Admirável

Gabriel Mourão
4 min readAug 4, 2015

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Li Admirável Mundo Novo e 1984 mais ou menos na mesma época, há alguns anos (e inclusive peço desculpas pelas imprecisões da minha memória depois desse tempo todo), o que talvez explique por que, pra mim, pelo menos, os dois são livros mais ou menos irmãos. A ideia, porém, deve ser comum para muitas outras pessoas: são, afinal, as duas grandes distopias da Literatura, ainda por cima cronologicamente próximas (a de Orwell é de 1949 enquanto Huxley escreveu a sua em 1932) e que, apesar de bem diferentes em seus receios sobre o futuro, se preocupam com diversos assuntos comuns. Exemplos são os mecanismos de controle que, nos mundos imaginados pelos autores, seriam exercidos sobre os indivíduos e impossibilitariam, de certa forma, a própria expressão de algo que se pode chamar de individualidade (em 1984, há um controle repressivo e oficial, uma fiscalização perpétua imposta pelo Estado; em Admirável, há a lavagem mental das mensagens hipnopédicas e a engenharia genética responsável pela criação de castas biologicamente imiscíveis). Além disso, são duas obras espetaculares e paradigmáticas da ficção e ícones absolutos do pessimismo da primeira metade do século XX. As aproximações são obviamente inevitáveis.

O difícil é entender o que — além, talvez, de um certo viés ideológico — leva as pessoas a colocar 1984 em um patamar mais alto que Admirável Mundo Novo. Não é uma questão de gosto pessoal, se fosse, tudo bem, cada um gosta do que quer, mesmo, embora mesmo pensando só em entretenimento eu ainda ache o livro do Huxley melhor; o que me espanta é como 1984 goza de uma espécie de prestígio filosófico que simplesmente não existe em Admirável Mundo Novo. Termos como “duplipensar”, criados por Orwell para narrar um modo de vida tão precarizado que aparentemente não poderia ser descrito com o léxico da época do autor, foram integrados à língua (ainda que de alguns nichos; estamos falando de literatura, afinal) e passaram a ser usados para se referir à nossa própria condição. Larry Lessig, criador do Creative Commons, comparou em Free Culture o hábito de portais jornalísticos na internet que modificam notícias após a publicação, reeditando, por assim dizer, o passado, aos serviços do Ministério da Verdade (Free Culture, pg. 109). E outro dia alguém postou no Twitter uma comparação entre a língua da internet e a novilíngua.

Às vezes, são referências inocentes que não se pretendem muito mais do que piadas internas entre fãs de ficção científica. Mas às vezes são analogias com pretensões sérias o bastante para serem preocupantes. É claro que Lessig, um advogado destacadamente progressista, não ignora a diferença entre a manipulação estatal do passado e aquela realizada pelos grupos da mídia online, mas o fato de ele optar por essa comparação diz alguma coisa sobre o quanto a distopia orwelliana representa no nosso imaginário. E é claro que nem sempre podemos contar com o bom senso de quem usa esse tipo de referência: em uma das pesquisas que fiz na internet para escrever esse artigo, achei uma notícia que comparava seriamente a administração do Obama à do Grande Irmão. Pode parecer o tipo de devaneio tacanho que se vê com tanta frequência na internet, quase sempre sem maiores consequências, mas o autor do artigo, um tal de David Limbaugh é autor de pelo menos um livro, provavelmente de mesmo teor, que chegou a liderar a lista de mais vendidos do NYT.

E no entanto, enquanto o terror dos Estados absolutistas foi deixado para trás na maior parte do mundo ocidental, o consumo desenfreado, a repetição incessante e alienante de certas mensagens e o uso indiscriminado de drogas lícitas para atenuar as ansiedades do dia a dia sugerem que nosso mundo novo continua tão admirável quanto nunca.

Evidentemente, a ficção não é um jogo de adivinhação e o valor de um escritor de ficção científica não deve ser medido por quanto ele previu do futuro, mas pelo que ele revelou de seu presente. Se Huxley tinha como paradigma para moldar seu futuro o fordismo (como também vimos, por exemplo, no Chaplin, em 1936), Orwell conviveu não apenas com o stalinismo, mas também com o nazismo, o fascismo e suas variações por toda a Europa e a América. Que um modelo de mundo tenha sobrevivido enquanto o outro não resistiu ao tempo, é fruto do acaso e não pode ser atribuído à competência do escritor. Não deve restar a menor dúvida de que ambos são brilhantes.

Mas o leitor de hoje deveria ser capaz de perceber que 1984, se bem que um belo livro, simplesmente não fala da gente no nível que essas pessoas dão a entender que fala. Por que, então, as pessoas preferem citá-lo a citar Admirável Mundo Novo?

Uma resposta, vai saber?, pode ser o fato de que 1984 talvez seja mesmo um livro que gere empatia com mais facilidade. Ele tem bravatas fáceis de reproduzir (“escravidão é liberdade!”; “liberdade é poder dizer que dois mais dois são quatro!”) e nos apresenta um Mal mais facilmente identificável como mau. Ninguém em sã consciência vai simpatizar com o governo da Oceania, que tira tudo de seus cidadãos sem oferecer absolutamente nada em troca. Por outro lado, um leitor distraído, especialmente se tiver razões para acreditar que seria um alfa ou um beta, provavelmente poderia ler boa parte de Admirável Mundo Novo sem desconfiar que aquele é um cenário distópico. Huxley nos oferece sexo e fartura em um mundo asséptico e livre de dor, antes de nos contar que, para ter isso, temos que deixar de ser indivíduos. E mesmo que não fosse assim, não são poucos os que achariam a troca favorável.

Essa é uma explicação possível, mas há outra que pode ser encontrada no próprio Admirável Mundo Novo.

Ler Huxley não é uma experiência indolor, porque nos força à autocrítica. O livro põe em cheque elementos muito centrais daquilo que nós, hoje, somos. Já 1984 pode ser lido com a facilidade de quem aponta o dedo para o outro — um outro universo, que poderia ter sido, talvez, mas que não foi — e não para si mesmo. E, entre questionar o outro e questionar a si, a escolha é fácil para quem acredita que a ausência de conflitos vale uma vida de hipnopedia e que, se preciso, um pouco de soma nunca fez mal a ninguém.

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