Vidas de Lyapunov*
O final de agosto é sempre marcado pela dicotomia brisa-cortante-do-fim-do-inverno/calor-opressor-do-futuro-verão. Um ocupa a noite, o outro, as tardes de céu aberto. É uma fase de mudanças na qual absolutamente nenhuma ruptura ocorre. Os barulhos são os mesmos, as linhas de ônibus mantêm-se inalteradas — exceto um ou outro deslize da prefeitura — , as mesmas pessoas, sempre nos mesmos horários, no ponto de ônibus na frente de casa. Nada muda, por mais que o espectro da mudança continue a rondar o ambiente.
Misturam-se, também, os calores e os frios do coração. Cavidades outrora vazias, encontram-se, agora, preenchidas; ao mesmo tempo, aquelas que um dia estiveram repletas, hoje estertoram em busca da última golfada de sangue que poderia um dia preenchê-las. As noites são especialmente complicadas. A constância do perene contrasta com a novidade do inesperado. Não era assim. Por que agora é? Não tem resposta. Ao contrário da transição entre inverno, primavera, verão e outono. Estas estão previstas há anos, décadas, séculos, milênios. Mas mesmo nessa previsibilidade, a imutabilidade não é uma garantia.
Knausgaard disse que o coração bate enquanto puder, e então, pára. Mas não é bem assim. O coração é um dos mais belos exemplos de Caos existentes no nosso dia-a-dia. Não o Caos romântico, tão vilipendiado na literatura nos últimos tempos, tão mal utilizado. Ao menos não ainda. O Caos sincero, verdadeiro. O coração depende de parâmetros. De fatores externos, de condições iniciais.
Se os pulsos elétricos que regem a movimentação do coração fossem regulares, seguindo um domínio determinístico, nós jamais conseguiríamos agir em situações de tensão. Se o coração sempre batesse a 80bpm, você não conseguiria ter uma atitude rápida o suficiente para salvar a sua vida em um momento de vida-ou-morte.
Do mesmo modo, se o ritmo do coração fosse completamente aleatório, você poderia ter um ataque cardíaco a qualquer momento, quando menos espersse. A bem da verdade, acontece. Acontece nas melhores famílias. E nas piores. Em sedentários. Em atletas. Deve haver algum motivo, mas prefiro imaginar que seja aleatório. Ao contrário dos batimentos do coração.
Porque os ritmos do coração são absolutamente caóticos. Podem ser modelados com perfeição por modelos de osciladores harmônicos forçados e amortecidos. O nome pode ser pomposo, mas isso só quer dizer que nosso coração nada mais é do que uma porta hidráulica daquelas de shopping, meio defeituosas, que às vezes aceleram enquanto fecham, empurrando-nos, e às vezes simplesmente param no meio do caminho, sem ter terminado sua jornada. Parece até pessoal.
Enfim, os movimentos cardíacos são caóticos em que pese existirem inúmeras variantes que ditam seu funcionamento. Qualquer mínima alteração nos níveis de adrenalina pode dizer se o seu coração está se preparando para lutar até a morte ou para correr até a exaustão. Uma ligeira flutuação nos níveis de dopamina pode determinar a diferença entre a leveza prazerosa ao fim de um exercício e uma enchente de tesão liberada ao se sentir excitado por qualquer foto de um catálogo de lingerie que sua avó deixou em cima da máquina de costurar.
Qualquer pequena perturbação nos níveis naturais do corpo podem significar a diferença entre a vida e a morte, nossos momentos de inefável prazer e nossas lesões.
Mas o que caralhos isso tem a ver com o final de agosto, porra?
Aí entram as sutilezas do universo: O nosso coração é tão caótico quanto as órbitas dos planetas, a previsão do tempo, a determinação do crescimento populacional e basicamente o que mais quer que exista na natureza. Pois nada é perfeito. Tudo tem o seu quê de absurdez, de antiintuitivo. “Imagine que chatice seria para os deuses se fôssemos perfeitos? Quantas belezas não existem nas imperfeições?”, Fresán acertadamente contou, No Fundo do Céu, do seu céu, do nosso céu. Apesar do azul do seu céu ser diferente do azul do meu céu.
E, da caoticidade das órbitas planetárias, advêm os eclipses, os pontos de LaGrange, os Gregos e Troianos que acompanham, inequivocadamente a órbita de Júpiter. Os anéis de Saturno, imagine você! As mais belas estruturas existentes no universo não passam de pequenos frutos de uma coincidência de fatores e condições a priori aleatórias que nos levaram a isso. São janelas de periodicidade dentro de um inexorável mar de caoticidade, como aquele solitário raio de sol que perfura, fremente, as gordas, voluptuosas e plúmbeas nuvens de chuva.
Pode ser, também, uma irresponsável dose de tequila no dia em que a conheci, assim como uma irresponsável perturbação gravitacional que iniciou o colapso de um grão de poeira em corrotação com vários outros, de modo a formarem um planetesimal, que deu origem a um planeta, que deu origem ao sistema solar e que, por algum motivo deveras absurdo, deu origem àquela noite.
Talvez, num universo paralelo, deste planetesimal, devido a uma perturbação externa, eu teria tomado cachaça, e não tequila, antes de te conhecer. Ou nunca teria te conhecido.
Poderia ser, mais certamente, que ninguém jamais tivesse o privilégio, que não considero tão bom quanto a palavra indica, que hoje temos de ver o mundo desabar, aos poucos, devido a impulsos humanos aleatórios. Ou seriam caóticos?
Tudo poderia ser. Porque, no final das contas, Einstein estava errado. Deus joga dados, sim. Se tem uma coisa que Deus faz, é jogar dados. E isso ele fez, faz e continuará a fazer com maestria. Acho que faz parte da graça de ser o operador do simulador Universo 2893721, mais um entre os milhares de multiversos.
Pois se não jogasse, não teríamos as janelas de periodicidade ao longo do ano. Não teríamos a certeza do frio cortante em Julho e nem da brisa agradável da primavera em setembro. O que, de certa forma, deixou há muito de ser uma certeza. O certo agora é a cerveja do fim de semana, ou o arrependimento por uma decisão tomada dez, vinte anos atrás. O resto é só incerteza ou ideia errada.
A gente nunca sabe quais foram as condições iniciais. Tampouco sabe qual o domínio da zona caótica. Mas a gente sabe que sempre vai ter uma janela de estabilidade. Ela pode ser agora. Pode já ter sido. Pode estar ainda por vir. Afinal, a velocidade de difusão não tem fórmula fechada.
- “Lyapunov” refere-se a Aleksandr Lyapunov, Matemático e Físico Russo cujos desenvolvimentos foram fundamentais pra fundamentação da teoria da estabilidade dos sistemas dinâmicos não lineares, conhecidos como sistemas caóticos. O caos esconde suas belezas, assim como nossos medos. Mas é a única garantia que temos pro resto do universo. O Caos rege tudo.