(saiu na Época em janeiro/2020)
Na minha primeira tarde em Gondwana, uma reserva de vida selvagem ainda em formação, a oeste da Cidade do Cabo, perto de Cabo Agulhas, fazia frio de um jeito que nunca imaginei fazer no continente africano. Eu estava esquentando as mãos com uma xícara quente de chá rooibos e abri a porta da minha cabana para ver o sol se pôr. Sentei no degrau da frente e fiquei vendo o sol gigante descer devagar por cima da cadeia de montanhas, quando entrou no meu campo de visão um gnu azul, um dos animais que vagam livres pela reserva. Foi seguido por outro e logo eram uns seis gnus, como cavalos gigantes, cinza-azulados, que não tomaram conhecimento de mim, do chalé ou do vapor do chá. De repente uma revoada de pássaros cortou o céu, o zumbido de insetos parou e algo se agitou num arbusto. Os gnus correram pra longe. …
não é meu melhor dia. estou irritada por não ter me preparado direito para algo que sei que sei fazer. tenho um apagão de nervoso logo na entrada, a câmera ligada e eu incapaz de lembrar o que tenho pra falar. me distraí com o fato de tenho duas câmeras e não sei para qual olhar. espero a diretora falar no ponto, assim quem sabe o fone, gordo demais dentro da minha orelha pequena, sirva pra alguma coisa. mas não chega nada além de ruído. acho que meu apagão dura menos que uma fração de segundo. uma das colegas convidadas para o painel me olha espantada, com cara de “vai gata, acorda” e essa é minha deixa pra começar a falar rápido qualquer coisa, algo como meu nome, os nomes das colegas de palco e então ah-que-legal-gente-falem-aí e seja o que a deusa quiser. só depois que elas começam a falar eu lembro que não disse nem o nome e nem o assunto do painel, informações que conheço há pelo menos um mês e que estavam anotadas na pauta que preparei no pequeno caderno que tenho nas mãos. mas já perdi o tempo. boto a culpa no fato de que não almocei. …
Não é possível negociar com o tempo. Ele sempre vai passar por cima de absolutamente qualquer coisa: suas alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, na saúde e na doença. O tempo faz pouco caso de nossas artimanhas para tentar alterar, mexer com ele de alguma forma. O tempo aceita, no máximo, o registro. Tempo pode até ser uma convenção social, algo que tem a ver com registros humanos e que varia de acordo com a Linha Internacional de Data. Mas os ritmos circadianos se impõem, sempre, para todos, em qualquer época, e o tempo, portanto, passa. E passa indiferente.
O tempo não é uma ilusão, não quando a gente olha no espelho todos os dias. É no rosto que mais se enxerga o tempo passar. Nas mãos, nas coxas, nos peitos e em outras partes também, mas nada marca tanto a passagem do tempo quanto os rostos das pessoas. Depois de uma certa idade (tenho usado muito essa expressão, é coisa de "idadismo"?) é esperado que se tenha amigas e amigos há mais de quinze, vinte anos. Tenho pessoas na minha vida que não são família e que conheço há três décadas. A passagem do meu tempo está nesses rostos. Não pergunto, não aponto, não tenho coragem de comentar que os olhos estão marcados, que a barba ficou branca, que boca está caída. Me faria lembrar que o mesmo acontece comigo. Insisto que posso aprender a gostar, quem sabe gostando do envelhecer do outro eu posso gostar também do meu. Mas o que está por fora é de menos. Me vejo lidando com questões de idade e explicando para amigas mais novas o que elas ainda não podem entender: que nem importa tanto as dores nos ossos ou as ressacas de três dias, o que apavora mesmo é uma ansiedade nova, fortíssima, uma ansiedade sobre o tempo ser finito. …
(do Life Without Buildings*)
Sorrow, no
Sorrow, no
Causing you sorrow, no
Don’t smoke in bed, with me
Sorrow, no
Sorrow, no
Causing you sorrow, no
Don’t smoke in bed, with me
Your phone calls, don’t think they’re wearing me out, they’re not
But I’m mostly english, mostly english
Difficult people slip away
Feeling that way about difficult people
Feeling that way about difficult people
Slip away, slip away
You’re beautiful but slip away
You’re beautiful
Hearing you through the door, fast
Slip away
You’re beautiful but slip away
You’re beautiful but you’re gonna slip away like that
Feeling that way about difficult people
Come close to the phone
Closer to the phone
Should I, same time, don’t keep me
Should I, same time, don’t keep me
A friend from the 11th
Make up your mind, make up your mind
Make up your higher
You’re higher the first time
You’re higher too many days since
We’ve met before, don’t be disappointed
We’ve met before, don’t be disappointed
Keep, don’t keep me
It’s the new past
It’s the new past
Holding you is like the new past
Holding you is like the new past
What’s go, what’s go, I’m not leaving
W w the many ways, the many many ways
Yeah, talking so like that
Talking so like that
The many ways, the many w-w-ways
The many ways, the many ways
S l, the many ways
Eyes like lotus leaves, no not even like
Lotus leaves
Eyes like lotus leaves, no not even like
Lotus leaves
The many ways, the many w-w-ways
I see the many ways, ha ha
See things sure
Eyes like lotus leaves, no not even like
Lotus leaves
Eyes like lotus leaves, no not even like
Lotus leaves
The same, make it remind
The many ways, the many w-w-ways, the many ways
Eyes like lotus leaves, no not even like
It’s quite decided how the boy can figure
It’s quite decided how the boy can figure
V-v-v-v changing it, two beats and the boy can figure
Everything going that way, I found you
It’s quite decided how the boy can figure
Two beats and the boy, the sun, the m, the sun, the m
It’s ok calling, it’s o
Two beats and the boy can, finally
I thought about you to like the ninth degree
I thought about you to like the ninth degree
Two beats and the beautiful and chequered, the end
Beautiful and chequered, e fade, e fade
Beautiful, close the door
Beautiful and chequered, fifty
Beautiful and chequered, e fade
She came in under
She kept things happen in a silent way
I’m better like this in a silent way, I’m for your love
I left it, I’m sure
You set the scene
I should, but you set the scene
I can dance, missed that loop but I can dance, ch ch
I can, you set the scene by chance
Is there something? …
É preciso dar adeus ao futuro que não teremos. Eu, você, todo mundo. Parar com essa bobagem do “quando isso passar”.
“Isso” o quê? “Isso” é um vagalhão. "Isso” não dá conta de tudo que teremos que passar para vermos uma geração otimista de novo — a praga, a vacina, o fascismo, a crise climática.
É preciso parar com a nostalgia quentinha da passividade e do cinismo dos anos 2010. Encarar o crepúsculo daquela vida muito hedonista e muito cosmopolita.
Mesmo que eu e você sejamos capazes de sobreviver até a pós-pandemia, contando com uma vacina eficaz, desenvolvida e distribuída em tempo recorde, ainda teremos que lidar com o fascismo instituído e aprovado pela maioria da população. Essa bad trip escrota não vai embora com arte de rua, não tá nem aí pro seu minuto de silêncio, pra cultura, pro Carnaval, pra frente ampla. A narrativa campeã quer mais é que todo mundo se foda real e inclusive prefere que morra mais uns cem mil, assim sobra mais espaço. E se chegarmos vivos para ver o fim desse terror que nos lidera, o que vai levar por baixo uns vinte anos, aí será hora de olhar pra um mundo quente, seco e estéril — a crise mais grave, a do clima, aguarda pacientemente a nossa atenção. …
Faz tempo que não choro de verdade. Não aquela choradinha marota no banho, essa tem acontecido. Falo daquele choro dramático quando o peito dissolve em espasmos. Choro de turvar a visão. Normalmente eu choro bonitinho, um choro de moça passível de filmar e publicar no Instagram. Mas ando precisando de outro choro, catarrento, barulhento, feio. Aquele choro de verdade que não se reparte com ninguém. Quero, mas não sei como começar.
O desânimo ao acordar é rotina. Mais uma vez um dia igual a ontem, idêntico a amanhã. Aos poucos vou parando de fazer o pouco que sempre gostei de fazer. Pra quê? Esperanças diversas foram sendo largadas até que, finalmente, seis meses depois de “tudo isso aí” começar, acordo com o sol e penso se finalmente chegou o dia em que não vou mais sair da cama, porque todos os dias são iguais e alguns são piores. …
Efeito da pandemia: achei que era feliz por morar aqui. Não sou. Enchi a boca pra dizer “moro na Paulista” como se isso representasse algum tipo de conquista e essa conquista agora me faz sentir trouxa.
É verdade que amei a vida citadina e que minha certidão de nascimento sempre será paulistana de origem meio caipira e meio europeia. Paulistana de família meio malufista, meio tucana. Paulistana meio arrogante, meio gente fina. Paulistana que morou em muitas partes e só se sentiu em casa no centro expandido. Agora, enfim, paulistana com urgência de ir embora.
Já tentei ir embora e voltei. Na época não fui longe o suficiente, incapaz de cortar laços afetivos, profissionais e familiares. Não enxergava a vida lá na frente. Hoje enxergo, me vejo na cúspide entre duas metades de vida e não quero que a segunda metade seja parecida com a primeira. Depois de ter vivido (aproveitado muito, sim, mas nem sempre) a vida urbana, essa coisa de melhor cidade da América do Sul, talvez agora eu queira algum idílio. Talvez eu mereça. Talvez eu só esteja profundamente entediada com essa falta de tudo durante a quarentena estendida sem previsão de fim, vivendo dias repetidos e morosos onde cuidar da própria vida, quem sabe ler e escrever no caminho, é tudo que existe. Talvez eu esteja influenciada pela minha mãe, pelo meu pai, pela minha irmã, pela minha tia e por uma porção de amigos mais espertos do que eu que já foram ou estão indo embora. Talvez queira desafiar o magnetismo de São Paulo. Talvez esteja me preparando para ter uma segunda chance em Oaxaca, Navarino, Veneza, Portland, Cochin. …
Você abre o Instagram e não desce a timeline para ver as imagens dos amigos — não. Antes mesmo de começar a ver os quadrados com rostos, paisagens, anúncios e memes, você vai ali no canto inferior direito da tela do aplicativo e clica no coraçãozinho que indica a lista de likes e comentários que suas postagens receberam. Depois volta para o ícone do lado esquerdo, uma casinha, e localiza sua própria imagem lá no canto superior: é a partir dos seus próprios Stories você vê a lista de pessoas que viram as suas postagens. …
(para Hysteria em 10/2018)
Nunca pensei que fosse chegar aqui.
E às vezes quero acreditar que não vai piorar. Mas então me belisco: não achei que a Dilma fosse cair, não achei que o Doria seria Prefeito, não achei que o Trump seria Presidente dos EUA. Nunca pensei que ia ver pessoas querendo ensinar o Papa a ler a Bíblia (literalmente) ou acusando a The Economist de “comunista”. Também não achei que ia ver repórter sofrer agressão ou artista ter família ameaçada de morte.
Semana passada li em um tweet (coisas da internet: perdi o original, se alguém souber o autor é favor avisar) dizendo que nossa geração cresceu tendo a democracia como direito inabalável. Só que esse direito não esteve garantido para a geração dos meus pais, que foram jovens durante o período da Ditadura Militar. Também não foi verdade para os meus avós, que viveram os anos Vargas. …
Presentes porque necessários.
Nunca antes nesse país eles foram tão presentes, urgentes, numerosos, necessários. Hoje é segunda-feira, 25 de maio de 2020, e ainda não vi o número atualizado de mortos por Covid 19 no Brasil, mas sei que passam de vinte mil e aumentam na velocidade de mil por dia. Alcançaremos cem mil mortos no próximo mês e as perspectivas de piora são alarmantes — a palavra não dá conta do buraco em que estamos. Talvez não exista uma palavra certa.
Vivo no Brasil, na maior e mais populosa cidade da América do Sul, e aqui
morremos às dezenas. Não há obituário que chegue. Não há cemitério ou leito de hospital, mas o obituário é o que registra aquilo que é importante pra quem fica e mais ainda para quem não pode se despedir ou velar o corpo de quem se foi. De quantos obituaristas nós precisaríamos para escrever obituários dignos de todo mundo que morreu, está morrendo, vai morrer? …
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