[1] Um argumento naturalista a favor da existência de Deus

Redescobrindo Deus
12 min readDec 15, 2021

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The Painting of Life, Alex Beard

Introdução

O que muitas pessoas estão dispostas a chamar de Deus é o fundamento de todo ser que está além de todo ser. Classicamente, esse “fundamento de todo ser que está além de todo ser” é compreendido como uma relação de causa e sustentação, isto é, um Deus transcendente que cria o Universo e que o sustenta em um único ato a fim de que o Universo possa existir e permanecer existindo. Além disso, esse fundamento é também classicamente compreendido como algo cuja existência é necessária, isto é, algo que existe em todos os mundos possível e que, ao contrário de seres contingentes, não poderia inexistir. Dito isso, mesmo considerando uma visão naturalista, ainda é possível falar em um “fundamento de todo ser que está além de todo ser cuja existência é necessária” que razoavelmente poderia ser chamado de Deus.

“Estar além de todo ser” em uma visão naturalista

É compatível com a visão naturalista dizer que a totalidade de tudo o que existiu, existe e existirá — Totalidade com T maiúsculo daqui em diante — é algo composto que não é redutível às suas partes individuais. Isso significa que a Totalidade não possui identidade com cada uma de suas partes, de semelhante modo a uma bicicleta que não possui identidade com cada uma de suas peças. Ademais, ainda tomando esse exemplo, a bicicleta não é meramente a coleção ou o conjunto de suas partes, pois, é possível haver uma coleção de partes de bicicleta dispostas, em uma caixa, por exemplo, sem haver o que chamaríamos de “bicicleta completa”. Uma bicicleta é algo que indivíduos podem usar para se locomover, pedalando, fazendo as rodas girarem, guiando a direção do movimento etc. Portanto, peças de uma bicicleta desmontada em uma caixa não parecem ser algo como uma “bicicleta completa”. Pode-se dizer que há uma “bicicleta completa” somente quando suas partes estão todas conectadas robustamente de tal modo que tornam possível a ocorrência de um conjunto de processos que fazem o sistema como um todo funcionar. Nesse sentido, o sistema como um todo é algo que está além de suas partes individualmente e além de seus processos isoladamente, que ocorrem quando estão em funcionamento. Pois, o sistema não possui identidade com suas partes individuais e nem com seus processos isolados, sendo em algum sentido algo “maior”. Analogamente, a Totalidade não é somente uma mera coleção de partes, mas também o conjunto robusto de processos que formam um grande sistema que, como um todo, não possui identidade com suas partes individuais e nem com seus processos isolados. Portanto, nesse sentido particular, essa Totalidade é algo que está além de todos os seres particulares que a constituem, ou seja, é algo que “está além de todo ser”.

Diante disso, pode-se dizer que a Totalidade é “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”. Mesmo se existir um Multiverso ou algum tipo de estado físico inicial “separado” a partir do qual o mundo surgiu, a coleção de todas essas coisas é o que está sendo chamado de Totalidade aqui. Para tornar o argumento mais inclusivo, pode-se considerar também objetos platônicos, se existem, como partes da Totalidade.

“Fundamento de todo ser” em uma visão naturalista

Um interessante apontamento feito por Graham Oppy é que existem mundos possíveis que podiam, podem e poderão realmente acontecer e mundos possíveis que, apesar de imagináveis e logicamente possíveis, não podiam, nem podem e nem poderão realmente acontecer. Por exemplo, uma pedra exposta a raios solares que não fica quente é um evento imaginável e logicamente possível, mas não poderia ocorrer dada sua impossibilidade nomológica, isto é, não está de acordo com as leis naturais deste Universo. Outro exemplo: um macaco digitar aleatoriamente por algumas horas as teclas de um computador e por acaso escrever uma peça shakespeariana é algo imaginável e logicamente possível, mas não poderia ocorrer dada sua altíssima improbabilidade, apesar de não haver nenhuma lei natural que impeça isso. Mais um exemplo: a teoria da evolução ser falsa é algo imaginável e logicamente possível, mas é algo impossível epistemicamente frente às evidência científicas conhecidas, apesar de prima facie sua suposta falsidade não contradizer qualquer lei natural e sua probabilidade de ser verdadeira poder variar frente a novas evidências. Vários exemplos sobre coisas “realmente possíveis” podem ser elaborados e a crença nessa tese não parece levantar grandes controvérsias, uma vez que não advoga pelo fim da metafísica dos mundos possíveis e nem muito menos elimina o livre exame de qualquer mundo logicamente possível para o exercício filosófico. Além disso, é algo razoável tanto para o senso comum quanto para cientistas e estudiosos das mais variadas áreas.

Dito isso, outra crença igualmente razoável é a de que há somente um único conjunto de coisas que pode ser chamado de Totalidade, uma vez que, epistemicamente, não há razões factíveis para crer na existência de “Totalidades” absolutamente separadas desta e, metafisicamente, assumir que há somente um conjunto que pode ser chamado de Totalidade é mais virtuoso, pois é uma tese parcimoniosa, prudente e modesta. Tendo essas duas coisas em mente, pode-se dizer que, dado que esta Totalidade é a única existente, há um conjunto de mundos possíveis cujos membros são todos os mundos possíveis que durante toda a história desta Totalidade podiam, podem e poderão realmente acontecer. Desse modo, pode-se chamar aquele conjunto de conjunto de todas as disposições realmente possíveis que a Totalidade pode assumir. Seria esse o conjunto dos mundos realmente possíveis.

Considerando que a existência da Totalidade possui uma explicação naturalista, seja ela eterna ou possuidora de uma origem, pode-se dizer primeiramente que todos os seres particulares da Totalidade fundamentam a Totalidade no sentido de que elas compõem a Totalidade, apesar de não serem individualmente idênticos a ela. Ainda de acordo com a analogia da bicicleta, pode-se dizer que as peças fundamentam a bicicleta no sentido de que elas compõem a bicicleta. Nesse termos, a relação de fundamentação é assimétrica, pois, as partes compõem a Totalidade, mas a Totalidade não compõe suas partes. No entanto, do ponto de vista de uma dependência ontológica essencial, a relação de fundamentação entre as partes e a Totalidade composta pode ser interpretada como simétrica, o que não é uma novidade na literatura. Uma relação de dependência ontológica essencial é aquela onde o “ser algo” de algo, que é uma propriedade do algo que se ele não tivesse seria um algo diferente, depende do “ser outra coisa” de outra coisa, que é uma propriedade da outra coisa que se ela não tivesse seria uma coisa diferente, e isso o que “são e se não tivessem seriam outras coisas” é o que pode ser chamado de essência. Outra forma de caracterizar a propriedade essencial é a tratando como uma propriedade que um dado ente possui em todos os mundos possíveis. Mas, se há um conjunto de mundos realmente possíveis, pode-se dizer que há um tipo de propriedade essencial que é aquela que um dado ente possui em todos os mundos realmente possíveis. Considerar esse tipo de propriedade essencial em modelos metafísicos tem a vantagem de eliminar divagações filosóficas baseadas em situações e hipóteses que não há qualquer razão para acreditar que poderiam acontecer, tornando a investigação filosófica mais objetiva e científica. Dado o exposto, é possível dizer que, considerando somente o conjunto dos mundos realmente possíveis e esta Totalidade como a única existente, todas as partes da Totalidade possuem a essência de serem partes desta Totalidade. Uma vez que eles são partes desta Totalidade em todos os mundos realmente possíveis e, portanto, não poderiam realmente ser partes de outras. Reciprocamente, pode-se também dizer que esta Totalidade tem a essência de ser constituída por certas partes e não por outras, pois ela é constituído por tais partes em todos os mundos realmente possíveis. Portanto, observa-se que há entre as partes e a Totalidade uma relação de dependência ontológica essencial simétrica, onde cada parte da Totalidade possui a essência de “ser parte desta Totalidade” — e não de outras — na medida em que a Totalidade possui a essência de “ser constituída por certas partes” — e não por outras.

Ainda nesses termos, pode-se dizer que a relação de dependência entre as partes e a Totalidade pode ser expandida para uma relação de dependência ontológica essencial existencial. Uma relação do tipo é expressa pelos seguintes termos: é parte da essência de x que x exista somente se y existe. No caso da Totalidade, é possível dizer sem controvérsias que é parte da essência da Totalidade que a Totalidade exista apenas se as partes da Totalidade existem. Apesar disso, parece controverso dizer que o contrário também ocorre, já que totalidades, como a da bicicleta, podem deixar de existir sem as partes deixarem de existir; quando ela é desmontada. No entanto, é possível dizer também que é parte da essência das partes da Totalidade que elas existam somente se a Totalidade existe. Cada parte da Totalidade é membro de uma coletividade de partes e parece que, diferentemente do caso da bicicleta, se essa coletividade não existisse, suas partes também não existiriam. A Totalidade no caso não parece ser um ente como uma bicicleta, que pode ser desmontado e ter suas partes intactas em algum lugar, uma vez que isso só é possível no caso da bicicleta em razão de existir um ambiente ao redor das suas peças onde podem ser dispostas e interagir com outros meios. Se a Totalidade é a única que existe, isso significa que ela é “tudo o que existe” e, portanto, ela não pode ser simplesmente desmontada como uma bicicleta, pois, não há um ambiente fora de “tudo o que existe” onde suas partes podem ser dispostas sem prejuízo. Sequer parece fazer sentido, tanto para o senso comum quanto para a ciência, falar em “desmontagem” da Totalidade de tal modo que ela pode deixar de existir enquanto suas partes podem continuar existindo de alguma forma. Falar em “fim da existência da Totalidade” possui intuitivamente um tom escatológico forte, que não parece ter outro sentido senão o de consequente fim da existência de suas partes, isto é, “fim da existência de todas as coisas”. Por exemplo, se o Universo é tudo o que existiu, existe e existirá, falar em “fim da existência do Universo”, intuitivamente, não parece ter outro sentido senão o de escatológico fim da existência de todas as suas partes. Nesse sentido, pode-se dizer que, assim como é parte da essência da Totalidade que a Totalidade exista somente se as partes da Totalidade existem, é parte da essência das partes que as partes existam somente se a Totalidade existe. Havendo, dessa forma, uma simetria nessa relação essencial existencial.

Considerando esses sentidos de dependência ontológica simétrica, pode-se dizer em outras palavras que a essência da Totalidade que está além de todos os seres particulares fundamenta reciprocamente a essência de todos esses seres particulares enquanto partes que a compõem, bem como fundamenta reciprocamente suas existências. Portanto, nota-se que foi possível deduzir um “fundamento de todo ser que está além de todo ser”, apesar desse fundamento não corresponder à visão teísta clássica de Deus. Porém, ele possui um sentido análogo que torna conceitualmente apropriado chamá-lo de Deus, mas, em uma visão panenteísta, onde todos os seres particulares estão contidos na Totalidade fundamentadora, mas a Totalidade fundamentadora é algo além de cada um.

“Fundamento necessário” em uma visão naturalista

Ademais, outra consequência da linguagem dos mundos realmente possíveis, é que, considerando somente os mundos realmente possíveis, a existência da Totalidade pode ser compreendida como necessária. Diante disso, alguns apologistas cristão, como William Lane Craig, defendem que há evidências científicas que corroboram que o Universo possuiu um origem precedida por uma fase onde existia absolutamente nada. Se isso é verdade, o que estamos chamando de Totalidade aqui não é algo cuja existência é necessária, pois, teria existido um “momento” onde qualquer coisa inexistiu. Contudo, primeiramente, é importante destacar que a teoria padrão da origem do Universo — a teoria do Big Bang — não postula algo que surgiu “do nada”. Na verdade, essa teoria apenas postula um primeiro momento de existência do tempo, isto é, um primeiro estado que se retrocedermos a história do Universo vamos encontrar. Ou seja, não se fala sobre uma inexistência absoluta a partir da qual algo passou a existir. Há um modelo em particular do cosmólogo Alexander Vilenkin que descreve a origem do Universo a partir de “literalmente nada”. No entanto, como ele mesmo fala em entrevista, para explicar essa origem a partir de “literalmente nada”, seu modelo matemático precisa assumir que, antes de algo passar a existir do nada, as leis da física já estariam “lá”, “seja lá o que isso for”, em suas palavras. Em outra entrevista, para explicar algo surgindo de “literalmente nada”, ele assume a existência dessas leis da física em “sentido platônico”, em suas palavras. Ou seja, mesmo nessa teoria, pode-se dizer sem prejuízo à linguagem que há uma espécie de primeiro estado, apesar de não ser físico, mas que pode ser chamado de natural por ser formado por leis naturais. Já teorias alternativas a do Big Bang propõem a inexistência de uma origem do Universo, seja através da postulação de ciclos de contração e retração, de um estado estacionário, de um universo espelhado, de eliminação de limites iniciais de tempo e espaço etc. Em todos os casos, se Totalidade é como podemos “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural”, não há razões baseadas em evidências que corroborem a crença de que houve algum “estado” em que qualquer coisa inexistiu.

Diante disso, não é epistemicamente possível que a Totalidade não tenha existido. Assim como não é epistemicamente possível que todas as coisas deixem de existir absolutamente, pois, teorias sobre o “fim” do Universo não falam sobre o fim absoluto da existência, mas tão somente sobre estágios de existência do Universo que podem ser interpretados como “finais”, como a desintegração de todas as coisas à nível atômico, a retração do Universo e consequente retorno a um estado semelhante ao inicial, o aumento de entropia do Universo ao ponto de toda energia ficar uniformemente distribuída e não haver mais a possibilidade de trabalho etc. Em todos esses cenários, coleções de coisas física ou naturais ainda existem, o que significa que não há um fim absoluto da existência. Dessa forma, um mundo possível onde “a coleção de todos os objetos e processos que existiram, existem e existirão de forma física ou natural” inexiste não pertence ao conjunto dos mundos realmente possíveis, o que implica que tal coleção existe em todos os mundos realmente possíveis. Portanto, nesses termos, sua existência é necessária. A implicação imediata disso é que a existência da Totalidade é necessária, pois, ela é formada pela coleção de tudo o que existiu, existe e existirá de forma física ou natural, apesar de que a Totalidade em cada fase de sua historia ter a possibilidade de ser diferente, dentre o que é realmente possível. Ou seja, há a implicação de que uma coisa ter uma existência necessária não significa que necessariamente a coisa não pode ser diferente ou mudar. A única mudança que a coisa, no caso, a Totalidade, não aceita é aquela que faria ela deixar de existir.

Desse modo, sendo a Totalidade necessária, encontra-se um fundamento de todo ser que está além de todo ser cuja existência é necessária, que é o que pode ser chamado de Deus.

Os atributos de Deus

Dado o exposto, a linguagem metafórica surge naturalmente a partir dessa visão panenteísta. Pois, é possível falar coisas como a Totalidade, ou Deus, ser o ser mais poderoso que existe, estar em todos os lugares e possuir toda a verdade do Universo. E esses atributos metafóricos são reservados apenas à Totalidade, não aos seres particulares, suas partes. Dito isso, nota-se que esses atributos são semelhantes aos atributos de Deus no teísmo clássico: onipotente, onipresente e onisciente. Contudo, outros atributos também são semelhantes aos do teísmo clássico. Por exemplo, aqui Deus não é tratado como uma pessoa ou um ente dotado de personalidade, que é como o teísmo personalista enxerga Deus. E no teísmo clássico Deus também não é tratado como uma pessoa ou um ente dotado de personalidade. Apesar de haver sentidos diferentes, tanto aqui quanto no teísmo clássico, é possível dizer que Deus é “mais do que uma pessoa”. Outro atributo semelhante é o da eternidade de Deus. Semelhante ao teísmo clássico, é possível dizer aqui que Deus é eterno, uma vez que a Totalidade nunca começou a existir—já que mesmo que possua uma origem ela é apenas o primeiro estado de existência — e não está contida no tempo, que é na verdade parte dEle; e, portanto, Ele não pode estar contido no tempo.

Contudo, diferentemente do teísmo clássico e se aproximando de reformulações contemporâneas, aqui Deus não é impassível, uma vez que a Totalidade é passível de mudança conforme os seres particulares mudam e vice-versa, sendo isso uma característica aparentemente essencial do panenteísmo. A partir disso percebe-se imediatamente que aqui Deus também é mutável, diferente de Deus no teísmo clássico, que é tratado como imutável. Outro atributo do teísmo clássico negado é o da simplicidade. Enquanto no teísmo clássico Deus é absolutamente simples e não possui partes, aqui Deus é altamente complexo e possui incontáveis partes.

A existência de Deus

Finalmente, pode-se perguntar: Deus existe? Na medida em que Ele é a Totalidade e a Totalidade é tudo o que existe, tecnicamente falando não faz sentido dizer que Deus existe, uma vez que dizer isso equivaleria a dizer que “tudo o que existe” existe; e isso seria circular, pois, ao existir, o conjunto “tudo o que existe” precisaria conter a si próprio. Porém, Deus está aí de alguma forma que a linguagem analítica parece não conseguir descrever sem incorrer em estranhezas e circularidades. Porém, metaforicamente, sim, podemos dizer que Deus existe, mesmo em uma visão naturalista.

Conclusão

Demonstrou-se aqui que naturalistas podem razoavelmente acreditar em Deus nos termos aqui empregados. Apesar de um naturalista poder assumir crença em Deus, isso não é um impeditivo para que ele também possa se identificar como um ateu filosófico quanto às visões tradicionais de Deus. Ademais, um naturalista que esteja tentado a aceitar a validade do argumento aqui proposto também tem a liberdade de aceitá-lo somente como uma argumento a favor de uma explicação naturalista para a existência do mundo natural, sem chamar a Totalidade de Deus, porém, as implicações conceituais quanto à validade de chamá-la de Deus permanecem.

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