De uma vítima de estupro sobre o texto “Como foi transar com uma vítima de estupro”

poty
4 min readSep 25, 2016

Eu nunca gostei de ser chamada de vítima. Sabe como é, parece uma categoria passiva demais pra montanha-russa emocional que é a lembrança de abuso, passiva demais para a luta cotidiana em que se constitui, por assim dizer, ser uma vítima. É provável que o estuprador não se lembre do que fez a você. Mas você se lembra, lida com isso diariamente, passa de um momento completamente ordinário da sua vida pra uma crise cruel em dez segundos cravados.

Não sei se por falta minha, mas nunca li um texto de uma mulher descrevendo a primeira vez que fez sexo depois de lidar com o impacto emocional de um estupro. Aposto que textos como esse que imagino já foram escritos, mas nunca efetivamente os encontrei. Gostaria. Mas hoje, curiosa e infelizmente, deparei-me com um texto pateticamente romantizado ao estilo de esquerdomachice Duvivier de um sujeito descrevendo a vez que transou com uma vítima de estupro. Isso mesmo. Soa uma merda desde o começo, e soaria uma merda mesmo sem a imagem de capa contextualmente perturbadora: uma mulher em um gira-gira, numa posição que a faz parecer estar amarrada.

Não sabemos se o autor do texto perguntou para a mulher em questão se poderia escrevê-lo. Pela ausência de qualquer explicação, suponho que não. E mesmo que tenha autorizado, a ausência de pontuação nesse aspecto já demonstra uma insensibilidade palpável. O termo ‘mulher em questão’, na verdade, parece-me francamente algo injusto. Isso não é um texto sobre ela, ainda que a exponha cruelmente no processo. Esse é um texto sobre um cara legal, de verdade, feminista, desses que entendem as mazelas de ser mulher. Ou, pelo menos, é um autorretrato de um sujeito que se pensa todas essas coisas. Daquele tipo que curte usar recursos poéticos, se fazer de sensível. Quem sabe ele mesmo acredite. A verdadeira tragédia é que a gente acredite que isso carrega algum tipo, qualquer tipo, de sensibilidade.

Passar direto por um texto como esse é o privilégio de alguns. Alguns que não foram estuprados, ou apenas alguns que não contém dentro de si o medo excruciante ante perspectivas reais de um estupro. Pra gente, não. Com a gente na hora mesmo aperta o peito, vem o choro. A gente fuma um cigarro, faz um chá. Tenta passar por isso o melhor possível, pensa em como ia ser uma merda sair na rua amanhã a cara inchada de choro de hoje. Em como a gente ia se forçar a fazer cara de nada, dizer que ‘dormiu mal pra caralho’, se alguém perguntar ‘o que aconteceu’. A gente sabe que não é todo mundo que empatiza com a gente, quando a gente conta que sofreu um estupro. A gente guarda as dúvidas de quanto tempo a gente pode contar com a ajuda de quem empatizou pra falar disso, às vezes. Dá um desespero de não melhorar rápido o suficiente.

É óbvio que no dia seguinte a gente não vai admitir que ficou mal e chorou por causa de um texto que caiu na timeline, sob coros de gente batendo palma. Um texto que começa dizendo que a vítima de estupro não era ‘menina frágil, desengonçada e de olhos assustados’, como se apenas depois de uma evidência óbvia tivesse descoberto que não apenas mulheres ‘frágeis, desengonçadas e de olhos assustados’ são ou podem ser vítimas de estupro. Sobre como esse cara aprendeu com uma mina excepcional em um lindo amor de verão que mulheres eram fortes. E que mulheres fortes eram estupradas.

Numa praia, com a benção de Iemanjá (juro que não estou inventando nada), sendo um cara muito compreensivo mesmo, um exemplo de caráter, digno de todas as estrelinhas de papel brilhante que já foram coladas em lições de casa de alunos do prezinho, ele transa com essa mulher excepcional de quem ele nos contou apenas várias coisas irrelevantes e um trauma horrível. O texto não é sobre ela.

É surpreendente a semelhança da descrição feita de como ela recusava os avanços dele e ele, impassível e sem dizer nada quanto a confissão que ela fez, quase que em tom de desculpas, com um estupro. Mas não quero me alongar nesse mérito. Essa resposta não se direciona apenas ao homem que escreveu o infeliz texto ‘Como foi transar com uma vítima de estupro’. Ela se direciona a todo mundo que achou maravilhosa a sensibilidade do sujeito: nós precisamos conversar.

Eu não quero ler homem falando de como transou com um vítima de estupro. Ninguém deveria querer, aliás. Mas a verdade é que fomos muito incentivados a admirar homens, muito acostumados a simpatizar com figuras masculinas ‘humanas’, suas personalidades complexas cheias de falhas, suas musas. O quão difícil seria realmente enxergar textos como esse — e muitos outros — como as capitalizações parasitárias do sofrimento alheio que realmente são? Até quando se fará necessário textos e mais textos de homens pseudo sensíveis e discussões gigantescas subsequentes para que simplesmente abdiquemos das musas?

Até quanto seremos escritas como instrumentos de descoberta subjetiva de homens randômicos que aparentemente curtem usar nossos traumas para enfeitar suas narrativas de vida tediosas? Que nosso sofrimento não seja instrumentalizado por ninguém. E que nunca mais sejamos musas.

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