Filme: Kwaidan — As Quatro Faces da Morte (1964)

Direção: Masaki Kobayashi

Gabriel Vince
7 min readMar 26, 2017
Kwadan — Pôster

Kwaidan é um longa-metragem japonês de 3 horas que são divididos em 4 filmes de terror sobre fantasmas.

Primeiro filme: O Cabelo Negro.

Esse filme é uma adaptação do conto “A Reconciliação” de Patrick Lafcádio Hearn, um escritor grego que se naturalizou japonês e adotou o nome de Koizumi Yakumo. Ele é especialmente conhecido pelos japoneses devido às suas coleções de contos de fadas.
Aqui temos um jovem samurai de Kyoto, que havia sido reduzido à miséria pela ruína do seu senhor. Jovem e não aguentando a pobreza, ele resolve abandonar a esposa que ama para se casar com a filha de uma família com maior distinção. Com o passar dos anos, sua infelicidade aumenta inversamente proporcional a saudade que sente da sua antiga e gentil esposa.
Então, arrependido, ele resolve voltar a Kyoto para reencontrar sua esposa — e retomar a vida. [SPOILER] Ao reencontrar, ele a vê como se não tivesse envelhecido. Se desculpa pelo ato pecaminoso e ambos passam a noite junto, falando sobre o futuro, o presente, o passado — até adormecerem. Quando ele acorda, vê que estava dormindo ao lado de um cadáver apodrecido — e que a noite passada, conversava com um fantasma. Desesperado, ele começa a correr pelos cantos da casa, enquanto seu corpo vai desconfigurando numa forma assustadora.
Essa história, de um profundo valor moral. Aqui se reflete o valor do legítimo matrimônio e os perigos da ambição e da vaidade.
Ela é contada de uma forma magistral, sem rodeios ou floreações desnecessária e, o mais importante, respeitando profundamente os intentos originais do autor.

Segundo filme: A Mulher da Neve

Aqui temos outra adaptação de um conto de Hearn, presente no livro “Kwaidan: Histórias e estudos de coisas estranhas”, que apresenta várias histórias famosas japonesas sobre fantasmas.
Aqui a história versa sobre a conhecida lenda de Yuki-onna, um espírito ou Yokai (demônio, no folclore japonês), que, assim como as sereias do folclore ocidental, é uma mulher bela e jovem, que aparece para seduzir os homens e conduzi-los à perdição ou à morte.
Ela normalmente se manifesta em meio as nevascas e conduz os homens a se perderem e morrerem congelados.
Frequentemente os homens se apaixonam por elas, chegando até a se casar e constituir famílias — tendo filhos, inclusive. Entretanto, a história de amor sempre finda com o desaparecimento dela num dia de maior bruma ou de tempestade, provavelmente quando o chamado de seu mundo se torna mais forte.
É exatamente isso que é filmado aqui. O filme começa com dois lenhadores perdidos numa tempestade de neve. Ao encontrarem abrigo, ambos se dirigem a ele e passam a noite, esperando as intempéries amenizarem. Enquanto um adormece, o outro se mantém em sentinela e testemunha uma misteriosa mulher vestida de branco, deitar sobre seu amigo, que morre em seguida.
Ao ver que foi observada, a misteriosa mulher de branco se dirige ao lenhador que estava acordado e lhe propõe um pacto: deixaria ele viver, desde que ele guarde absoluto segredo do ocorrido.
Passa-se um tempo, o lenhador sobrevivente e se recupera de uma doença. O trauma do fato se desvanece — ao ponto do mesmo não saber se o que aconteceu era real ou apenas um sonho. Então, o lenhador volta a sua rotina.
Certo dia, voltando para casa, num dia de trabalho normal, ele conhece uma bela jovem no caminho, que andava pelo local. Com o tempo, ele se afeiçoa a moça e ambos se casam e tem três filhos. A mulher fica conhecida na aldeia, como uma boa, bonita e gentil esposa — fazendo o lenhador um homem feliz.
[SPOILER] Em uma noite agradável, enquanto ela costurava um quimono, ele percebe que o rosto dela, em determinado ângulo e em determinada luz, se parecia muito com o rosto da misteriosa mulher que ele viu na neve, e que matou seu amigo. Ele relata isso a ela de forma informal, mas um pouco estupefato, e acaba por contar toda a história, revelando a sua esposa o que tinha acontecido na fatídica noite, mesmo não sabendo exatamente se o que aconteceu foi real ou não. A sua esposa então revela sua identidade: ela era a mulher da neve. Furiosa com ele, por ter quebrado o pacto, ela promete matá-lo, mas, por misericórdia aos filhos, ela o poupa, desde que este cuide bem deles. Sentindo-se traída e não encontrando mais lugar em seu mundo, ela o abandona para sempre.
Mais um filme magnífico buscando as instigantes lendas do folclore japonês.
A cenografia magnífica e iluminação estonteante faz que esse filme tenham cenas que parecem verdadeiros quadros. O céu é pintado, com desenhos meio “vangoghianos”, cheio de olhos gigantescos e ameaçadores a fitar os pobres andarilhos. A iluminação varia de cores quentes, para dias mais felizes e azuladas frias para momentos de terror e tristeza, usando com maestria a psicodinâmica das cores.
Filme tão belo, quanto interessante.

Terceiro filme: Hoichi, o “sem-orelha”

Outro conto de Hearn, retirado do “Kwaidan: Histórias e estudos de coisas estranhas”. Aqui temos a lenda de Hoichi, o “sem-orelha”. De acordo com a lenda, Hoichi era um menestrel cego, um tocador de biwa — que vigiava um templo budista construído próximo a um cemitério. Tocadores de biwa em templos budistas, durante determinado período no Japão, tinham uma função específica, com significado religioso, conhecidos como “sacerdotes de alaúde — mas eram especialmente artistas que tocavam e recitavam histórias para platéias distintas. Um paralelo ocidental se pode fazer com os bardos na Europa medieval.
Hoichi era conhecido por performar brilhantemente o “Conto dos Heike”, um relato épico sobre a luta entre os clãs Taira e Minamoto pelo controle do Japão no final do século XII, durante as Guerras Genpei (1180–1185). A performance de Hoichi era conhecida por deixar os ouvintes comovidos, a ponto deles verterem copiosas lágrimas durante sua execução.
Hoichi era deixado sozinho no templo a noite, e era visitado por um samurai, que dizia que um nobre, seu senhor, ouviu sua fama e queria ouvir sua performance. Hoichi, então, era conduzido ao palácio do nobre para executar suas peformances musicais — durante toda a noite.
[SPOILER] Tanto o samurai, quanto os palacianos eram espíritos — pessoas que morreram durante as Guerras Genpei. O palácio, o qual Hoichi adentrava era na verdade o cemitério próximo ao templo.
Os sacerdotes do templo, estranhando as saídas de Hoichi à noite, resolvem segui-lo e descobriram que ele era conduzido por um espírito até o cemitério.
No outro dia, ao alertá-lo do perigo de ser amaldiçoado e destruído pelo espírito, eles resolvem protegê-lo, pintando em seu corpo o “sutra do coração” e recomendando a ele que, da próxima vez que ouvir o chamado, não responder — ele deveria ficar em posição meditativa e resistir as tentações do chamado.
Hoichi passa a noite seguinte obedecendo os sacerdotes e resistindo os chamados do espírito. Devido ao seu corpo inteiramente pintado pelo sutra, o espírito não conseguia enxergá-lo. No entanto, os sacerdotes esqueceram de pintar o sutra nas orelhas de Hoichi. O espírito, que apenas via as orelhas, resolve arrancá-las.
Apesar de seu ferimento, a provação de Hoichi o livrou do poder do espírito. No filme, no entanto, outros espíritos voltam e Hoichi resolve, em vez de fugir, acalanetá-los com seu canto — pois os espíritos queriam ouví-lo para terem seu momento de descanso.
Mais um conto muito bem executado pelo diretor — obviamente o mais musical de todos. É interessante ver a interpretação belíssima de Hoichi do “Conto dos Heike”, enquanto pinturas das Guerras Genpei são mostradas. A primeira parte do filme é simplesmente sensacional.

Quarto filme: Na Xícara de Chá

Adaptado de outro conto de Hearn. Aparentando uma história inacabada, aqui temos um escritor que está antecipando uma visita da editora e escreve uma história sobre um samurai que, vê o rosto de um homem estranho em uma xícara de chá. Aparentemente a história mais simples, mas com uma complexa metalinguagem em que o próprio escritor se vê dentro da história e é aprisionado na xícara de chá. A história que fala da história dentro de uma história. Confuso, mas instigante.

Kwaidan — As Quatro Faces da Morte, é um filme brilhante e que reverencia o lado mais obscuro do folclore japonês.
Nota 10.

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Gabriel Vince

Escrevo sobre música, cinema, política e o que der na telha.