a minha Tereza?
Cadê Tereza?
Onde anda a minha Tereza?

Tereza minha nêga, minha musa
Eu gosto muito de você
Sou um malandro
Enciumado, machucado
Que espera por você

Eu juro por Deus
Se você voltar
Eu vou me regenerar
Jogo fora o meu chinelo
Meu baralho
E a minha navalha
E vou trabalhar
Jogo fora o meu chinelo
Meu baralho
E a minha navalha
E vou trabalhar

Como em Bebete Vão’Bora e Onde Anda Meu Amor, Jorge Ben mais uma vez coloca Tereza, mulher negra do morro, como o epicentro do ocorrido, como o espírito independente que não necessariamente precisa ser controlado, mas apenas seduzido de forma cautelosa, que é o que ele faz prometendo largar a ‘malandragem’ e começar a trabalhar.

É bacana nesse momento pontuar algumas coisas sobre Jorge Ben. Agregado da Tropicália, o músico nascido em Madureira e criado no Rio Comprido, antes de surgir ao País com Mas Que Nada, com a promessa de revolucionar o samba — o que de fato fez e deu ao fato o nome de seu primeiro disco, “Samba Esquema Novo — , era o ídolo da garotada (que envolvia nomes como Tim Maia e Roberto Carlos) do bairro da Tijuca ao tocar violão com maestria nos botecos da vida. Uma vez no meio da indústria musical, Jorge não seguiu nem o caminho pop recente da Jovem Guarda, nem ingressou no front do combate político com letras acintosamente políticas, apesar de volta e meia dar a entender algumas críticas: virou ‘apenas’ um defensor do morro e da raça, além do amor. Naturalmente, na favela chegava muito mais Jorge Ben do que Chico Buarque, restrito aos círculos da classe média-alta. Não compôs Apesar de Você, mas compôs sobre Charles, Anjo 45, defensor dos fracos e oprimidos, Robin Hood dos morros, rei da malandragem, que foi tirar férias numa colônia penal.

Repito, versou sobre a raça: falou de Zumbi dos Palmares, de Cassius Marcellus Clay (ou Muhammad Ali), de Xica da Silva.

Xica da, Xica da, Xica da
Xica da Silva, a Negra!

Xica da Silva
A Negra! A Negra!
De escrava a amante
Mulher!
Mulher do fidalgo tratador
João Fernandes
Ai! Ai! Ai!

Xica da, Xica da, Xica da
Xica da Silva, a Negra!

A imperatriz do Tijuco
A dona de Diamantina
Morava com a sua corte
Cercada de belas mucamas

Num castelo
Na Chácara, na Palha
De arquitetura
Sólida e requintada
Onde tinha até
Um lago artifical
E uma luxuosa galera
Que seu amor
João Fernandes, o tratador
Mandou fazer, só para ela
Ai! Ai1 Ai!

Xica da, Xica da, Xica da
Xica da Silva, a Negra!

Muito rica e invejada
Temida e odiada
Pois com as suas perucas
Cada uma de uma cor

Jóias, roupas exóticas
Das Índias, Lisboa e Paris
A negra era obrigada
A ser recebida
Como uma grande senhora
Da corte
Do Reis Luís
Da corte
Do Reis Luís

Historiadores dizem e se contradizem, mas algo é impossível de se discordar: independentemente de como foi sua real existência, Xica da Silva é um símbolo do poder e da independência da mulher negra. Antes escrava, se envolve com um fidalgo branco e chega à alta classe, obrigando todos os brancos a aceitarem, contentes ou não. Interessante observar como Jorge dá ênfase nas palavras “mulher” e “negra” ao longo do música, traduzindo justamente o porquê Xica ser o que é, e porque importa ela chegar onde chegou e fazer o que fez.

No mesmo gênero, sem se apegar a figuras históricas, Ben continua o enaltecimento à mulher negra em Criola, tentando traçar um retrato afro-brasileiro, possivelmente muito semelhante ao de sua mãe, que nasceu na Etiópia e depois desembarcou no Brasil.

Criola
Uma linda dama negra
A rainha do samba mais bela da festa
A dona da feira, uma fiel representante brasileira
Criola
Filha de nobres africanos
Que pelo descuido geográfico
Nasceu do Brasil, num dia de carnaval
Criola
E como já dizia o poeta Gil
Que negra é a soma de todas as cores
Você criola é colorida por natureza
Você criola é o poder negro da beleza
Criola
Uma linda dama negra
A rainha do samba mais bela da festa
A dona da feira
Uma fiel representante brasileira
Criola
Criola

Aqui, como em Xica da Silva, Jorge Ben Jor não só traz o valor da mulher, mas principalmente exalta o poder negro. Mais ainda, coloca uma “linda dama negra” como uma “fiel representante brasileira”. Em um ritmo rápido intercalado em solados de violão, a música é enriquecida por características estritamente afro-brasileiras não objetificadas ou estereotipadas.

A poesia nacionalista ainda apareceria em Mulher Brasileira, mas são trazidos descrições mais subjetivas, como beijos, abraços, e quando não isso, “Bonita ou feia você é maravilhosa / Eu quero ser o bendito fruto de você”. Aliás, termos descritivos de corpo e traços só podem ser vistos em algumas canções, como a também clássica Menina Mulher da Pele Preta, mas de maneira bem discreta. Na canção, a pele preta da mulher parece ser o atributo de maior valor dado por Jorge, que esquece características normalmente lembradas por outros compositores, como as curvaturas.

Essa menina mulher da pele preta,
Dos olhos azuis, do sorriso branco
Não está me deixando dormir sossegado
Será que ela não sabe que eu fico acordado
Pensando nela todo dia, toda hora
Passando pela minha janela todo dia, toda hora
Sabendo que eu fico a olhar
com malícia
A sua pele preta
com malícia
Seus olhos azuis
com malícia
Seu sorriso branco
com malícia
Seu corpo todo enfim,
com malícia

Em toda a carreira de Jorge Ben, é notório a prioridade em usar adjetivos muito mais relacionados à personalidade, do que relacionados diretamente ao corpo. Outro exemplo é Que Nega É Essa.

Que nega é essa
Ah, ah, ah
Prendada e caprichosa
É a nega que eu espero
Pra acabar com a minha solidão

Que me invade
Que me machuca
Que me maltrata
Que me funde a cuca

Mas! que nega é essa
Que nega é essa

Se essa nega gostar de mim
Eu lhe darei um lindo vestido branco
Vestido branco
Com muito véu e grinalda e flor de laranjeira
No dia mês e hora
E na igreja que ela quiser
Eternamente essa nega faceira, dengosa,dondoca e beijoqueira
Há de ser minha companheira e minha mulher

Exemplos se perdem em uma das mais extensas carreiras da música brasileira.

Como um dos vanguardistas da MPB, ainda que em seu próprio estilo, Jorge Ben Jor mostrou ter (e sempre o terá) um papel fundamental na independência da mulher negra através de sua música, alçando-as e reconhecendo-as ao patamar do poder, da conquista de si mesmas, do domínio do corpo, da mente e da não-subordinação. Não abriu caminho para Elza, Sandra de Sá e Margareth Menezes, mas ajudou a pavimentá-lo, apoiado nas grandes damas do samba.

A exaltação do feminino e do negro permanece com o artista até hoje, com 74 anos, e deverá ser um legado permanente. Contemporâneo de músicos que lutaram por direitos humanos e políticos, Jorge olhou para dentro, para os seus, para as suas, e versou sobre a fragilidade que, como ele mesmo revelou, não era tão frágil assim. Pelas ruas, agora podemos ver muitas Bebetes, Terezas e, sem dúvidas, Xicas da Silva. Empoderadas por si só, reveladas pelo olhar carinhoso do homem patropi. Para nós, que temos observado os versos extrapolarem ao dia a dia, é digno agradecer ao apoio pela liberdade e pela independência, nem sempre protagonizada contra os mesmos brutamontes.

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Gabriel Proiete de Souza

Jornalista. Música, cinema, literatura, política e esporte. Filosofia barata e reflexões de balcão de bar.