Tardei para perceber o quanto David Bowie é foda

Gabriel Camões
5 min readApr 9, 2016

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David Bowie morreu e eu me senti obrigado a fazer uma confissão: eu nunca o escutei com merecida atenção. E mesmo me sentindo um pouco culpado por essa constatação, eu acho que não tenho motivos para esconder isto. Nunca fiz maquiagem de raio atravessando o meu rosto. Nunca parei para ouvir um disco inteiro dele. Nunca fui de fato um fã da sua produção musical. Além de “Astronauta de Mármore”, versão cafona da banda gaúcha Nenhum de Nós para o clássico “Starman” de Bowie, e mais um punhado de canções como “Life On Mars”, “Let´s Dance”, “Space Oddity”, “Ziggy Stardust” e “Rebel Rebel”, confesso que não conheço muito mais da sua obra. E agora que ele se foi, acho que tenho uma nova oportunidade para me redimir.

De David Bowie sempre me chamou mais atenção a sua figura icônica e a sua aura camaleônica do que propriamente as canções compostas por ele. As variadas versões de sua persona, com personagens como o “Ziggy Stardust”, as diferentes fases na carreira marcadas por um experimentalismo estético e por uma riqueza indumentária que o tornaram único e incomparável, explorando matizes impossíveis e cores de outros os planetas. Sempre o vi ou o imaginei como um cara a frente do seu próprio tempo.

Na verdade, fazendo um exercício de memória, eu me recordo que quem me apresentou de fato o fino da obra de Bowie foi ninguém menos que Seu Jorge no filme “A Vida Marinha com Steve Zissou” (2004), de Wes Anderson. O diretor americano pediu para que o artista brasileiro, para agregar um humor estranho ao seu personagem, cantasse músicas de David Bowie em português no esquema “voz e violão”. As treze canções selecionadas renderam um disco posteriormente que arrancou elogios do próprio Bowie que podem ser conferidos no próprio encarte deste álbum quase acidental.

O fato é que, com a morte de Bowie anunciada nesta segunda-feira, as redes sociais amanheceram tomadas por centenas de milhares de homenagens ao artista. Enfim… Ondas semelhantes já foram formadas com a morte de outros ícones da música, do cinema, do teatro, da dança, da literatura… Mas ainda assim foi um susto perceber a quantidade de amigos e conhecidos que se declararam fãs de David Bowie. E foi estranho, ao mesmo tempo, não me sentir contaminado por essa onda de tristeza, por essa enorme comoção que deu o tom das timelines e hashtags mundiais hoje. Ao invés de tristeza, nasceu em mim uma curiosidade, uma vontade de entender o quão grandioso era esse cara que, ao partir, comoveu tanta gente.

Impressionou-me de verdade a quantidade de comentários, vídeos, referências, fotos, gifs, links e trechos de canções relacionadas ao artista inglês… Mas, por outro lado, me arrisco a dizer também que é uma questão de horas para que um novo assunto se sobreponha de tal modo a soterrar os vídeos e fotos de Bowie com novas postagens que virão. Não que homenagens em redes sociais não sejam válidas ou bonitas ou sinceras, mas me reservo o direito de acreditar mais na perenidade de um pôster surrado preso atrás da porta do quarto de um adolescente ou num CD ocupando lugar de destaque na estante de discos de uma sala.

Ao fuçar um pouco sobre a trajetória do inglês, eu fiquei realmente admirado por descobrir que David Bowie tocava, além de guitarra e violão, saxofone, teclado, piano, sintetizadores, mellotron, gaita, estilofone, xilofone, vibrafone, koto, bateria e percussão, além de outros instrumentos de cordas como a viola e o violoncelo. E fiquei mais chocado ainda ao investigar com calma a sua profícua carreira de ator e, com isto, notar que tantas vezes já o vi sem lembrar ou até sem saber que ele era ele em diversas obras cinematográficas.

E aqui destaco dois belos e prazerosos sustos: Bowie atuando como o pintor Andy Warhol (1928–1987), maior nome da chamada Pop Art, no filme “Basquiat — Traços de Uma Vida” (1996), de Julian Schnabel; e ainda como o inventor Nikola Tesla (1856–1943) no longa “O Grande Truque” (2006), de Christopher Nolan. Bowie trabalho ainda com nomes como Martin Scorsese, David Lynch, o pessoal do Monthy Python, enfim, uma trajetória respeitável e digna de reconhecimento, muito bem resumida neste texto que encontrei na internet e que destaca 12 atuações dele nas telonas.

(David Bowie interpreta Andy Warhol no filme “Basquiat”)

Enfim, a verdade é que tardei para descobrir que David Bowie é foda. Um erro que agora sou obrigado a assumir. E tive apenas uma tarde para tantas revelações e tantos avanços neste sentido. E sei que esse é só o começo de uma viagem por uma obra vasta e cheia de nuances. Mas, como bem disse o amigo e parente Mário Jorge, um cara que tem o rock´n roll na veia: O melhor da arte é a imortalidade. E o pior da morte é não poder fazer mais arte.

David Bowie, portanto, não morreu. Deixou aqui neste planeta um vasto e rico legado criativo, que extrapolou os limites da música e que atravessou outras tantas linguagens artísticas. E ao perceber que tinha cumprido sua missão aqui na terra, deixando uma marca indelével nesse pequeno planeta, foi “causar” em outra galáxia.

*Esse texto decolou para o espaço em janeiro de 2016.

Originally published at gabrielcamoes.tumblr.com.

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