Como Felicidade por um Fio nos ensina sobre a transição capilar.

Gabriela Holanda Bessa de Lima.
6 min readJan 25, 2019

Em 2018, eu criei uma meta de adicionar filmes considerados mais “acessíveis” para o #52filmsbywomen — acessíveis no sentido de que eram facilmente achados, em plataformas como Netflix ou Telecine Play, e tinham narrativas que a maioria das pessoas gostam, os famosos filmes “farofa” — e nessa perspectiva, no mês de setembro de 2018, o Netflix lançou uma comédia romântica chamada Felicidade por um Fio (Napplily Ever After) — uma adaptação de um livro do mesmo título escrito por Trisha Thomas — da diretora Haifaa al-Mansour, a primeira diretora de cinema da Arábia Saudita.

O filme conta a história de Violet Jones, uma publicitária bem sucedida e bastante perfeccionista, que não se permite errar ou possuir falhas. Violet todos os dias acorda mais cedo do que a maioria das pessoas para alisar o seu cabelo e somente se considera bonita com esse visual. Após uma desilusão amorosa, a personagem começa um novo relacionamento com seu cabelo e uma nova fase de autoconhecimento.

E como esse filme nos ensina sobre a transição capilar?

Desde sua infância, Violet era ensinada pela sua mãe que o seu cabelo deveria estar a todo momento liso e que somente aquela aparência era considerada aceitável para a sociedade. Todo dia, antes de sair de casa, sua mãe aquecia um pente de ferro ao fogo e passava diretamente no seu cabelo para alisá-lo. Nenhum fio de cabelo deveria estar “fora de seu lugar” e até mesmo em seus momentos de lazer, como na piscina comunitária, sua mãe a proibia de entrar e se divertir com as outras crianças (brancas, claro), para que seu verdadeiro cabelo não fosse revelado. Até que vemos uma cena em que ela pula na piscina, a despeito das reclamações de sua mãe, e um colega seu começa a comentar sobre como seu cabelo era estranho, revelando o trauma que aquela situação instaurou, como a ensinou que seu cabelo não era aceito e que deveria ser escondido.

A personagem demonstra como sempre era vítima de uma constante ansiedade de estar “bem arrumada” assim como as crianças brancas, de cabelo liso, mesmo que estas não tivessem nenhuma preocupação em como se apresentavam, pois nunca tiveram seus cabelos como objeto de brincadeiras e preconceito. E, em meio à flashbacks da relação dela com seu cabelo natural, percebemos como quem tem cabelo cacheado ou crespo geralmente cresce com a ideia de que o cabelo é um segundo trabalho. Sentimos-nos obrigadas a alisar, pranchar, esconder nossos cachos através de penteados “comportados” para sairmos, onde nunca podemos simplesmente acordar com aquele cabelo e sair, sempre há uma rotina envolvida naquilo. O cacheado é considerado sujo, feio, desarrumado. E, principalmente, nos é ensinado que homens não gostam de cabelo cacheado e que devemos SEMPRE agradá-los.

Nós aprendemos a odiar a nosso cabelo, a pensarmos que somos feias e descuidadas ao sairmos com nosso cabelo natural, fazendo com que crianças de 9 ou 10 anos alisem seus cabelos com produtos químicos nocivos à sua saúde, causando feridas em seus couros cabeludos e até mesmo cortes químicos apenas para que se sintam confortáveis consigo mesmas. E essa situação lembra a minha própria história com meu cabelo, de chegar a chorar diversas vezes lembrando da sensação de me sentir feia, de que iriam me ignorar na rua e que nunca iriam se apaixonar por mim e me aceitar com o meu cabelo da forma natural.

Quando Violet passa por uma química complicada e decide, por um impulso, raspar seu cabelo, vemos a dificuldade que é entrar em uma transição capilar, isto é, esperar que seu cabelo natural, fora de químicas, cresça. Apesar de que hoje a maioria das mulheres espera seu cabelo crescer gradualmente, sem uma mudança extrema como a situação da raspagem de seu cabelo, é uma circunstância que se assemelha bastante com o que nós, cacheadas “assumidas” passamos. O “Big Chop”, ou seja, o corte para retirar toda a química e deixar seu cabelo completamente natural e cacheado por completo, é um processo de redescoberta e de construção de uma nova identidade.

A cena de Violet raspando o cabelo e se reconhecendo em sua nova forma é extremamente emocionante, por ver uma situação em que uma pessoa finalmente se sente livre e começa a se reconhecer de uma nova forma. Após isso, ela refaz a sua rotina e constrói uma nova Violet. Passa a ser mais leve, a se permitir novas situações, desafiantes e diferentes para sua antiga rotina e a questionar a sua insegurança e toda a estrutura que nos diz para abandonar nossos cachos naturais. Ela percebe novos gostos, novas paixões e isso é muito relacionável com a maioria dos relatos das pessoas que passaram por uma transição capilar, que descrevem como o seu estilo pessoal, seus trabalhos e etc foram modificados por inteiro após o Big Chop.

Outra situação importante para o filme é a questão do racismo estrutural presente na sua mãe. Ao contrário de vermos a mãe da protagonista como uma espécie de vilã, que está a todo momento querendo encaixar a filha em uma caixinha, impondo sempre determinadas coisas, é necessários vermos ela como uma vítima de toda a estrutura racista que presenciamos hoje. O que a mãe dela não precisou passar para chegar ao ponto de impor à sua filha aquela rotina desgastante? Em que ela própria não se sente confortável, nem mesmo feliz consigo mesmo. E para contrapor essa situação, o roteiro genial mostra um novo par romântico da protagonista e este com sua filha demonstram como faz bem nos aceitarmos como somos. Que o cacheado é bonito. Que os traços de pessoas negras também são bonitos.

Além disso, vemos como a indústria do cinema finalmente está se desafiando a produzir filmes com representatividade. Assim como toda e qualquer indústria atualmente, estas estão repletas de preconceitos estruturais que por refletir essa estrutura, também ajuda a sua manutenção. Em um filme de comédia romântica comumente vemos casais brancos — basta lembrar dos filmes da sua infância como Como Perder um Homem em 10 dias ou Vestida para Casar — e nesse filme, não vemos uma velha formula ser reproduzida, há, na verdade um processo de revalorização de mudanças, do que é diferente. Finalmente vemos narrativas de mulheres negras sendo colocadas em grandes espaços no cinema. Inclusive, o Netflix tem sido um grande espaço de produção cultural de mulheres, com suas próprias narrativas e projetos mais independentes e que fogem do que normalmente é produzido por grandes estúdios (o que é muito bem vindo).

Esse texto e, principalmente, esse filme não é para afirmar que é necessária uma ditadura do cabelo natural, de uma aceitação forçada, mas é para levar a reflexão de que podemos ter cabelos alisados quimicamente, mas sempre tendo a certeza de que nosso cabelo natural também é bonito, também é aceitável. A questão é sobre a nossa liberdade, e quando não nos sentimos confortáveis sendo como naturalmente somos é difícil ter uma sensação de liberdade. Como diria Nina Simone: “Liberdade para mim é não ter medo” e nesse caso, é não ter medo de assumirmos nossas identidades!

Esse texto demorou bastante para sair desde que eu assisti devido a todo o mix de sentimentos que senti assistindo esse filme. Definitivamente recomendo que todo mundo assista e, caso tenha gostado do texto, por favor clica ali nos aplausos quantas vezes quiser, e também me indiquem outros filmes que falem sobre o assunto. ❤

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Gabriela Holanda Bessa de Lima.

Estudante de direito, apaixonada por cinema (ainda mais se feito por mulheres) e viciada em fazer listas inúteis.