Uma vida coberta pelo óleo: a história de um pescador artesanal após a tragédia ambiental

Neste 29 de junho, Dia do Pescador, os relatos de José Reis, que dedica a sua vida à pesca, se tornam ainda mais necessários.

Gabriela Rosa
9 min readJun 29, 2020

Manchados pelo óleo

Quando as primeiras manchas de óleo surgiram no litoral sul de Sergipe, tudo ainda era uma grande novidade. Na manhã do dia 4 de outubro de 2019, José Reis lembra de ter acordado com a notícia de um futuro incerto: o óleo havia chegado na Coroa do Meio, bairro aracajuano onde o presidente da Associação de Pescadores morava desde pequeno.

“… quando ela [mancha de óleo] chegou, as reportagens começaram a falar dos prejuízos que a gente ia ter futuramente. Todos o pescadores ficaram com medo, porque ela foi se espalhando.”

No final de dezembro de 2019, novecentos e oitenta localidades já haviam sido afetadas em todo o litoral brasileiro. Não se tratava de um fato isolado e o Nordeste já não era mais a única região com registros de seu aparecimento. Dos estados de Pernambuco, Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe; as manchas avançaram também para a região Sudeste, em localidades do Espírito Santo e Rio de Janeiro.

Os números contam sobre a dimensão do desastre: até fevereiro de 2020 foram 159 ocorrências de fauna oleada e 112 destas eram de animais mortos; cerca de 4000 km de extensão da costa foi atingido e mais de 5000 toneladas de resíduos foram recolhidos.

Em Sergipe, o governo chegou a decretar situação de emergência. Mil metros de boias foram utilizados para bloquear o avanço das manchas, os órgãos ambientais solicitaram voluntários para limpeza das 17 praias sergipanas afetadas, banhistas foram orientados a evitar o banho de mar e o contato com o material que poderia causar reações alérgicas ou irritações na pele.

Quase nove meses após o aparecimento das primeiras manchas, a origem do óleo segue desconhecida e o silêncio grita alto entre os que tiveram a dinâmica de suas vidas afetada. Além do turismo, da fauna e da flora, o óleo ameaçou quem vive da pesca e da mariscagem.

Os que disserem sair ilesos desse crime ambiental, certamente não são pescadores ou pescadoras, não são marisqueiros ou marisqueiras, não sofreram na pele, não sofreram no bolso, não tiveram o trabalho afetado, não tiveram o rio manchado, não viram o mangue coberto de óleo e suas expectativas quebradas logo que lançaram a rede ao mar e só o que veio foi petróleo.

Há quem possa dizer que saiu ileso desse crime ambiental, mas esse não é o caso de José Reis.

Na pele do afetado

Às quatro horas da manhã, José Reis já está acordado. Todos os dias.

Levanta, enche os tuneis e sai regando as suas plantas. Diz que do estado de Sergipe inteiro, ele é o “que mais tem!”. Só não gosta de quem sai puxando e quebrando seu jardim. Nunca negou uma planta sequer a ninguém que tenha pedido: “Se alguém pede, eu digo: leve! Não vou empobrecer por conta de 10 ou 20 contos”.

Seu Reis ou Irmão Reis, como prefere que o chamem, no mangue da região da Coroa do Meio em Aracaju.

Seu Reis tem a fé como aliada desde pequeno. Trabalha de domingo à sexta, mas costuma guardar os sábados para descansar. Quem é próximo, sabe que ele também gosta de ser chamado de Irmão Reis.

Nasceu em São Cristóvão, no povoado Colônia Miranda, e aprendeu a pescar com os pais. Aos dez anos, atravessava o rio Itaporanga levando pescadores na canoa para trabalhar. Chegou em Aracaju ainda criança, no ano de 1984. Quase três anos depois foi morar no bairro Coroa do Meio e nunca mais saiu. No início, morava em palafitas. “A maré vinha, mas não maltratava, a gente ficava em cima do maderil”.

A pesca tornou-se sua aliada quando ainda era criança, desde então nunca deixou de ser pescador. Em 2014 decidiu que poderia fazer mais por sua comunidade, tornou-se presidente da Associação de Pescadores do seu bairro e ocupa essa posição até os dias de hoje. Reconhece a responsabilidade que possui e a luta que tem que travar para exigir pelos direitos dos seus.

Há seis anos à frente da Associação, Irmão Reis aproximou os pescadores e fez deles uma comunidade.

Há quem se identifique: tem família, tem filhos, tem contas para pagar… tem uma vida. Quando o óleo chegou, parar de trabalhar não era opção, nunca foi. “A barriga não espera”.

Aos 59 anos, José Reis sabe bem o que é ser pescador. Sabe que a pesca é um sustento e que o seu território é sagrado. Tira da natureza somente aquilo que precisa para sobreviver. Diz que da vida, só guarda o amor…

Problemas são atemporais

A história dos pescadores está manchada por um óleo que não tem dono, mas teve destino certo: os territórios de vida, que foram os mais afetados.

Seu Reis compreende que notícia ruim não espera bom tempo para aparecer e que os problemas são atemporais. A chegada do óleo não foi a primeira e talvez não seja a última adversidade enfrentada pela comunidade de pescadores da Coroa do Meio, na capital sergipana.

Entregue à boa vontade dos governantes no aguardo de ações em prol da comunidade, José Reis convive com o descaso das autoridades antes mesmo das manchas chegarem aos rios e mangues. É uma vida marcada pela espera, pela invisibilidade dos problemas que afetam cada detalhe das rotinas desses pescadores e pescadoras; pelo racismo ambiental que impede que essas pessoas tenham seus direitos assistidos e questões como a falta de saneamento e assistência social solucionadas.

As falhas em saneamento básico no bairro e um rio limpo, longe do esgoto, são preocupações recorrentes.

“Nosso ‘maravilhoso’ governo, em vez de colocar o esgoto no local que merece ser colocado, coloca dentro do rio. Não é só em Sergipe, é no Brasil. Eu nunca fui no rio Tietê, mas dizem que é nojento por causa disso.”.

A poluição no rio Sergipe preocupa pescadores e marisqueiras que têm a atividade como sustento familiar. Seu Reis conta que algumas espécies de peixes sumiram com o tempo e que tem “mangue morrendo”, porque colocaram areia no local. “Quem alimenta o mangue é a água e a lama. Ele se viu só com areia, não tem mais alimento. Vai fazer o quê? Vai secar.”

Tem areia no mangue, tem petróleo no mangue… Na cidade rodeada de mangues, parece ironia que não saibam o seu valor. O petróleo cru manchou o rio, o mangue, os peixes, os mariscos, as redes de pescas e a dinâmica de vida das comunidades tradicionais.

Do pouco que resta do mangue na Coroa do Meio.

Quanto vale o pescado?

O futuro de quem vive da pesca artesanal pode ser tão incerto quanto a origem do óleo que manchou o litoral brasileiro. Cerca de 20 mil pescadores e marisqueiras foram afetados pelas manchas que chegaram à Sergipe no início de outubro, mas até dezembro de 2019 apenas 7 mil estavam previstos para receber o auxílio pecuniário emergencial pago pela União para que pudessem substituir a renda por estarem impossibilitados de exercer a atividade profissional.

Pedidos de socorro puderam ser ouvidos em audiências realizadas na capital para tratar dos impactos da tragédia nas comunidades tradicionais. Houve denúncias sobre os atrasos no recebimento do seguro-defeso e a cobrança para que não faltassem olhares sobre a situação de negligência em que estavam vivendo.

Não somente o meio ambiente havia sido fragilizado. Essas comunidades estavam à espera de uma ação do poder público ou privado para que seus direitos pudessem ser assegurados após tantas violações sofridas em decorrência de um desenvolvimento econômico que nunca chegou, de fato, em seus lares.

José Reis conta que as primeiras remessas de dinheiro chegaram em meados de dezembro. Duas parcelas do auxílio emergencial foram destinadas aos pescadores artesanais que tiveram suas atividades paralisadas por um crime sem dono.

“Qual o seguro de 900 reais para um pai de família?”

Ele conta que para se manterem, muitos pescadores precisam buscar outras formas de trabalho: “Um vai buscar uma latinha, outro vai trabalhar de servente de pedreiro… porque nenhum ser humano tem uma só profissão”.

“Paguei um preço, porque nunca aprendi a fazer nada a não ser pescar. O pescador que vive só da pesca é mentiroso. Chegava o tempo de fazer o aniversário de meus filhos e eu nunca pude, pescador não tem condições. Tem pai de família chorando até agora, porque não pode repor a rede que perdeu [por conta do óleo grudado]. O [dinheiro] que pega é para comprar feijão, para comprar farinha, para pagar água e luz, pra comprar botijão…”

Os vestígios do óleo na rede que não vê mais peixe.

A pesca vira trabalho de sobrevivência e não garante uma qualidade de vida. Os ganhos econômicos e a saúde no trabalho são reduzidos por questões que antecedem o aparecimento do óleo, mas que ganham maiores proporções desde a sua chegada. Os pescadores são reféns da contaminação que atinge o território em que vivem e buscam outros ofícios para complementar a renda, com risco de perderem o direito ao seguro-defeso.

Se o tempo é ruim, a luta é contínua

A rotina que sempre foi e sempre será pelas águas.

Em casa de pescador não falta peixe, nem caranguejo, siri, guaiamum ou aratu. Nas reuniões da Associação de Pescadores da Coroa do Meio, Seu Reis também não deixa faltar o café. Se o encontro for ao meio dia, tem almoço. Pode faltar quase tudo, menos cuidado entre os seus.

Em 2005, uma amiga disse que ele poderia ser presidente da associação do bairro, mas ele duvidou, falou que não sabia ler bem. Em 2014, assumiu a presidência. Trabalha com colônias e diz que dá ao pescador aquilo que também quer receber: “O direito. Alguns não sabem que tem, não conhecem”.

O histórico de resistência das comunidades tradicionais perpassa por lutas quase nunca vencidas e marcadas pelo racismo ambiental. A chegada do óleo não foi o início e nem será o fim de injustiças ambientais sistêmicas sofridas por essas populações. Da mesma maneira que evidencia as falhas das políticas ambientais, a tragédia mostra que o desenvolvimento e progresso são excludentes para muitos, construído a partir de relações de opressão com as comunidades tradicionais e desrespeito com o meio ambiente.

Seu José vê do barco, enquanto navega o Rio Sergipe, o progresso defendido pelas autoridades. Não nas comunidades do bairro em que mora e nem na Associação de Pescadores, mas sim nos bairros de luxo e avenidas modernas que contrastam com o seu território. Esse desenvolvimento que busca o aumento da atividade econômica e que propõe a verticalização da cidade, é o mesmo que fecha os olhos para garantir os direitos e uma vida digna àqueles que são a base dessa cadeia produtiva.

De um lado do rio, o barco de Seu Reis, do outro lado, os prédios de luxo dos bairros nobres de Aracaju.

Em meio a essas desigualdades de privilégios, o rio foi contaminado, o mangue sufocado, a pesca foi paralisada. Quando o óleo chegou no litoral, a economia popular foi atingida, o turismo foi reduzido, o consumo de peixes e mariscos criava insegurança. A renda foi comprometida e as vidas dessas populações foram expostas aos riscos da contaminação. Pescadores e pescadoras artesanais reconhecem suas singularidades e encontram na coletividade a força para enfrentar essas problemáticas.

Quando vão realizar suas atividades, alguns partem rio adentro e escutam o silêncio. Outros entram no mangue e cantam para aliviar as dores do ofício. Há quem pesque sozinho, há quem marisque acompanhado. Vice-versa. No final do dia, quando o tempo não é de óleo e eles têm sorte, a canoa volta cheia de peixe e os baldes em cima da cabeça cheios de mariscos. Em casa, o trabalho não termina, a família se junta para limpeza do que foi conseguido.

Anoitece. Amanhece. A mesma rotina. Se for 4 horas da manhã, Seu José Reis já está de pé e suas plantas estão sendo regadas.

A luta continua, o dia nasce de novo, outra vez.

Para conhecer um pouco mais sobre a vivência de pescadores e pescadoras artesanais, escute a edição “O que é pesca artesanal?”, do Programa “Vozes da Pesca Artesanal” realizado pelo Núcleo de Estudos, Humanidades, Mares e Rios (Nuhumar) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Texto e edição: Jhennifer Laruska / Imagens, edição de vídeo e de fotografias: Gabriela Rosa / Repórteres: Aíla Cristhie, Gabriela Rosa e Jhennifer Laruska.

Link para fotografias aqui.

*Reportagem desenvolvida por alunas do 4ª período do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Sergipe (UFS) durante a disciplina de Jornalismo Digital ministrada pela Profª Dra. Messiluce da Rocha Hansen.

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