[2] Aproximando o panenteísmo do teísmo tradicional: Deus como um ser separado do mundo

Redescobrindo Deus
9 min readDec 21, 2021

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Postcards from Hog Ranch, Alex Beard

Agradecimentos: Gostaria de agradecer ao Valdenor Monteiro, autor do blog A Estrela da Redenção, pelas prazerosas conversas acompanhadas de grandes esclarecimentos sem os quais vários insights deste texto não seriam possíveis.

Introdução

No texto anterior — que eu sugiro fortemente que leiam antes deste — , vimos que, mesmo aceitando uma visão naturalista, é possível deduzir o “fundamento de todo ser que está além de todo ser” que razoavelmente pode ser chamado de Deus sob uma concepção panenteísta. Todavia, ainda não parece claro como classificar esse panenteísmo em particular frente a outras concepções filosóficas de Deus, como o panteísmo e o teísmo tradicional, este que engloba os teísmos clássico e neoclássico. Em The Difficulty with Demarcating Panentheism, Ryan Mullins aponta para o fato de que há uma diversidade tão grande de tipos de panenteísmo na literatura que emerge o desafio de defini-lo precisamente; algo que o próprio Ryan Mullins tenta fazer em seu artigo. Contudo, ao invés de encarar isso como um problema a ser contornado, o presente texto oferecerá um argumento que, ao invés de contribuir para a demarcação da fronteira entre aquele panenteísmo e o teísmo tradicional, irá aproximá-los conceitualmente, enquanto o distancia do panteísmo.

Sobre as fronteiras

Comecemos pelo panteísmo. Essa concepção de Deus o iguala ontologicamente ao Universo, isto é, Deus é idêntico ao Universo. Então, tudo que é falado sobre o Universo também é falado automaticamente sobre Deus, pois, são a mesma coisa. Nesses termos, ser idêntico ao Universo parece implicar que, se nos referíssemos à, por exemplo, “metade do Universo”, estaríamos nos referindo à “metade de Deus”. De igual modo, se nos referíssemos a “um terço do Universo”, estaríamos nos referindo a “um terço de Deus”. E assim por diante. Nesse sentido, “alguma parcela do Universo” parece implicar que cada uma é uma “parcela da identidade de Deus”, ou “divina”; de semelhante modo a como “alguma parcela da água do rio” parece implicar que cada uma é uma “parcela da identidade do rio”, ou “fluvial”. No entanto, no panenteísmo aqui proposto não parece que isso também seja verdade. Se o Universo é tudo o que existiu, existe e existirá e dado que Deus é tão somente a Totalidade — enquanto “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”— , se nos referíssemos somente a “alguma parcela do Universo”, não estaríamos realmente nos referindo a uma “parcela da identidade divina”. Pois, no caso, se Deus é tão somente o todo, é impossível referir-se somente a uma parcela do Universo sem sumir a identidade divina enquanto Totalidade, da qual, portanto, as parcelas individualmente não partilham. Um exemplo análogo a isso envolve também a água. Uma molécula de H2O isolada de outras, apesar de poder ser parte da água, não partilha da identidade da água — ser uma substância transparente, insípida, inodoro, com ponto de fusão de 0ºC e ebulição 100ºC etc. As moléculas de H2O só partilham da identidade da substância água quando estão em conjunto robustamente, como um todo conectado. Isto é, é impossível se referir à “parcela molecular da água” — uma molécula de H2O isolada — sem sumir a identidade da substância como um todo, a água. Ou seja, referir-se isoladamente a uma molécula de H2O não implica se referir a uma “parcela da identidade da água”, pois, a identidade da água — algo com aquelas características — aparece somente quando há um conjunto robusto de moléculas, sumindo quando não há esse conjunto robusto. Na medida em que no panenteísmo aqui proposto Deus é somente a Totalidade fundamentadora da coleção de seres particulares que a constituem, suas partes individualmente não possuem identidade divina em razão de, ao serem referidas, não terem analiticamente o mesmo aspecto fundamentador totalizante do todo — por serem meramente partes — , apesar de serem fundamentos em outro aspecto, como já discutido no texto anterior. Aqui a identidade divina aparece apenas coletivamente, tal como a identidade da água em relação às moléculas. Logo, uma maneira de diferenciar uma concepção panteísta da concepção panenteísta aqui proposta é analisando as parcelas do Universo, se são divinas individualmente ou não nos termos aqui expostos¹.

Diante disso, sendo Deus somente o todo, o adágio panenteísta “o mundo está em Deus” é apropriado, pois, significa que qualquer parcela do mundo está inserida na comunidade de partes e processos que formam a Totalidade maior que elas, que é Deus. Nesses termos, há uma aproximação desse panenteísmo do teísmo tradicional. Primeiramente, aproximando-se do teísmo clássico, Deus não é um ser pessoal que tem literalmente emoções e estados intencionais, mas um ser impessoal que em certo sentido é “mais do que uma pessoa”. E, novamente se aproximando do teísmo clássico, imputa-se a Deus certos atributos somente por analogia, mais especificamente por metáforas. Por exemplo, fala-se que Deus é onipresente devido à Totalidade “permear todas as coisas”, do mesmo modo que se fala que Deus é onisciente devido à Totalidade “guardar a verdade sobre todas as coisas”; ou do mesmo que se fala que Deus é onipotente devido à Totalidade “possuir todos os poderes”. A eternidade também é algo atribuível a Deus, dado que ele, como já discutido anteriormente, é necessário. Contudo, a eternidade de Deus é algo que tanto o teísmo clássico quanto o neoclássico partilham, apesar de partilharem de modos diferentes. O teísmo neoclássico aceita a temporalidade de Deus, já o clássico não. Aqui a Totalidade, por conter o tempo, não pode ser em si mesma temporal, contudo, por atuar no tempo, possui relações temporais. Essa concessão à temporalidade divina aproxima Deus enquanto Totalidade do teísmo neoclássico. E outras aproximações ocorrem por meio da rejeição da impassibilidade, da simplicidade e da imutabilidades divinas. Já a infinitude divina é um atributo que pode também ser imputado à Totalidade, no sentido de, potencialmente, seus poderes e relações serem incontáveis. Por fim, a onibenevolência não parece ser algo atribuível a Deus enquanto Totalidade. Aqui um Deus que partilha, analogamente, das crises morais e do sofrimento humano é algo mais condizente. Nesse ponto há um distanciamento tanto do teísmo clássico quanto do neoclássico, apesar disso não parecer ser um distanciamento tão grande, pois, Deus ainda pode ser interpretado moralmente de maneira positiva através do processo de desenvolvimento dos códigos morais humanos e de sua tentativa de suprimir o mal.

Geralmente, o panenteísmo é visto como um meio termo entre o panteísmo e o teísmo tradicional, o que torna dificultoso classificá-lo precisamente. E isso é corroborado pelo que foi apontado anteriormente, afinal, o panenteísmo aqui proposto, além de se distanciar sutilmente do panteísmo, se aproxima do teísmo tradicional em alguns aspectos.

Se aproximando mais ainda do teísmo tradicional

No entanto, há um atributo em especial de Deus enquanto Totalidade que prima facie parece distanciá-lo enormemente do teísmo tradicional, que é o aparente pouco distanciamento ontológico entre Deus e o mundo. No panenteísmo aqui proposto, Deus parece depender tanto da existência do mundo que, intuitivamente, parece não haver aquela noção de “coisas separadas”. Mas, no caso do teísmo tradicional, o que significa Deus ser “separado” do mundo? Evidentemente, isso não pode significar um distanciamento espacial ou temporal. Essa “separação” é melhor compreendida no sentido analítico de que em um polo da relação há um ser cuja existência é necessária enquanto no outro polo há uma coleção de seres cujas existências são contingentes e dependem da existência necessária do primeiro. Em outras palavras, “um pode existir sem o outro mas o outro não pode existir sem o primeiro”, o que implica uma assimetria que não parece compatível com o panenteísmo aqui proposto.

Representação visual da “separação” entre Deus e o mundo no teísmo tradicional

De fato, no panenteísmo aqui proposto a relação entre Deus e o mundo é essencialmente e existencialmente simétrica. No entanto, há um ponto específico dessa relação que parece ser tão assimétrico quanto à relação entre Deus e o mundo no teísmo tradicional. Primeiro, imagine que tudo o que existe é uma estátua de Davi feita de mármore, pegando o exemplo emprestado de Lynner Rudder Baker. Se a estátua é literalmente tudo o que existe, a relação entre ela e suas partes constituintes é essencialmente e existencialmente simétrica, assim como a relação entre a Totalidade e as partes do Universo, conforme já demonstrado no texto anterior. Agora imagine que a matéria constituinte da estátua de Davi por algum motivo pudesse ser diferente e que necessariamente as matérias diferentes só pudessem formar a estátua de Davi. Apesar daquelas simetrias, há uma assimetria no seguinte sentido: a estátua de Davi pode existir sem a matéria específica F, mas a matéria específica F não pode existir sem a estátua de Davi. Dito isso, se a Totalidade engloba tudo o que existiu, existe e existirá de forma física ou natural, mesmo que os membros da Totalidade fossem outros— devido a mudanças naturais realmente possíveis que provocassem a existência de outras entidades, como diferentes formas de vida — ainda poderíamos dizer que existiria a Totalidade, pois, todo ser contingente que existisse constituiria analiticamente aquilo que é a Totalidade, “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”. Ou seja, assim como no caso hipotético da estátua de Davi, podemos dizer: a Totalidade pode existir sem o conjunto de seres particulares F, mas o conjunto de seres particulares F não pode existir sem a totalidade. Como pode ser percebido, é exatamente essa a fórmula de assimetria que representa a “separação” entre Deus e o mundo no teísmo tradicional. No caso em questão, há em um polo a Totalidade, que possui existência necessária na medida em que é necessário que alguma coisa física ou natural exista, enquanto no outro polo há uma coleção de seres particulares cujas existências são contingentes, isto é, que poderiam inexistir sem prejudicar a necessidade de existir “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”². Como já adiantado no texto anterior, a existência da Totalidade é necessária, porém, ela em si pode ser diferente, em conformidade ao que é realmente possível. Como também já dito, a única mudança que a Totalidade não aceita é aquela que faria ela deixar de existir.

Representação visual da “separação” entre Deus e o mundo no panenteísmo aqui proposto

Portanto, apesar de aqui Deus ainda depender essencialmente e existencialmente do mundo, ainda há uma “separação” entre Ele e o mundo nos termos da assimetria exposta. O mundo ainda está em Deus, no sentido de que as partes do Universo estão na Totalidade, mas, Deus está “separado” do mundo, no sentido de que a Totalidade existe necessariamente mesmo que suas partes, que dependem ontologicamente da Totalidade, mudem e os seres contingentes deixem de existir. Em outras palavras, pode-se dizer algo próximo ao que Thomas Jay Oord defende: é necessário que Deus exista com algum tipo de Universo, mas não é necessário que Deus exista com este Universo; aqui no sentido de Universo atual. Além do mais, a coexistência necessária entre Deus e algum tipo de Universo é algo que já foi defendido por teístas clássicos, como Proclo.

Conclusão

Em conclusão, observa-se que o panenteísmo pode ser defendido sob uma concepção de Deus relativamente próxima do teísmo tradicional e relativamente distante do panteísmo, o que demonstra que ele não é algo absolutamente exótico em relação a modelos teístas tradicionais acompanhados de longas tradições religiosas. Além de Deus ser a Totalidade necessária que fundamenta a existência de suas partes, Ele partilha de vários atributos do Deus do teísmo tradicional e é “separado” do mundo nos mesmos termos.

Notas:

[1] Um panteísta poderia se identificar com essa concepção panenteísta que trata as partes isoladas do Universo como não sendo divinas e, mesmo assim, continuar se identificando como panteísta. Contudo, apesar dessa liberdade nominal, para todos os efeitos ele seria na verdade um panenteísta considerando a distinção proposta. Talvez esse tipo de dificuldade seja reflexo natural do fato de o panenteísmo estar em uma zona cinzenta entre o panteísmo e o teísmo tradicional.

[2] Os seres particulares que poderiam inexistir são aqueles que não existiriam caso as partes da Totalidade tivessem se organizado de outras maneiras, o que é o caso de estrelas, planetas, formas de vida etc. Contudo, talvez haja alguma coisa fundamental do Universo, como algo que origina a matéria, serve de matéria prima ou serve de ambiente etc, cuja existência é necessária, as quais podem ser campos quânticos, partículas fundamentais, o espaço-tempo etc.

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