Hora de esticar os horizontes — Manoel de Barros (1916–2014)

Gabriel Camões
3 min readApr 4, 2016

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A poesia é a infância da língua”. Com esta frase curta e arrebatadora, Manoel de Barros me ensinou mais sobre poesia do que qualquer livro, qualquer aula, qualquer paixão, qualquer olhar, qualquer cachoeira, qualquer entardecer… Pena que ganhei de presente tão tardiamente, das mãos do meu pai, a sua poesia completa. Só em 2009, com 25 anos de idade e já me aventurando por esse universo da escrita, que fui apresentado ao homem que “guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho: 1 abridor de amanhecer, 1 prego que farfalha, 1 encolhedor de rios e 1 esticador de horizonte”.

Aqui em Salvador, mais ou menos dois mil quilômetros distantes do Mato Grosso do Sul, morada do poeta por toda a vida, me avizinhei de Manoel sempre que li seus versos. O pequeno Bernardo e suas peraltagens, o diálogo das aves com as pedras, das rãs com rios, das formigas com as árvores, fundiram minha infância nas fazendas e sítios do interior da Bahia com as incursões poéticas de seus tempos de criança em Corumbá, cidade situada no pantanal matogrossense. Mas, com isto não quero aqui contribuir para reforçar o rótulo de “Poeta do Pantanal”, que já o vi recusar alegando que a poesia mexe com palavras e não com paisagens.

Mais do que a chance de visitar e viajar pelo Pantanal, guiado por suas metáforas e pelos seus versos, Manoel me fez ver o mundo dentro de uma flor. Só com ele eu fui realmente capaz de perceber a grandeza de um besouro. O quanto eu e uma pedra temos em comum. Ou que pode chover na palavra onde eu estou e que “sobre o nada eu tenho profundidades”. Ele me ensinou ainda que “poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede: procure ser árvore”.

O que dizer de um homem que cria o verso “sapo é um pedaço de chão que pula”? Que é capaz de conciliar genialidade e simplicidade já nos títulos de suas obras? Como não se encantar ao encarar a capa de um livro que traga escrito “Arranjos Para Assobio” (1980), “O Guardador de Águas” (1989), “Livro Sobre Nada” (1996), “Retrato do Artista Quando Coisa” (1998) ou “Exercícios de Ser Criança” (2000)? Manoel de Barros lançou diversos livros, ganhou prêmios e honrarias, entre eles dois Jabutis. Mas isso pouco importa. Para ele o que vale mesmo é o jabuti virar pedra ou virar porta.

Declaro aqui, portanto, minha tristeza por saber que não terei mais a chance de ir ao Mato Grosso do Sul bater na sua porta e jogar conversa fora. Alimentei este sonho por muito tempo. Ao ler esta manhã sobre a sua partida, eu me lembrei de uma linda passagem do documentário “Só Dez Por Cento É Mentira” (2008), de Pedro Cezar, quando Manoel diz que “pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”. Pois, é chegada a hora de desatar o nó do tempo e esticar os horizontes em outro lugar. Aqui me despeço do “menino que carregava água na peneira”. Adeus, Manoel. Os meus olhos jamais se encontrarão com os seus. Mas as suas metáforas nunca me deixarão.

*Esse texto virou passarinho em novembro de 2014.

Originally published at gabrielcamoes.tumblr.com.

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